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A VIA SACRA
PARA ROBERT DARNTON, INCAPACIDADE DO OCIDENTE DE ENTENDER O VALOR
DO SAGRADO ENTRE OS MUÇULMANOS PROVOCOU ONDA DE VIOLÊNCIA, QUE DEVE SE AGRAVAR AINDA MAIS
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
Os atos contra as charges
consideradas ofensivas a
Muhammad -o maior
profeta do islamismo-
publicadas em vários jornais de todo
o mundo já causaram a morte, no
Afeganistão, de pelo menos 11 pessoas até a quinta-feira passada, além
de protestos violentos no Oriente
Médio, como incêndios e apedrejamentos de embaixadas de países europeus. O Irã cortou relações comerciais com a Dinamarca -país de
origem do "Jyllands-Posten", jornal
que publicou os 12 "cartoons" pela
primeira vez, no final de setembro- e a União Européia, em retaliação, ameaçou cortar os laços econômicos com o Irã.
O premiê dinamarquês, Anders
Fogh Rasmussen, declarou não poder fazer nada a respeito das charges, mas, publicamente, pediu desculpas aos países islâmicos.
É espantoso que, em uma nação
tão pequena como a Dinamarca, um
jornal obscuro publique uma charge e
isso represente um ultraje a milhões
de pessoas, muitas das quais nem
sabem onde fica esse país
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Mais do que um simples choque
de civilizações -para usar a expressão cunhada pelo cientista político
Samuel Huntington-, o que parece
estar em jogo no Ocidente é antes a
liberdade de crença e expressão. Sintomaticamente, o editor-chefe do
"Posten", Carsten Juste, desculpou-se no site do jornal pelas ofensas que
as charges provocaram, mas se recusou a retratar-se por sua publicação.
Já o historiador norte-americano
Robert Darnton defende que esse
caso só atingiu tais dimensões devido ao avanço das tecnologias de comunicação -a internet, mais precisamente. Sem esta, que em tese permite justamente o acesso mais democrático às informações, jamais as
charges publicadas em um "obscuro
jornal dinamarquês" poderiam ter
provocado as conseqüências trágicas de agora.
"A comunicação entre culturas
não traz a compreensão automática,
e mesmo no longo prazo as coisas
podem piorar", alerta Darnton.
Pessimista, o professor de história
européia na Universidade Princeton
e autor de algumas obras básicas sobre o século 18, como "Os Dentes
Falsos de George Washington"
(Companhia das Letras) e "O Grande Massacre de Gatos" (Graal), diz
acreditar que já vivemos um momento de conflito e violência globais, deixando de lado a agressão
simbólica e partindo para a física.
Folha - Os protestos e mortes contra
a publicação das charges que ironizam o islamismo evidencia um choque de civilizações?
Robert Darnton - Tenho minhas
dúvidas sobre essa expressão, criada
por Samuel Huntington e que se tornou uma teoria sobre o que está
acontecendo hoje no mundo. Como
interpretação geral dos eventos, não
posso ter certeza, mas certamente
acho que a violência atual dramatiza
o choque de dois sistemas de valores
que são completamente opostos, e
isso torna o fenômeno ao mesmo
tempo trágico e fascinante.
O Ocidente é apaixonadamente
comprometido com seu valor de liberdade de expressão e os países islâmicos são apaixonadamente comprometidos com seu conceito de sagrado. Não há formas de mediar essa contradição e encontrar uma solução. Não acho que uma contradição se apresente ao público global de
forma tão dramática freqüentemente. É entristecedor e fascinante ao
mesmo tempo.
Um dos problemas para nós, do
Ocidente, é entender a força da paixão em relação ao sacrilégio nos países islâmicos. A maioria de nós perdeu a noção de sacrilégio, que naturalmente foi muito forte na Idade
Média e no início da Idade Moderna.
Na nossa sociedade altamente secularizada e materialista, é difícil entender o conceito de uma paixão visceral por símbolos sagrados e contrária a qualquer crítica agressiva,
que pode ser traduzida em violência
física, nas ruas. Temos que aceitar o
fato de que há um profundo senso
de ultraje e violação de um símbolo
religioso nesse caso e temos que entender essa revolta, por mais difícil
que possa parecer.
Mas esse episódio também dramatiza o poder da comunicação global.
É impressionante que uma imagem
publicada num jornal dinamarquês
faça com que, do outro lado do
mundo, a violência exploda nas ruas
e pessoas morram em protestos contrários à publicação. O poder que a
mídia tem hoje de comunicar mensagens de forma global e provocar a
ação é assustador. E vemos a violência simbólica se transformar em violência física em uma escala enorme.
É de tirar o fôlego a idéia de que,
num país tão pequeno como a Dinamarca, um jornal obscuro publique
uma charge e isso represente um ultraje a milhões de pessoas, muitas
das quais não devem nem saber onde fica esse país. É espantoso.
Há alguns mal-entendidos envolvidos no caso, mas isso faz parte desse tipo de fenômeno global, o processo que eu costumo chamar de
"simplificação radical", no qual símbolos têm o poder de cristalizar atitudes e pôr um lado contra o outro,
direcionando mentes e criando uma
sensação de transposição de limites
e de violação de um território. Ver
isso acontecer em escala global é surpreendente.
Folha - Pode-se pensar no seguinte
círculo vicioso: a publicação das charges gera protestos, que geram notícias globais por meio das quais as
charges voltam a ser publicadas, gerando mais protestos?
