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Sociólogo estava à frente da USP quanto à idéia de miscigenação como valor, diz presidente
FHC fala sobre Gilberto Freyre
entrevista a Mario Cesar Carvalho
A Universidade de São Paulo (USP)
ajudou a ofuscar a faceta mais inovadora da obra de Gilberto Freyre, afirma o presidente Fernando Henrique
Cardoso. FHC diz continuar crítico
em relação à tese da democracia racial, segundo a qual não há preconceito contra negros no Brasil, mas acha
que o grupo de sociólogos da universidade liderado
por Florestan Fernandes "não viu a importância" da
obra de Freyre, e não só nas técnicas de história do
cotidiano.
"Gilberto Freyre estava muito à frente (da USP) no
que diz respeito à idéia de miscigenação como um
valor", afirma, em entrevista por escrito à Folha.
FHC foi aluno de Florestan e quase teve Freyre em
sua banca de doutorado, em 1961. Freyre acabou recusando o convite de Florestan.
Mesmo a tese da democracia racial deve ser vista
sem maniqueísmo, para FHC: "A idéia de democracia racial deve ser criticada porque ela contém um
elemento de despiste, de mistificação mesmo. Mas
também contém um elemento de verdade".
Segundo o presidente, não havia uma "guerrinha
fria" da USP contra Freyre, como diz a filha do sociólogo, Sonia Freyre Pimentel. A oposição a Freyre deve ser entendida em perspectiva à pretensão da USP
de criar uma universidade em que não se produzisse
ideologia. "Gilberto Freyre era percebido como alguém que estava racionalizando a política colonialista portuguesa, como no tropicalismo, e também que
tinha um olhar benevolente quanto ao patriarcado
nordestino, no modo de tratar os escravos", diz.
O distanciamento maior entre a USP e Freyre
ocorreria em 1964, quando o sociólogo passou a defender o movimento militar. "Essa questão de 64, na
verdade, nos chocou muito", conta o presidente.
A filha de Gilberto Freyre diz que a USP moveu "uma
guerrinha fria", de natureza ideológica, contra o sociólogo. Colaboradores de Freyre dizem que sua obra foi jogada numa espécie de limbo ideológico nos anos 60 e 70 por
causa da oposição que lhe fazia a USP. Faz sentido esse tipo de acusação?
Não creio que se possa falar de uma "guerra fria" ou
uma "guerrinha fria". Nos anos 50 e 60, a USP tinha a
pretensão de ser uma universidade de estilo europeu, se possível germânico, em que não se produzia
ideologia. Havia muito mais uma paixão pela ciência. E o Gilberto Freyre era percebido como alguém
que estava racionalizando a política colonialista portuguesa, como no tropicalismo, e também que tinha
um olhar benevolente quanto ao patriarcado nordestino, no modo de tratar os escravos.
A principal restrição que o grupo de sociólogos da USP fazia à obra de Gilberto Freyre -a de que o conceito de democracia racial continha uma visão edulcorada do passado escravagista- continua válida?
Sem dúvida, se se for olhar com a lente de uma certa
objetividade, mais estrita, o conceito de democracia
racial era leniente quanto ao tratamento dos escravos pela casa-grande. A idéia de democracia racial
deve ser criticada porque ela contém um elemento
de despiste, de mistificação mesmo. Mas também
contém um elemento de verdade.
O problema todo é que, nas ciências sociais, não lidamos, maniqueisticamente, com o preto e o branco, o bom e o mau, o quente e o frio, o cru e o cozido.
Não estamos tratando o pensamento como os mitos
dos índios, já descritos por Lévi-Strauss. Há nuances. E existem diferenças nas relações raciais brasileiras, comparando-se com os Estados Unidos, por
exemplo. Gilberto Freyre sofreu uma forte influência
americana. Mesmo assim, não se sustenta a afirmação literal de que não temos preconceito. Esse foi, digamos, o ponto de discórdia entre a USP -Florestan Fernandes acima de tudo- e Gilberto Freyre.
