São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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A RELIGIÃO DO BOM SENSO

EM LIVRO QUE ESTÁ LANÇANDO NOS EUA, O FILÓSOFO COGNITIVO DANIEL DENNETT DIZ QUE MUÇULMANOS, CRISTÃOS E JUDEUS DEVEM ANALISAR OS DOGMAS DE SUAS CRENÇAS À LUZ DA RAZÃO

DANIEL DENNETT

De acordo com as pesquisas de opinião, a maioria das pessoas no mundo diz que a religião é muito importante em suas vidas. Muitas diriam que suas vidas não fariam sentido sem a religião. É tentador aceitar o que dizem sem questionamento, declarar que não há mais nada a dizer -e deixar por isso mesmo. Quem pode querer interferir com a coisa, seja lá o que for, que atribui sentido às vidas das pessoas?
Se fizermos isso, porém, estaremos propositalmente deixando de lado algumas questões sérias. Será que qualquer religião pode conferir sentido de uma maneira que devemos respeitar e honrar? O que dizer das pessoas que se tornam vítimas de líderes de seitas ou que são enganadas, convencidas a entregar suas economias a trapaceiros religiosos? Suas vidas ainda têm sentido, mesmo que sua "religião" específica seja uma fraude?


Não é fácil ser moral, e isso é algo que parece estar se tornando cada vez mais difícil hoje


No documentário "Marjoe" (1972), sobre o falso evangelista Marjoe Gortner, vemos pessoas pobres esvaziando suas carteiras e depositando tudo o que têm nos bolsos no prato de coleta da igreja, com seus olhos brilhando com lágrimas de alegria, emocionadas por estarem recebendo a "salvação" do carismático fajuto. A dúvida que me perturba desde que assisti ao filme pela primeira vez é: quem estará cometendo o ato mais repreensível?
Gortner, que mente às pessoas para ficar com o dinheiro delas, ou os documentaristas que expõem as mentiras (com a entusiástica cumplicidade de Gortner), com isso roubando pessoas sinceras do sentido que imaginavam ter encontrado em suas vidas? Consideremos como podem ser as vidas delas.
Sam, por exemplo, é um sujeito que largou o colégio sem ter concluído o ensino médio. Ele ganha a vida como frentista num posto em um trevo rodoviário e nutre a esperança de algum dia comprar uma moto; ele gosta de tomar algumas cervejas enquanto assiste às partidas de seu time na televisão.
Não há oportunidades de aventuras acenando no futuro de Sam nem no da maioria dos outros membros da congregação bem-aventurada que vemos no filme, mas essas pessoas agora foram postas em contato direto com Jesus e estão salvas por toda a eternidade, integrantes amadas e bem-vistas da comunidade dos crentes renascidos em Cristo. Iniciaram uma página nova em suas vidas, numa cerimônia das mais dramáticas, e passaram a enfrentar suas vidas, outrora pouco inspiradas, sentindo-se renovadas e enaltecidas.