Darnton - Naturalmente. É um processo que gera uma escalada de
eventos, sem que se possa ver exatamente onde vamos parar.
É interessante. Eu até hoje não vi
essas imagens. O "New York Times"
se recusou a publicar as charges.
Temos então outras duas novas
questões: a autocensura de alguns
órgãos da imprensa e a solidariedade de outros, defendendo a liberdade de expressão. Acho que foi terrível que o "France Soir" tenha demitido seu editor. É um processo complexo e complicado. No Brasil, nos
EUA e na Dinamarca, todos fomos
varridos por esse fenômeno e arrastados por uma discussão.
Folha - O sr. acha que foi um erro as
charges terem sido publicadas ou republicadas?
Darnton - Em retrospecto, sim. É
fácil olhar para trás e dizer que houve um mau julgamento do caso, o
que acabou ofendendo outro povo
de forma tão profunda. No momento da publicação, entretanto, eu provavelmente teria sido tão ingênuo
quanto o editor do jornal dinamarquês, sem perceber que se tratava de
material tão ofensivo.
Eu também acredito apaixonadamente na liberdade de imprensa e
concordo totalmente com a decisão
do governo dinamarquês de não punir o jornal que publicou as charges.
Mas acho que deve haver sempre a
questão de avaliação de danos na
publicação de um jornal, o que pode
ser considerado autocensura, mas
acho que se deve evitar a publicação
de mensagens profundamente ofensivas. Acho que imagens de muita
violência, de corpos mutilados, de
mortos e esse tipo de coisa não deviam ser publicadas, mas essa também é uma questão de gosto.
Folha - O sr. acha que no Ocidente a
religião é um assunto de menor importância que no Oriente?
Darnton - Numa tremenda generalização, minha resposta curta é: sim,
a religião é um assunto menor no
Ocidente. Respondendo de forma
mais aprofundada, entramos numa
questão complicada.
No século 18, num incidente famoso, um cavaleiro chamado Jean-François de la Barre foi torturado e
teve seu corpo queimado por "desrespeitar" a religião católica. Ele
simplesmente não tirou o chapéu
enquanto uma procissão passava na
rua, além de possuir um livro escrito
por Voltaire. Ele desrespeitou um
símbolo católico quando o símbolo
era levado muito a sério na religião,
o que foi entendido como sacrílego e
ofensivo.
Houve centenas de outros casos
como esse no passado da civilização
ocidental, com o sacrilégio sendo
punido com a morte.
Não temos mais isso, não matamos mais ninguém por sacrilégio.
Mas alguns símbolos sagrados ainda
existem e ainda são levados a sério
nos países ocidentais. Eles podem
carregar emoção. Durante os protestos contrários à Guerra do Vietnã,
por exemplo, um homem usou um
lenço com o padrão da bandeira dos
EUA para limpar o nariz. Isso deixou muita gente furiosa. Parecia
uma grande ofensa a algo que muitos acreditavam ser sagrado.
Folha - Como se a democracia e o patriotismo se tornassem a nova religião no Ocidente?
Darnton - De forma simples, acho
que sim, é correto dizer isso. Nos
EUA temos o que chamamos de
"american way of life", que é simbolizado pela bandeira e é levado a sério por muita gente. Não é nacionalismo, é patriotismo, mas envolve,
sim, um sentido de força religiosa.
É uma religião civil, no sentido em
que falavam Rousseau e Tocqueville,
e as pessoas respondem a isso, tornando-se uma questão muito séria
em suas vidas. Quando as pessoas
queimam a bandeira norte-americana no Oriente Médio, elas estão cometendo um ato de sacrilégio que
ofende as pessoas desse país. E é por
isso que elas o fazem.
Folha - O sr. acha que os atuais eventos relacionados às charges de Muhammad vão mudar a forma como o
Oriente vê as representações do Ocidente ou, então, a forma como o Ocidente retrata os símbolos do Oriente?
Darnton - Não sou um bom profeta, mas acho que podemos esperar
uma série de conflitos em que a violência simbólica vai se transformar
em violência física. Acredito que a situação vai piorar, não melhorar, e
haverá uma escalada desse tipo de
choque cultural, sem que o entendimento mútuo se propague.
A comunicação entre culturas não
traz a compreensão automática, e
mesmo no longo prazo as coisas podem piorar. Por mais que tenhamos
fé na comunicação aberta e na capacidade de a mídia se espalhar e penetrar em territórios distantes, acho
que seríamos inocentes se achássemos que a comunicação por si mesma nos levaria a um final feliz.
Folha - O sr. acha que existe a possibilidade de evoluirmos para um conflito generalizado por conta dessas diferenças culturais e religiosas?
Darnton - Acho ofensivo o uso exagerado da palavra "guerra". Acho
que ela representa mal a situação
atual. Não acredito que estejamos
em guerra, por mais que o presidente Bush o repita permanentemente.
Mas creio, entretanto, que a violência generalizada está se espalhando pelo mundo, e estamos no meio
dela. Seja nas explosões que acontecem na Espanha, na França, na ex-União Soviética... E muito dessa violência é causada por questões culturais e religiosas.
Uma expressão do tamanho da Segunda Guerra está distante, mas vivemos no meio de um novo tipo de
violência global, que toca a vida de
milhões de pessoas sem que realmente a possamos entender. Uma
forma de evitar mal-entendidos é
não usar a palavra "guerra", que
simplifica os conflitos e dificulta a
compreensão dos fenômenos.
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