As restrições de Florestan Fernandes às teses de Gilberto
Freyre não acabaram ofuscando um outro lado da obra,
aquele referente à história do cotidiano, na qual Freyre
estava anos-luz à frente da USP?
É verdade, talvez por isso não se viu a importância da
obra do Gilberto Freyre -e não só
quanto à história do cotidiano. Efetivamente, Gilberto Freyre estava muito à frente no que diz respeito à idéia
de miscigenação como um valor. Essa
postura pode ter algo de ideológico,
mas contém algo de certo também.
A visão não engajada, com que imaginávamos, na época, garantir a objetividade científica, não permitiu que víssemos alguns dos avanços
importantes da obra de Gilberto Freyre.
Florestan Fernandes faz elogios superlativos a Gilberto
Freyre nas cartas em que o convida, em 1961, para participar das bancas de doutoramento do senhor e de Octavio Ianni. Oferece passagens para Freyre, a mulher e os
dois filhos, acena com um pagamento generoso para cada exame, fala que o convite seria também uma homenagem. A impressão que fica é que Florestan estava tentando reatar com Freyre. Era isso o que estava ocorrendo? Se
era, por que a reaproximação não prosperou?
Não creio que Florestan estivesse querendo "reatar"
com Gilberto Freyre, quando o convidou para participar das nossas bancas, minha e do Octavio Ianni.
Florestan era um homem de personalidade complexa e generosa. Ao mesmo tempo em que brigava (como brigava com o Gilberto Freyre e brigou com Donald Pearson, que foi seu professor, por causa de
questões teóricas), percebia os outros lados de Gilberto Freyre. Acho que o convite foi sincero e não
simplesmente uma vontade de reatar relações, aliás
nunca rompidas.
As posições que Gilberto Freyre assumiu em 1964, de defesa do movimento militar, se coadunam com a obra do
sociólogo ou constituem uma ruptura?
Bom, essa questão de 64, na verdade, nos chocou
muito. Não era de imaginar que Freyre tomasse outra posição, porque ele não tinha a nossa visão de
mundo. Nós considerávamos que havia uma elite
dominante no Brasil que precisava sofrer um abalo
com a presença de massas urbanas na política. Aliás,
acho que isso era certo, mesmo.
O apoio de Gilberto Freyre aos militares contribuiu para
aumentar o distanciamento do sociólogo em relação ao
grupo da USP?
Claro que houve um distanciamento grande entre a
esquerda e Gilberto Freyre. Não posso falar muito
dessa época, pois, depois de 64, não estava mais no
Brasil. Não sei, especificamente, como é que a USP
reagiu, mas a atitude de Gilberto Freyre certamente
contribuiu para dificultar suas relações conosco.
O senhor, como sociólogo, sempre se opôs à tese da democracia racial. Já como presidente, assinou uma mensagem na qual destaca os "méritos (...) extraordinários" de
Freyre. Quem está certo: o presidente ou o sociólogo?
Sempre me opus à tese da democracia racial. Mas, de
qualquer maneira, não há essa contradição entre o
presidente e o sociólogo. Aqui, de novo, é o pensamento, como diria Lévi-Strauss, selvagem. Usa-se
sempre uma oposição, uma oposição binária. E essa
oposição binária se encarna em pessoas. No caso,
aqui, a dificuldade que existe é que a pessoa é a mesma, que sou eu.
Mas não é isso. Veja, eu expliquei anteriormente a
razão da tese da democracia racial. Ela contém grãos
de verdade, sobretudo na comparação com outras
situações, mas ela encobre aspectos da verdade. E é
preciso revelar o que ela encobre.
Então, quando eu disse que existem méritos extraordinários em Freyre, não foi por causa da democracia racial. Fiz uma conferência sobre Gilberto
Freyre, escrevi um prefácio no qual falo dele extensamente. E louvei outros aspectos de sua obra, como o
da sociologia do cotidiano, o de saber analisar os
costumes e ter uma visão antropológica inspirada na
formação que ele teve nos Estados Unidos, em Columbia, com (Franz) Boas e outros autores. Ele tinha
um olhar antropológico. Esses méritos extraordinários, a meu ver, estão aí. E há outro mérito extraordinário: Gilberto escrevia muito bem.