A maior história
Suas vidas agora contam uma história, e essa história é um capítulo da Maior História Já Relatada. É possível imaginar qualquer outra coisa que elas pudessem comprar com as notas de US$ 20 [R$ 44] que colocam no prato de coleta e que, para elas, tivesse valor -ainda que remotamente- comparável a isso?
"Sim, com certeza" é a resposta. Poderiam doar seu dinheiro a uma religião que fosse honesta e que utilizasse o fruto do sacrifício delas para auxiliar pessoas ainda mais necessitadas. Talvez a principal razão pela qual as religiões fazem boa parte do trabalho pesado em grande parte dos EUA é que as pessoas realmente querem ajudar as outras -e as organizações seculares não têm conseguido competir com as religiões pela lealdade das pessoas.
Isso é importante, mas essa é a parte fácil da resposta e passa ao largo da parte difícil: o que devemos fazer em relação às pessoas que, honestamente, acreditamos que estão sendo ludibriadas? Devemos deixá-las com suas ilusões reconfortantes ou devemos soar o alarme?
Guardar segredos das pessoas para o próprio bem delas pode, em muitos casos, ser uma atitude sábia e conveniente, mas é preciso apenas uma pessoa para revelar um segredo, e, como existem desacordos em torno dos casos que fazem jus à discrição, o resultado é um miasma desagradável de hipocrisia, mentiras e tentativas frenéticas, mas infrutíferas, de desviar a atenção dos fatos.
E se Gortner convencesse um grupo todo de pregadores evangélicos sinceros a fazer seu trabalho sujo por ele? A inocência desses outros pregadores modificaria a equação e conferiria significado real às vidas das pessoas cujo sacrifício esses pregadores incentivaram e recolheram? Ou será que todos os pregadores evangélicos são tão falsos quanto Gortner?
Os muçulmanos, com certeza, pensam que sim, embora, de modo geral, sejam discretos demais para declará-lo. E os católicos consideram os judeus igualmente iludidos, os protestantes acham que os católicos desperdiçam seu tempo e energia com uma religião em grande medida falsa e assim por diante. Todos os muçulmanos? Todos os católicos? Todos os protestantes? Todos os judeus? É claro que não.
Não se sabe quantos muçulmanos acreditam de fato que todos os infiéis merecem morrer, que é o que afirma o Alcorão, de maneira inegável. Eu arriscaria o palpite de que a maioria dos muçulmanos é sincera ao insistir que deve ser ignorada a injunção de que os apóstatas devem ser mortos, mas é no mínimo desconcertante o fato de o medo de ser visto como apóstata aparentemente constitui uma motivação importante no mundo islâmico. Logo, não somos apenas nós -que não fazemos parte do mundo islâmico- que não podemos fazer mais do que palpitar.
Então qual é a atitude prevalecente hoje entre aqueles que se dizem religiosos, mas que fazem a defesa vigorosa da tolerância? Existem três opções principais.
1) O maquiavélico dissimulado: por questão de estratégia política, ainda não é chegada a hora de se fazerem declarações abertas de superioridade religiosa, então devemos conciliar e esperar sem alarde, na esperança de que, com o passar dos séculos, as outras religiões possam ser gentilmente persuadidas a aderir às nossas posições.
2) O verdadeiramente tolerante: não importa realmente a que religião você jura fidelidade, desde que você tenha alguma religião.
3) Os negligenciadores benevolentes: a religião é preciosa demais para muitos para que possam cogitar em prescindir dela, mesmo que ela não faça nenhum bem, na realidade, e seja apenas um legado histórico vazio que podemos nos dar ao luxo de conservar até o momento em que ela se apague tranquilamente por conta própria, em algum momento do futuro imprevisível.
Não adianta perguntar às pessoas qual opção elas escolhem, já que os extremos são tão pouco diplomáticos que podemos prever de antemão que a maioria das pessoas optará por alguma versão da tolerância ecumênica, quer acreditem nela ou não.
Portanto, nós nos enrodilhamos numa teia de hipocrisia, e não existe saída clara dessa armadilha. Será que somos como aquelas famílias em que os adultos fazem de conta que acreditam em Papai Noel, apenas para o bem das crianças, e as crianças fazem de conta que ainda acreditam no bom velhinho, apenas para não decepcionar seus pais?
Ah, se nosso dilema atual fosse tão inócuo e mesmo cômico quanto esse! No mundo adulto da religião, pessoas morrem e matam; os moderados se silenciam por medo da intransigência dos radicais em seguir sua própria fé, e muitos crentes temem reconhecer o que realmente acreditam por medo de partir o coração da vovó, de ofender seus vizinhos a ponto de serem expulsos da cidade ou de sofrerem algum destino ainda pior.
Que alternativas existem? Há os moderados que reverenciam a tradição na qual foram criados -simplesmente por ser sua tradição- e que se dispõem a fazer campanha moderada em favor dos detalhes de sua tradição, simplesmente porque, no mercado das idéias, é preciso que alguém defenda cada tradição até que consigamos distinguir o que é bom do que é ainda melhor e optar pelo melhor possível, levando todas as possibilidades em conta.
Entretanto, para adotar uma posição moderada como essa, é preciso abrir mão das máximas absolutas que, aparentemente, constituem uma das principais atrações de muitos credos religiosos. Não é fácil ser moral, e isso é algo que parece estar se tornando cada vez mais difícil hoje em dia. Antigamente, os males do mundo, em sua maioria -doenças, fome, guerra-, eram coisas cuja redução estava inteiramente além da capacidade das pessoas comuns.

