São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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+ 3 questões Sobre a marginalidade

1. Por que a marginalidade tem fascinado a elite cultural brasileira?
2. A solidariedade é uma fantasia ou uma nova ação política?
3. O que difere o malandro do narcotraficante?

Sergio Miceli responde

1.
Discordo dos termos em que a pergunta está formulada.

2.
A pergunta alude à bolsa concedida a Marcinho VP e à reação irada do governador carioca. Ao que parece, o artista-banqueiro tinha razões práticas para fazer o que fez, assim como Garotinho enxergou no episódio uma oportunidade de ouro para posar de analista do social. Visto de outro ângulo, João Moreira Salles procedeu como papel-carbono escolástico, desejoso de recuperar a experiência pelas lentes simbólicas do vivente e receoso de impor seus esquemas de apreensão; Garotinho deitou falação fazendo um arremedo de diagnóstico abalizado, mostrando a manha do político hábil em converter meias-verdades em meios-enganos.

3.
Eis a pergunta provocativa, pois assume por inteiro a confusão hoje triunfante em toda parte, a começar na própria mídia, baralhando as coisas do real com as coisas do pensamento por meio de conceitos e classificações tanto menos úteis quanto mais conotados. Dito de outro jeito, talvez fosse melhor não confundir "o mundo em que se pensa" com "o mundo em que se vive", sábio conselho de Bachelard, que todos nós envolvidos com a produção cultural deveríamos levar a sério. A resposta começaria a ficar pertinente quanto mais revelasse os princípios desse cabra-cega de identidades.
A noção de malandro refere-se a materiais literários, artísticos, ou à suposição de um estilo de conduta dos mais espertos no interior das camadas populares? Decerto o que motivou a celeuma envolvendo o "bolsista" da pesada tem a ver com a resistência em enxergar nele a possibilidade de exercer uma faculdade expressiva que não se ajusta à bainha estreita de sua "especialidade". No imaginário do senso comum salto alto, malandro pode ser grande amante, sambista talentoso, pé-de-valsa sedutor, compensando com façanhas criativas o quanto comete de infração para sobreviver. Já o narcotraficante é uma designação de embocadura policial, enquadrando uma pessoa atuante numa esfera de atividade que está longe de permitir tamanha simplificação. Tanto isso é verdade que o grande barato do noticiário é o jogo polissêmico dos atributos de cada personagem: Marcinho/ surfista, vapor, escritor, liderança do mal, traficante, classe média; João Moreira Salles/bom moço, documentarista, filantropo, banqueiro, cineasta, elite etc. A pergunta sobre o que difere um do outro trabalha essa imagem de um universo de pobreza, de misérias e de provações, do qual todos estamos tão afastados e que gostaríamos de algum modo de exorcizar. O gozado disso tudo é o sumiço e o silêncio do Marcinho, a quem se pretendia dar voz e uma existência digna.

Alba Zaluar responde

1.
Eu não diria que o fascínio é da marginalidade, pois esse é um termo mais amplo e que já foi muito criticado na década de 70 pelas suas implicações dualistas. Não é qualquer marginal, mas o que se destaca pela violência, pela busca do poder e da glória que lhe traz uma aura de herói. Não temos no Brasil heróis nacionais que se destacaram, como guerreiros, na defesa da nação, de parcela dela, ou da justiça. Os que se aproximam disso são personagens controvertidos, mais ridicularizados do que elogiados. Ao mesmo tempo, sendo um país de enormes desigualdades sociais, desenvolveu-se aqui uma certa condescendência e admiração por qualquer forma de negação da ordem instituída, mesmo quando esta se dá pela construção de uma outra ordem perversa, desigual, violenta e despótica. Sobretudo no cinema brasileiro observa-se a mitificação dos que violaram as leis e tornaram-se, por isso, inimigos da polícia e do sistema. Não importa se estes personagens tornaram-se, de fato, campeões de seu povo, colocando-se sobretudo na defesa de seus direitos e interesses. O problema é que, já mesmo no cangaço, os bandidos sociais do tipo romântico logo desapareceram, como demonstrou Amaury de Souza, para dar lugar aos que se tornaram profissionais do assalto e do sequestro, modo de se desligar do trabalho e se tornar rico e poderoso. É isso que Eric Hobsbawm, grande estudioso do assunto, chamou de ambivalência do bandido social. Hoje, na fase do crime-negócio transnacional, essa representação torna-se ainda mais obsoleta.

2.
A solidariedade, embora embase os mais altruístas projetos políticos, tem que existir minimamente para que a sociedade exista. Sem ela, estamos à mercê do princípio do maior ganho possível, característico do mercado, ou da busca pelo poder, marca do Estado. Por isso, diz-se que a solidariedade ou a reciprocidade são aquilo que caracteriza o social propriamente dito. As novas formas de ação política buscam fortalecer o laço social, oferecendo uma alternativa ao mercado e ao Estado, mas não prescindindo principalmente deste último. Não será a simples caridade que irá tirar o Brasil do campeonato da desigualdade mundial. Nem muito menos a mera conversão para as igrejas pentecostais, como sugerem alguns intelectuais cariocas.

3.
Pertencem a dois mundos diferentes. O malandro vivia da lábia, da habilidade, do jeito de enganar outra pessoa ou o próprio sistema, dando a volta por cima. Raramente matava, bastava-lhe dar uma rasteira. O que move os traficantes, favelados ou não, é a busca dos altíssimos lucros e do poder advindo da riqueza e da posse de arsenal tecnologicamente avançado, que inclui moderníssimas armas de fogo, a rapidez das comunicações e o entrelaçamento entre o legal e o ilegal, a começar pela associação com representantes das instituições encarregadas de defender a lei e a ordem. Para isso, precisa ser duro, inflexível e ter disposição para matar quem ameaçar esse lucrativo negócio.

QUEM SÃO

Sergio Miceli
É professor titular de sociologia da USP, autor, entre outros, de "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira" (Companhia das Letras) e organizador de "O Que Ler na Ciência Social Brasileira (1970-1995)" (Sumaré/Anpocs/Capes).

Alba Zaluar
É professora de antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e autora de "Um Século de Favela" (Ed. FGV) e "Condomínio do Diabo" (Ed. Revan).


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