Foi o que ressaltei. Portanto não há nenhuma contradição entre o presidente e o sociólogo. É melhor
ter uma visão um pouco mais larga dessas questões e
dar, como dou, um crédito ao Gilberto Freyre como
um homem que tinha nas suas visões, às vezes, equívocos, às vezes acertos, mas que, no balanço, teve
uma contribuição positiva.
Gilberto Freyre está sendo reabilitado pelas novas gerações de sociólogos e historiadores e quase não se ouvem
mais restrições à tese da democracia racial. Não estaria
em curso aí uma reabilitação acrítica? O que precisa ser
reabilitado em Gilberto Freyre na sua opinião?
Bem, acho que essa reabilitação não faz referência à
tese da democracia racial, porque não a discute. Ela
não está mais no centro da polêmica. Na época, queríamos mostrar que havia preconceito, porque há
preconceito. Continuo achando isso. E há movimentos negros. No meu governo, eu apóio os movimentos negros. Fiz o Conselho Nacional dos Negros. Eu
tenho nomeado, expressamente, negros para posições altas. O subchefe militar do Gabinete de Segurança Institucional é negro. Temos uma mulher negra que ocupa uma posição muito alta, na Fundação
Palmares. Convidei-a há pouco para ser representante do Brasil no exterior. Ela declinou. Mas, enfim,
é preciso ter ações exemplares, ações, digamos, que
corrijam a tendência ao preconceito. Não estou do
lado da reabilitação acrítica. É melhor uma reabilitação crítica.
Não foi de agora o que escrevi sobre Gilberto Freyre. Já faz muito tempo. Ele teve a capacidade de entender algumas peculiaridades brasileiras, mesmo
com exageros, que o puseram, realmente, na vanguarda de muitos terrenos da sociologia. E, também,
foi capaz de fazer um painel importante de nossa sociedade, pois estruturou uma visão sobre o Brasil:
certa, errada, mais certa, menos errada. Isso importa. Mas o que importa mais é que teve a audácia de
pensar e o fez com competência muito grande.
Além do mais, ele era um homem que trabalhava
em muitos terrenos: era crítico literário, lidava com
psicologia, lidava com sociologia. Não lidava com
economia. Essa é a diferença maior dele para com os
outros, como eu, que fomos formados em São Paulo,
numa visão mais estruturada do ponto de vista econômico.
Não sei nem se precisaria haver uma reabilitação
do Gilberto Freyre. Ele nunca foi, digamos, posto à
margem. Foi objeto, isso sim, de polêmicas, que são
normais no mundo acadêmico. Não acho que precise ser reabilitado em nada. O que tem que ser criticado -eu continuo criticando- é a tese da democracia racial. E o que eu acho que é valioso, ressaltei nas
poucas coisas que escrevi sobre o Gilberto. Continuo
achando que ele tem imenso valor. Aliás, isso é um
truísmo, o Brasil inteiro sabe disso.
Se formos ver qualquer um dos grandes autores
-pegue Rousseau. Recentemente, li uma crítica
num dos jornais de São Paulo, a respeito do Cassirer,
que é um autor alemão que escreveu uma introdução ao Rousseau. E li, também, com muito interesse,
os comentários de Voltaire numa edição do "Contrato Social" que o presidente Sarney me deu de presente. Pois bem, pegue o Rousseau.
Há teses que são vagas, outras são criticáveis, outras não são bem explícitas, dá para ter mais de uma
interpretação. Quer dizer que, com isso, nós estamos
pondo Rousseau à margem? Que teremos que, um
dia, reabilitar Rousseau? O pensamento não é feito
de gigantes e anões. É feito de uma permanente tentativa de melhorar a visão que se tem do mundo. Às
vezes, se vê mais, às vezes, se vê menos. A mesma
pessoa erra num ponto, acerta no outro. O que se diz
é datado, ninguém pode ter a pretensão de ter uma
teoria fora da história, do tempo.
Então é nessa perspectiva que acho que o Gilberto
não precisa ser reabilitado. Ele sempre foi e será um
pensador importante.
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