São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Conjunto da obra não recebeu análise; contos e ensaios ainda aguardam publicação
Fragmentos de um discurso

por José Mario Pereira

O escritor pernambucano Gilberto Freyre construiu uma obra poderosa, rica e variada de interpretação do Brasil, cuja verdadeira dimensão ainda não foi totalmente avaliada. Onde estão os livros conjunturais sobre Gilberto? Não temos. O que temos são visões sobre alguns aspectos de sua produção, como os livros de Ricardo Benzaquem de Araújo, José Aderaldo Castello e Edilberto Coutinho. A razão pode ser o volume do que escreveu - talvez só Câmara Cascudo chegue perto dele nesse item-, mas há também muito de ideológico nisso. O poeta João Cabral, seu primo, é taxativo: trata-se da maior prosa brasileira. E arremata: "Foi uma figura admirável e não vejo seu par na história da nossa cultura". O mineiro Guimarães Rosa era outro entusiasta. Quando publicou "Casa-Grande & Senzala", Gilberto provocou reações intempestivas na comunidade intelectual. Afonso Arinos considerou chula a linguagem do livro; depois se arrependeu. Rodolfo Garcia viu no sociólogo um simples "cabotino". Já Roquette Pinto elogiou a obra do estreante. Anos depois, Nelson Rodrigues, no seu estilo característico, afirmou: "Se me perguntassem quais são os brasileiros mais inteligentes que conheço, eu responderia: Gilberto Freyre, Gilberto Freyre, Gilberto Freyre, e Gilberto Freyre". E foi além, provocador: "Gilberto Freyre é o maior de todos os brasileiros. Pode empurrar com o lado do sapato, como uma barata seca, todos esses garotos que andam por aí".

Inéditos
Ainda há muito para se fazer em torno do mestre de Apipucos. Há que se publicar seus inéditos, em princípio três livros organizados pelo gilbertólogo Edson Nery da Fonseca: "Americanidade e Latinidade da América Latina" (ensaios), "Palavras Repatriadas" (conferências no exterior) e "Três Histórias Mais ou Menos Inventadas" (ficção). Nesse último está um conto escrito para a revista "Playboy" sobre a fixação de um homem por sua motocicleta, tratada com todos os lances de uma paixão humana. Faz-se necessário também reunir as entrevistas, sempre saborosas, que constituirão uma espécie de continuação de "Tempo Morto e Outros Tempos - Trechos de um Diário de Adolescência e Primeira Mocidade, 1915-1930". Há de tudo nelas, de comentários a respeito de sua sexualidade a considerações sobre Sônia Braga ("a incrível mistura fez dela um exemplo do tipo metarracial"), Vera Fischer ("é uma mulher massacrada pelo consumo e usada das mais diversas maneiras") e o palavrão ("é insubstituível; é tropical, inclusive"). Enquanto no Brasil queixava-se de que os jornais nem sequer comentavam seus livros, na França a Gallimard publicava "Casa-Grande & Senzala" com prefácio de Lucien Febvre e, logo depois, na Itália, a Einaudi lançava a mesma obra com introdução de Fernand Braudel. Em 24 de agosto de 1967, escreve-lhe o romancista José Américo de Almeida: "Você está pago de algum desconhecimento que seu merecimento tenha sofrido em seu país. A maior proclamação veio de fora". Entre os estudos que Gilberto Freyre reclama está o do contraste e confronto de sua obra com a de escritores como Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo. O acervo do primeiro, já consultado por Antônio Dimas, possui quase todos os livros de Gilberto anotados por Mário. E há que se editar a extensa correspondência, certamente uma das maiores produzida por intelectual brasileiro. A Fundação Gilberto Freyre, do Recife, dirigida por sua filha, Sônia Freyre, e por Gilberto Freyre Neto, está terminando a preparação desse material, cerca de 10 mil cartas e documentos. Entre os correspondentes nacionais estão José Lins do Rego (122 cartas), Cícero Dias (87 cartas e cartões), Manuel Bandeira (55), Oliveira Lima, Monteiro Lobato, Assis Chateaubriand, Carlos Lacerda, José Guilherme Merquior, Darcy Ribeiro, Otto Maria Carpeaux, Cândido Portinari, Evaldo Cabral de Mello e Raymundo Faoro. Entre os estrangeiros destacam-se Roger Bastide, Roland Barthes, Fernand Braudel, Lucien Febvre, Gregório Marañon, Américo Castro, Julián Marías, Rudiger Bilden, H.L. Mencken, Amy Lowell e Fidelino de Figueiredo. Não se pode escrever a biografia intelectual de Gilberto Freyre sem examinar esse rico acervo. Afora elementos fundamentais para o entendimento de sua vida e obra, também a história cultural e política brasileira está ali presente. Tudo é pitoresco, curioso, documental. Numa carta, Monteiro Lobato diz que não vai responder ao questionário de "Ordem e Progresso" e que teme que Gilberto não consiga realizar o livro. Anos mais tarde, Darcy Ribeiro rende-se aos encantos da prosa gilbertiana e pede desculpas por não tê-la elogiado antes. Considerado por muitos um reacionário e um saudosista da casa-grande, Gilberto é consultado pelo historiador inglês Eric Hobsbawm em outubro de 1962, época em que preparava "Bandidos Sociais". Marxista inteligente, Hobsbawm lhe escreve com respeito e admiração.

