São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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+ sociedade

Segunda onda feminista, que teve seu apogeu com Betty Friedan, nos anos 60, libertou as mulheres da noção de gênero "inferior", do século 19, e estendeu o conceito de cidadania a outros grupos marginalizados

O sexo plural

MARGARETH RAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando, em 1963, Betty Friedan publicou "A Mística Feminina", em que denunciava as inúmeras estratégias de confinamento das mulheres na esfera doméstica e os mecanismos pelos quais sua identidade era vinculada estritamente à maternidade, estávamos longe de conhecer o significado da palavra filoginia, que indica o amor pelas mulheres. Naquela época, há apenas quatro décadas, a expressão "mulher pública" era sinônimo de prostituta, estando também longe de nomear a governante ou a cidadã comum.
A experiência de viver em um mundo hostil à cultura feminina era bem conhecida pelas mulheres, porém poucas vezes fora transformada em grito de guerra. Se no início do século 20 um feminismo tímido trazia reivindicações pelos seus direitos civis, foi somente com a "segunda onda feminista", desde os anos 60, que a luta se radicalizou, afetando todos os âmbitos da vida social, política e cultural. Percebemos, então, que mal escutávamos nossas próprias vozes.

Feminismo e democracia
No Brasil, essa luta se combinou com a resistência contra a ditadura militar e não tardou a encontrar um outro movimento das mulheres que, na periferia das cidades, exigiam melhores condições de vida, transporte e moradia para a população, esquecendo-se dos direitos específicos das mulheres propriamente.
Desde então, o feminismo não cessou de ganhar espaço na vida cotidiana e no imaginário social, mesmo que muitos ainda o vejam como um movimento ultrapassado de mulheres "machas, feias e mal-amadas", na expressão do escritor Oswald de Andrade, retomada pelos "rapazes" do "Pasquim".


O feminismo propõe a destruição da monarquia no pensamen- to e nas práticas sociais


É verdade que, se consultarmos as estatísticas, ficaremos chocadas/os ao saber que uma em cada cinco mulheres, no país, sofre com a violência doméstica; que as mulheres têm baixíssima participação na política institucional; que o aborto ainda é considerado crime; e que a exploração sexual atinge em cheio também as crianças. Da cidade à política, não há dúvida de que o mundo continua pertencendo aos homens, que definem suas regras, quando conseguem escapar de suas guerras.
Contudo, quando olhamos para outra direção, surpreendem-nos as crescentes conquistas feministas, a começar pela autonomia feminina. Está claro, hoje, que o feminismo libertou as mulheres da "mulher", esse universal definido pela medicina vitoriana, que instituiu a inferioridade física, intelectual e moral do "sexo frágil" em relação ao homem, com base em sua constituição biológica.
Mais que isso, porém, são notáveis suas contribuições no âmbito do pensamento, da ciência, da política, na interpretação da sexualidade e na construção de um novo código ético. A criação de uma área de "estudos feministas" em quase todas as universidades do Ocidente permitiu inovar profundamente não apenas em relação à visibilidade que ganham as mulheres nos processos históricos e sociais mas na crítica às narrativas universalizantes de interpretação do mundo.
Percebeu-se, na prática, as limitações dos conceitos masculinos, inscritos na lógica da identidade, incapazes de dar conta da diferença, seja das práticas femininas, seja de outros grupos sexuais e étnicos.

Contra a marginalização
Na área política, o feminismo questionou os conceitos básicos que sustentam os princípios liberais, como o universalismo, a idéia de liberdade e igualdade originados a partir do contrato social, denunciando que este se constituiu a partir da exclusão de muitos e que, portanto, a construção de uma esfera pública autônoma só seria possível pela perspectiva da diferença, e não da igualdade. A crítica feminista promoveu um deslocamento radical de perspectiva ao colocar-se ao lado dos grupos sociais marginalizados -e não apenas das mulheres.
Buscando a construção de um novo conceito de cidadania, a atuação das mulheres na esfera pública forçou a incorporação de novas demandas, levando a que se ampliasse seu espaço de representação nas últimas décadas.
Criaram-se instituições especificamente voltadas para as questões femininas, para além dos espaços abertos nos movimentos sociais, nos sindicatos, nas centrais de trabalhadores e nos partidos, enquanto muitas questões privadas foram trazidas para a esfera pública.
Ao assumirem publicamente a discussão de sua sexualidade, desde os anos 1970, as mulheres produziram uma profunda transformação na definição dos direitos de cidadania e promoveram importantes reflexões sobre os pressupostos hierárquicos que regem nossas definições e representações sexuais.
É preciso levar em conta a tradição política autoritária do Brasil, onde nunca se formou uma clara noção de esfera pública moderna e de direitos do cidadão. As mulheres foram consideradas mais irracionais do que os homens pobres, além de mais sensuais do que as dos países de tradição puritana.
Discutir a sexualidade no Brasil ganha importância pois, com base no argumento da "sensualidade tropical" como característica fundamental das brasileiras, das índias nuas às mulatas carnavalescas, justificou-se a dominação patriarcal e sua exclusão do mundo dos negócios e da política.
O feminismo questionou essa leitura hierarquizadora e excludente da política, mostrando como se opera a exclusão social das mulheres e o silenciamento e a desqualificação de seus temas e questões. Lutou e luta para que as mulheres se reconheçam como sujeitos políticos, enquanto cidadãs com deveres e direitos a serem reconhecidos e criados.
Ampliou, portanto, o conceito de cidadania, propondo uma nova concepção da prática política, exercida não apenas nos espaços institucionalizados, mas na própria vida cotidiana. Assim, afetou também outros grupos em luta pela cidadania.
Finalmente, convergindo com outras correntes do pensamento crítico contemporâneo, como "o pensamento da diferença", o feminismo revelou como a dominação se constitui muito mais sofisticadamente nas próprias formas culturais que instituem uma leitura da política e da vida em sociedade.
Nesse sentido, longe de pretender destronar o "rei" para colocar em seu lugar uma "rainha", o feminismo propôs a destruição da monarquia no pensamento e nas práticas sociais, inclusive no interior de si mesmo. Afinal, hoje as feministas dificilmente aceitariam falar em nome de um único feminismo, pluralizando, pois, suas definições e campos de atuação.
Quando visitou o Brasil, nos inícios dos anos 70, Friedan foi recebida pela grande imprensa com adjetivos bem pouco elogiosos. Talvez seja o momento de agradecê-la por algum dia ter convulsionado nossos pequenos mundos, com a ousadia e a coragem que demandam as práticas da liberdade.

Margareth Rago é professora titular do departamento de história da Universidade Estadual de Campinas (SP).


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