O que fazer?
Hoje, graças à tecnologia, o que está ao alcance de praticamente qualquer pessoa se multiplicou por mil, mas nossa compreensão moral daquilo que deveríamos fazer não acompanhou esse avanço. Podemos ter um bebê de proveta ou tomar uma pílula do dia seguinte para não ter um bebê; satisfazer nossos desejos sexuais na privacidade de nosso quarto, descarregando pornografia da internet; podemos plantar minas terrestres ou contrabandear armas nucleares em valises.
Também podemos providenciar o envio de US$ 100 [R$ 220] mensais de nossas contas bancárias para garantir ensino a dez meninas em algum país islâmico ou beneficiar cem pessoas subnutridas ou fornecer assistência médica a aidéticos na África. O que deveríamos fazer?
Com certeza quase todo mundo já se viu diante de um dilema moral e, em segredo, desejou que houvesse alguém -alguém em que confiasse- que lhe dissesse o que fazer. Não somos responsáveis por tomar nossas próprias decisões morais?
Sim, mas as virtudes do raciocínio moral "faça você mesmo" têm seus limites, e se você, após considerar uma questão conscienciosamente, decide delegar outras decisões morais de sua vida a um especialista, então você terá tomado sua decisão moral própria. Terá decidido fazer uso da divisão de trabalho que a civilização nos possibilita, recorrendo à ajuda de especialistas.
Aplaudimos a conveniência de agir dessa maneira em todas as outras áreas importantes em que é preciso tomar decisões (não se automedique, o advogado que representa a si próprio tem um tolo como cliente e assim por diante).
É por essa razão que aqueles que não questionam a justeza dos ensinamentos morais de sua religião constituem um problema: se não avaliaram cuidadosamente, eles próprios, se seus pastores, padres, rabinos ou imãs merecem exercer tanta autoridade delegada sobre suas vidas, então estão adotando uma posição pessoalmente imoral.
Defendo que qualquer pessoa que argumenta que um ponto particular de convicção moral não é discutível ou negociável -simplesmente por ser a palavra de Deus ou porque a Bíblia diz assim ou porque é "o que todos os muçulmanos (ou hindus ou sikhs...) acreditam, e eu sou muçulmano (ou hindu ou sikh...)"- deve ser vista como alguém que impossibilita ao resto de nós levar seus pontos de vista a sério, alguém que se distancia da discussão moral por inadvertidamente reconhecer que seus pontos de vista não são mantidos com consciência e não são merecedores de atenção maior.
É chegada a hora de os seguidores racionais de todas as fés encontrarem a coragem e a energia necessárias para inverter a tradição que honra o amor incondicional a Deus -em qualquer tradição religiosa.
Longe de ser honorável, esse amor não é nem sequer desculpável. É vergonhoso. Eis o que devemos dizer às pessoas que seguem tal tradição: só existe uma maneira de respeitar o teor de qualquer edito moral supostamente passado a nós por Deus. Devemos analisá-lo conscienciosamente, à luz plena da razão, fazendo uso de todas as evidências que temos à nossa disposição. Não é digno de ser adorado nenhum Deus a quem agradam as manifestações de amor destituído de razão.

Daniel C. Dennet é diretor do Centro de Estudos Cognitivos da Universidade Tufts. Este texto foi adaptado de seu livro "Breaking the Spell - Religion as a Natural Phenomenon" (Rompendo o Encantamento - A Religião como Fenômeno Natural), que sai neste mês nos EUA pela ed. Viking.
Copyright ¸ 2006 de Daniel C. Dennett.
Tradução de Clara Allain.


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