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Obra de Freyre opõe-se à dos cientistas sociais munidos de discurso feio e antierótico
Uma civilização dos trópicos
por Gilberto Vasconcellos
Jubilosa oportunidade o convívio durante dois anos no Recife, início dos
anos 80, trocando cartas, bilhetes, telefonemas. Embarquei com mulher e
filhos para morar no porto de Cabedelo,
Paraíba, a fim de escrever um ensaio sobre Gilberto Freyre, de que resultou o livrinho "O Xará de Apipucos", infelizmente vindo a lume depois de sua morte, mas ele teve
tempo ainda de lê-lo: criticou, corrigiu quase todos os
capítulos em que a imitação é homenagem.
Eu já o havia encontrado em São Paulo, entrevistando-o pela Folha. Nessa ocasião fui com ele de carro até o
portão do Palácio dos Bandeirantes, onde iria encontrar-se com o governador Paulo Maluf. Eu literalmente
desci quando chegamos ao portão, saltei, numa atitude
antijornalística, pois não queria presenciar o encontro
dele com o governador no palácio. Burrice minha. Arrependo-me amargamente.
Nas graças do xará
Depois escrevi no "Jornal da
Tarde" um artigo cotejando USP e Apipucos, intitulado
"A Diáspora da Sociologia Brasileira". Aí tive a sorte de
cair nas graças do xará, fui recebido por ele no Recife
como ministro de Estado. Estava vestido elegantíssimo
de gravata borboleta, gentil, irradiante, bem humorado,
convidou-me para almoçar em sua casa no solar de
Apipucos, o que em Pernambuco equivalia a um ritual
desfrutado por deuses.
Tomamos vinho branco português, depois do almoço
ofereceu-me uma caixa de charutos Dannerman, dizendo que era um presente cheio de aura dado pelo maestro Villa-Lobos. Sorrindo, observando-me atentamente: "O destino do charuto está na maneira de ascendê-lo". Aí ele me perguntou se havia eu privado com Sérgio
Buarque de Holanda em São Paulo e com Roland Barthes em Paris. Eu fiquei atônito com a pergunta ligando
São Paulo e Paris. Respondi a verdade: não. Mas, pensando bem, por que não? Isso poderia ter acontecido.
Sou amigo do Sergito e do Álvaro, os dois filhos do Serjão. Destarte, frequentei o Riviera, bar que ficava a 500
metros da rua Buri, onde morava o autor de "Raízes do
Brasil". E em Paris com Roland Barthes? Aí é outra história, como dizia Kipling.
Roland Barthes qualifica Gilberto Freyre de escritor
místico-erótico -Loyola tropical. Olhar guloso. Evitando o peremptório em seus ensaios. Sociologia do
gosto e do paladar. Sapio. Saboreando sempre um sisyfros, na definição de Nietzsche.
O crítico sergipano João Ribeiro percebeu na década
de 30 que "Casa-Grande & Senzala" não conclui, narrativa inconclusa, polimórfica, descartando a idéia de clímax tal qual recomendava o poeta Paul Valéry. Um tanto quanto irônico, sabendo dessa crítica de João Ribeiro, assinala Sérgio Buarque de Holanda que o xará de
Apipucos não escreveu senão um só livro, "Casa-Grande & Senzala". Tudo o mais seria repetição ou paráfrase
do primeiro livro, "totêmico", dizia-o Oswald de Andrade, sublinhando o método da saudade. O Proust da
sociologia brasileira traz o íntimo da cultura patriarcal e
popular, cuja base é menos negra do que lusa, afastando-se nesse aspecto antropológico de outros "tropicalismos" da indústria cultural.
Gilberto Freyre gostava de se defrontar intelectualmente com o paradoxo. O representante máximo da sociologia patriarcal da cultura escreve um livro com a
perspectiva do órfão e amante. "Casa-Grande & Senzala" é a visão do menino na história do Brasil e os segredos dos filhos de criação.
A letra reveste-se de ranço jesuíta, o limite grafocêntrico do patriarcalismo colonial burguês. Na época do
sarampo Internet, vale recordar que ele garatujava ao
escrever à mão no papel branco de Mallarmé, conforme
o belo título "Vida, Forma, Cor".
