São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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A VIA SACRA

PARA ROBERT DARNTON, INCAPACIDADE DO OCIDENTE DE ENTENDER O VALOR DO SAGRADO ENTRE OS MUÇULMANOS PROVOCOU ONDA DE VIOLÊNCIA, QUE DEVE SE AGRAVAR AINDA MAIS

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

Os atos contra as charges consideradas ofensivas a Muhammad -o maior profeta do islamismo- publicadas em vários jornais de todo o mundo já causaram a morte, no Afeganistão, de pelo menos 11 pessoas até a quinta-feira passada, além de protestos violentos no Oriente Médio, como incêndios e apedrejamentos de embaixadas de países europeus. O Irã cortou relações comerciais com a Dinamarca -país de origem do "Jyllands-Posten", jornal que publicou os 12 "cartoons" pela primeira vez, no final de setembro- e a União Européia, em retaliação, ameaçou cortar os laços econômicos com o Irã.
O premiê dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, declarou não poder fazer nada a respeito das charges, mas, publicamente, pediu desculpas aos países islâmicos.


É espantoso que, em uma nação tão pequena como a Dinamarca, um jornal obscuro publique uma charge e isso represente um ultraje a milhões de pessoas, muitas das quais nem sabem onde fica esse país


Mais do que um simples choque de civilizações -para usar a expressão cunhada pelo cientista político Samuel Huntington-, o que parece estar em jogo no Ocidente é antes a liberdade de crença e expressão. Sintomaticamente, o editor-chefe do "Posten", Carsten Juste, desculpou-se no site do jornal pelas ofensas que as charges provocaram, mas se recusou a retratar-se por sua publicação.
Já o historiador norte-americano Robert Darnton defende que esse caso só atingiu tais dimensões devido ao avanço das tecnologias de comunicação -a internet, mais precisamente. Sem esta, que em tese permite justamente o acesso mais democrático às informações, jamais as charges publicadas em um "obscuro jornal dinamarquês" poderiam ter provocado as conseqüências trágicas de agora.
"A comunicação entre culturas não traz a compreensão automática, e mesmo no longo prazo as coisas podem piorar", alerta Darnton.
Pessimista, o professor de história européia na Universidade Princeton e autor de algumas obras básicas sobre o século 18, como "Os Dentes Falsos de George Washington" (Companhia das Letras) e "O Grande Massacre de Gatos" (Graal), diz acreditar que já vivemos um momento de conflito e violência globais, deixando de lado a agressão simbólica e partindo para a física.
 

Folha - Os protestos e mortes contra a publicação das charges que ironizam o islamismo evidencia um choque de civilizações?
Robert Darnton -
Tenho minhas dúvidas sobre essa expressão, criada por Samuel Huntington e que se tornou uma teoria sobre o que está acontecendo hoje no mundo. Como interpretação geral dos eventos, não posso ter certeza, mas certamente acho que a violência atual dramatiza o choque de dois sistemas de valores que são completamente opostos, e isso torna o fenômeno ao mesmo tempo trágico e fascinante.
O Ocidente é apaixonadamente comprometido com seu valor de liberdade de expressão e os países islâmicos são apaixonadamente comprometidos com seu conceito de sagrado. Não há formas de mediar essa contradição e encontrar uma solução. Não acho que uma contradição se apresente ao público global de forma tão dramática freqüentemente. É entristecedor e fascinante ao mesmo tempo.
Um dos problemas para nós, do Ocidente, é entender a força da paixão em relação ao sacrilégio nos países islâmicos. A maioria de nós perdeu a noção de sacrilégio, que naturalmente foi muito forte na Idade Média e no início da Idade Moderna.
Na nossa sociedade altamente secularizada e materialista, é difícil entender o conceito de uma paixão visceral por símbolos sagrados e contrária a qualquer crítica agressiva, que pode ser traduzida em violência física, nas ruas. Temos que aceitar o fato de que há um profundo senso de ultraje e violação de um símbolo religioso nesse caso e temos que entender essa revolta, por mais difícil que possa parecer.
Mas esse episódio também dramatiza o poder da comunicação global. É impressionante que uma imagem publicada num jornal dinamarquês faça com que, do outro lado do mundo, a violência exploda nas ruas e pessoas morram em protestos contrários à publicação. O poder que a mídia tem hoje de comunicar mensagens de forma global e provocar a ação é assustador. E vemos a violência simbólica se transformar em violência física em uma escala enorme.
É de tirar o fôlego a idéia de que, num país tão pequeno como a Dinamarca, um jornal obscuro publique uma charge e isso represente um ultraje a milhões de pessoas, muitas das quais não devem nem saber onde fica esse país. É espantoso.
Há alguns mal-entendidos envolvidos no caso, mas isso faz parte desse tipo de fenômeno global, o processo que eu costumo chamar de "simplificação radical", no qual símbolos têm o poder de cristalizar atitudes e pôr um lado contra o outro, direcionando mentes e criando uma sensação de transposição de limites e de violação de um território. Ver isso acontecer em escala global é surpreendente.