Depoimentos na TV
Outra tarefa que se faz urgente é a transcrição e edição da grande quantidade de depoimentos na TV, em que Gilberto sempre destila comentários interessantes. Na morte de Tancredo Neves, seu amigo fraterno, ele não consegue ir até o fim: cai no choro. E, quando o Rio Capibaribe é contaminado por um vazamento de óleo, toma-se de indignação. É necessário igualmente organizar os discursos no Conselho Federal de Cultura, sediado no Rio de Janeiro, onde fazia intervenções que mais pareciam conferências, assim como publicar o catálogo de sua biblioteca e pôr em ordem o acervo fotográfico. Uma das correspondências mais fascinantes - do ponto de vista de um editor - é a trocada com José Olympio, hoje na Casa de Rui Barbosa, no Rio. A vida cultural do Brasil está ali comentada de forma íntima, às vezes cáustica. E a história editorial dos anos 30 em diante passa, intensamente, pela José Olympio. Ao longo dos anos, às cartas de José Olympio, já seu compadre, somam-se as de seus irmãos, Daniel e Athos. As primeiras cartas são escritas por Gilberto antes mesmo de ser editado na J.O. ("Casa-Grande & Senzala" saiu em 1933 pela Schmidt Editor e "Sobrados e Mucambos", em um volume, em 1936, pela Companhia Editora Nacional). Já no início da correspondência entre os dois, Gilberto mostra-se tenso com a confusão em torno de "Casa-Grande". Segundo ele, Augusto Frederico Schmidt vendera a editora e na negociação seu livro foi junto. Procurou então Sobral Pinto, mas este não quis ser seu advogado porque era amigo de Schmidt. Acabou contratando Arnon de Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor. Em certo momento escreve temeroso de que Arnon esteja fazendo o jogo dos novos donos da editora, e é acalmado por J.O.: Arnon estava se empenhando como podia. O poeta sempre negou que tivesse passado a perna no sociólogo, mas anos depois, já rico e famoso, ouviu de Gilberto: "Nunca esqueça, Schmidt, que eu estou na gênese de sua fortuna".