Não obstante a admiração por Sérgio Buarque de Holanda, carioca apaulistado, de quem foi amigo na juventude, meio "speed", agitado, boêmio dionisíaco, mas
intelectualmente apolíneo, Gilberto Freyre considerava-o estilisticamente abstrato, no sentido de que Sérgio
descreve o paraíso sem nele entrar.
Sinestesia sociológica
A essência do mistério na
sociologia de Apipucos é a cópula metarracial entre o
luso e o trópico, espécie de sinestesia sociológica. A metarraça obnubila o esperma. Os marujos de Cabral, falando a língua de Camões, pisando em índias nuas. O
amavio erótico translinguístico. A cópula do senhor
com o escravo seria arcaísmo pré-burguês.
Entusiasta do novo mundo que o português criou nos
trópicos, Gilberto Freyre não curte Caio Prado Júnior
por este considerar predatória a colonização portuguesa. Os autores marxistas, incluindo Darcy Ribeiro e Nelson Werneck Sodré, se insurgiram contra a interpretação gilbertiana de que a escravidão teria sido mansa e
doce, quase que um benefício para os escravos, abordando menos o escravo do eito do que o escravo doméstico. Isso não deixa de ser em parte verdade, o fluxo
sexual miscigenado neutralizando a exploração social:
o mito do sexo superando a drenagem da mais-valia para o além-mar.
À maneira de Oliveira Vianna, o colonialismo para
Gilberto Freyre não é uma categoria decisiva, como se
estivesse em segundo plano a dominação externa, tanto
que ele chega a afirmar que o escravo no Brasil foi um
co-colonizador. Todavia, hoje é mister
colocar a leitura da obra de Freyre em
outro patamar, sem ficar adstrito apenas
às mediações classistas.
O xará revolucionário está justamente
em sua tropicologia, o logos sobre a natureza tropical, que o levou a observar a
inexistência de quintal nos romances de
Machado de Assis. E, como se sabe, nossos sociólogos e
economistas nos últimos 50 anos, formados na paidéia
transoceânica da Cepal, são dendrofóbicos e insensíveis
à contemplação de um pé de couve, ou seja, são cientistas sociais munidos de um discurso feio e antierótico,
com raiva de quem sabe escrever e preza o valor da expressão, cingido apenas à variável monetária e inteiramente desconectado da flora, da fauna, do sol e da água.
Enfim, essa alienação desvitalizada da sociologia em relação à natureza dos trópicos é um fato escandaloso e de
consequências políticas desastrosas, conforme se verifica pelo desnacionalizado percurso Cepal-Cebrap-Palácio da Alvorada: o fetichismo da moeda ocultando a natureza, a energia, a tecnologia.
Ciência dos trópicos
O saudoso Severo Gomes,
um dos intelectuais paulistas mais argutos e sofisticados, foi um dos primeiros a perceber o caráter socialmente emancipador da tropicologia gilbertiana, a ciência dos trópicos atenta à importância decisiva da energia vegetal nos rumos da civilização brasileira. Civilização dos hidratos de carbono. Isso quer dizer o seguinte:
em Gilberto Freyre o ideólogo da apropriação da riqueza feita pelos senhores de engenho é quase irrelevante
em relação aos logos multidisciplinar da ciência dos
trópicos elaborada nos meados dos anos 60.
Eis o que há nele de revolucionário como sociólogo:
foi pioneiro em juntar energia da natureza e trabalho,
enfatizando a necessidade de criar uma autêntica civilização dos trópicos, e não uma mera e espúria civilização nos trópicos. Nessa diferença energética está o cerne de um roteiro descolonizado para o Brasil: o "socius"
dos trópicos, e não nos trópicos.
À semelhança do espanhol Miguel de Unamuno, ninguém como Gilberto Freyre era tão zeloso em permanecer imortal na posteridade. A única ressalva que faço ao
meu xará genial é não ter ele se aproximado mais intelectualmente de Luís da Câmara Cascudo.
Para mim o nome de seu instituto de pesquisa no Recife, em vez do dândi Joaquim Nabuco, deveria chamar-se Manoel de Oliveira Lima, nosso assombroso
Dom Quixote gordo, que sonhava o Brasil um país rico,
e não um país de ricos.
Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "As Ruínas do Pós-Real" e "O Príncipe
da Moeda", entre outros.
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