Folha - Pode-se pensar no seguinte círculo vicioso: a publicação das charges gera protestos, que geram notícias globais por meio das quais as charges voltam a ser publicadas, gerando mais protestos?
Darnton -
Naturalmente. É um processo que gera uma escalada de eventos, sem que se possa ver exatamente onde vamos parar.
É interessante. Eu até hoje não vi essas imagens. O "New York Times" se recusou a publicar as charges.
Temos então outras duas novas questões: a autocensura de alguns órgãos da imprensa e a solidariedade de outros, defendendo a liberdade de expressão. Acho que foi terrível que o "France Soir" tenha demitido seu editor. É um processo complexo e complicado. No Brasil, nos EUA e na Dinamarca, todos fomos varridos por esse fenômeno e arrastados por uma discussão.

Folha - O sr. acha que foi um erro as charges terem sido publicadas ou republicadas?
Darnton -
Em retrospecto, sim. É fácil olhar para trás e dizer que houve um mau julgamento do caso, o que acabou ofendendo outro povo de forma tão profunda. No momento da publicação, entretanto, eu provavelmente teria sido tão ingênuo quanto o editor do jornal dinamarquês, sem perceber que se tratava de material tão ofensivo.
Eu também acredito apaixonadamente na liberdade de imprensa e concordo totalmente com a decisão do governo dinamarquês de não punir o jornal que publicou as charges.
Mas acho que deve haver sempre a questão de avaliação de danos na publicação de um jornal, o que pode ser considerado autocensura, mas acho que se deve evitar a publicação de mensagens profundamente ofensivas. Acho que imagens de muita violência, de corpos mutilados, de mortos e esse tipo de coisa não deviam ser publicadas, mas essa também é uma questão de gosto.

Folha - O sr. acha que no Ocidente a religião é um assunto de menor importância que no Oriente?
Darnton -
Numa tremenda generalização, minha resposta curta é: sim, a religião é um assunto menor no Ocidente. Respondendo de forma mais aprofundada, entramos numa questão complicada.
No século 18, num incidente famoso, um cavaleiro chamado Jean-François de la Barre foi torturado e teve seu corpo queimado por "desrespeitar" a religião católica. Ele simplesmente não tirou o chapéu enquanto uma procissão passava na rua, além de possuir um livro escrito por Voltaire. Ele desrespeitou um símbolo católico quando o símbolo era levado muito a sério na religião, o que foi entendido como sacrílego e ofensivo.
Houve centenas de outros casos como esse no passado da civilização ocidental, com o sacrilégio sendo punido com a morte.
Não temos mais isso, não matamos mais ninguém por sacrilégio. Mas alguns símbolos sagrados ainda existem e ainda são levados a sério nos países ocidentais. Eles podem carregar emoção. Durante os protestos contrários à Guerra do Vietnã, por exemplo, um homem usou um lenço com o padrão da bandeira dos EUA para limpar o nariz. Isso deixou muita gente furiosa. Parecia uma grande ofensa a algo que muitos acreditavam ser sagrado.

Folha - Como se a democracia e o patriotismo se tornassem a nova religião no Ocidente?
Darnton -
De forma simples, acho que sim, é correto dizer isso. Nos EUA temos o que chamamos de "american way of life", que é simbolizado pela bandeira e é levado a sério por muita gente. Não é nacionalismo, é patriotismo, mas envolve, sim, um sentido de força religiosa.
É uma religião civil, no sentido em que falavam Rousseau e Tocqueville, e as pessoas respondem a isso, tornando-se uma questão muito séria em suas vidas. Quando as pessoas queimam a bandeira norte-americana no Oriente Médio, elas estão cometendo um ato de sacrilégio que ofende as pessoas desse país. E é por isso que elas o fazem.

Folha - O sr. acha que os atuais eventos relacionados às charges de Muhammad vão mudar a forma como o Oriente vê as representações do Ocidente ou, então, a forma como o Ocidente retrata os símbolos do Oriente?
Darnton -
Não sou um bom profeta, mas acho que podemos esperar uma série de conflitos em que a violência simbólica vai se transformar em violência física. Acredito que a situação vai piorar, não melhorar, e haverá uma escalada desse tipo de choque cultural, sem que o entendimento mútuo se propague.
A comunicação entre culturas não traz a compreensão automática, e mesmo no longo prazo as coisas podem piorar. Por mais que tenhamos fé na comunicação aberta e na capacidade de a mídia se espalhar e penetrar em territórios distantes, acho que seríamos inocentes se achássemos que a comunicação por si mesma nos levaria a um final feliz.

Folha - O sr. acha que existe a possibilidade de evoluirmos para um conflito generalizado por conta dessas diferenças culturais e religiosas?
Darnton -
Acho ofensivo o uso exagerado da palavra "guerra". Acho que ela representa mal a situação atual. Não acredito que estejamos em guerra, por mais que o presidente Bush o repita permanentemente.
Mas creio, entretanto, que a violência generalizada está se espalhando pelo mundo, e estamos no meio dela. Seja nas explosões que acontecem na Espanha, na França, na ex-União Soviética... E muito dessa violência é causada por questões culturais e religiosas.
Uma expressão do tamanho da Segunda Guerra está distante, mas vivemos no meio de um novo tipo de violência global, que toca a vida de milhões de pessoas sem que realmente a possamos entender. Uma forma de evitar mal-entendidos é não usar a palavra "guerra", que simplifica os conflitos e dificulta a compreensão dos fenômenos.


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