Descobridor de autores
Na José Olympio, Gilberto criou a coleção Documentos Brasileiros, e o volume inaugural foi "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, então seu íntimo amigo (hoje, numa atitude provinciana, muitos o vêem como o anti-Sérgio). Nesse trabalho Gilberto descobriu muitos autores e publicou as memórias de Oliveira Lima, uma influência decisiva em sua formação. É curioso verificar, na leitura dessas cartas, que ele viveu anos a fio do salário da editora. Quando viajou para Portugal e África, ausentando-se por mais de um ano, José Olympio remetia o dinheiro a dona Madalena, mulher de Gilberto. Para completar, as edições de seus livros eram impecáveis, e é justo dizer que depois de J.O. Gilberto Freyre não mais teve editor à sua altura.
A obra de Gilberto é uma mina rica e ainda pouco explorada. A crítica literária, por exemplo, continua tímida em relação a ela. Há um texto de Antonio Candido sobre Gilberto num livro comemorativo, os ensaios de José Aderaldo Castello e Edilberto Coutinho, já citados, e alguns excelentes estudos de J.G. Merquior, talvez o único em sua geração a reconhecer a grandeza do autor pernambucano. Desconheço a existência de textos de ensaístas do prestígio de Alfredo Bosi, Roberto Schwarz e Davi Arrigucci Jr. sobre qualquer aspecto de seu trabalho, o que é uma pena. Como declarou o próprio Gilberto, "se eu fosse depender da crítica brasileira, teria de me convencer de que sou um sujeito inteiramente insignificante". Gilberto Freyre não é para amadores. Não se pode entrar em seu universo com leviandade ou preguiça. Um dos estudos mais interessantes a ser feito é o das influências literárias que recebeu, seu apreço por escritores tão diversos como os espanhóis Pio Baroja e Angel Ganivet, os ingleses Walter Pater, Chesterton e o cardeal Newman e os franceses Proust e Maurras. Também seria louvável analisar melhor, na trilha do que vem fazendo Elide Rugai Bastos, o diálogo de Gilberto com o pensamento espanhol, em especial com a mística de Santa Teresa, São João da Cruz e Ramón Llull, o santo catalão de quem era devoto a ponto de visitar seu túmulo em Palma de Mallorca. A Espanha há muito reconheceu a grandeza de Gilberto: sobre ele já escreveu várias vezes, com entusiasmo, o filósofo Julián Marías, autor de um livro indispensável sobre o sistema intelectual de seu mestre Ortega y Gasset. Aguarda-se o dia em que alguém no Brasil se aventure a produzir sobre Gilberto obra de igual fôlego ou uma biografia intelectual da dimensão da que Walter Kaegi fez do historiador suíço Jacob Burckhardt.

Caricaturista e pintor
Escritor literário, Gilberto Freyre descrevia paisagens como ninguém, o que se pode constatar em "Nordeste". Foi também um excelente caricaturista e um pintor singular; calcula-se que tenha assinado uns 300 quadros, entre eles um bom retrato de Oliveira Lima, autor de "Dom João 6º no Brasil". Valeria a pena examinar esse material buscando conexões com a sua obra escrita. E fiquemos por aqui, pois são infindáveis as linhas de pesquisa que a produção gilbertiana possibilita.
A verdadeira comemoração dos 500 anos do Brasil é o centenário de Gilberto Freyre, sem dúvida o mais generoso intérprete do país. Dizia-se um "anarquista construtivo" e gostava das discordâncias inteligentes. Achava que só assim progredia o conhecimento. Certa vez, definiu-se como "um pobre e simples fazedor de livros". É uma ironia que, depois de décadas marginalizado pela maior parte da universidade brasileira, pareça aos 100 anos mais vivo do que nunca. De nada adiantaram o descaso e a negação: ele continua um desafio à inteligência dos que se preocupam em entender o Brasil. Que o leiam tendo em mente a observação do educador Anísio Teixeira: "Em outra época, seria o pensador de sua geração; neste século 20, é o seu maior pensador".


José Mario Pereira é jornalista e editor da Topbooks.


Texto Anterior: Enrique Larreta: Itinerário da formação
Próximo Texto: Gilberto Vasconcellos: Uma civilização dos trópicos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.