São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Obra de Freyre opõe-se à dos cientistas sociais munidos de discurso feio e antierótico
Uma civilização dos trópicos

por Gilberto Vasconcellos

Jubilosa oportunidade o convívio durante dois anos no Recife, início dos anos 80, trocando cartas, bilhetes, telefonemas. Embarquei com mulher e filhos para morar no porto de Cabedelo, Paraíba, a fim de escrever um ensaio sobre Gilberto Freyre, de que resultou o livrinho "O Xará de Apipucos", infelizmente vindo a lume depois de sua morte, mas ele teve tempo ainda de lê-lo: criticou, corrigiu quase todos os capítulos em que a imitação é homenagem. Eu já o havia encontrado em São Paulo, entrevistando-o pela Folha. Nessa ocasião fui com ele de carro até o portão do Palácio dos Bandeirantes, onde iria encontrar-se com o governador Paulo Maluf. Eu literalmente desci quando chegamos ao portão, saltei, numa atitude antijornalística, pois não queria presenciar o encontro dele com o governador no palácio. Burrice minha. Arrependo-me amargamente.

Nas graças do xará
Depois escrevi no "Jornal da Tarde" um artigo cotejando USP e Apipucos, intitulado "A Diáspora da Sociologia Brasileira". Aí tive a sorte de cair nas graças do xará, fui recebido por ele no Recife como ministro de Estado. Estava vestido elegantíssimo de gravata borboleta, gentil, irradiante, bem humorado, convidou-me para almoçar em sua casa no solar de Apipucos, o que em Pernambuco equivalia a um ritual desfrutado por deuses. Tomamos vinho branco português, depois do almoço ofereceu-me uma caixa de charutos Dannerman, dizendo que era um presente cheio de aura dado pelo maestro Villa-Lobos. Sorrindo, observando-me atentamente: "O destino do charuto está na maneira de ascendê-lo". Aí ele me perguntou se havia eu privado com Sérgio Buarque de Holanda em São Paulo e com Roland Barthes em Paris. Eu fiquei atônito com a pergunta ligando São Paulo e Paris. Respondi a verdade: não. Mas, pensando bem, por que não? Isso poderia ter acontecido. Sou amigo do Sergito e do Álvaro, os dois filhos do Serjão. Destarte, frequentei o Riviera, bar que ficava a 500 metros da rua Buri, onde morava o autor de "Raízes do Brasil". E em Paris com Roland Barthes? Aí é outra história, como dizia Kipling. Roland Barthes qualifica Gilberto Freyre de escritor místico-erótico -Loyola tropical. Olhar guloso. Evitando o peremptório em seus ensaios. Sociologia do gosto e do paladar. Sapio. Saboreando sempre um sisyfros, na definição de Nietzsche. O crítico sergipano João Ribeiro percebeu na década de 30 que "Casa-Grande & Senzala" não conclui, narrativa inconclusa, polimórfica, descartando a idéia de clímax tal qual recomendava o poeta Paul Valéry. Um tanto quanto irônico, sabendo dessa crítica de João Ribeiro, assinala Sérgio Buarque de Holanda que o xará de Apipucos não escreveu senão um só livro, "Casa-Grande & Senzala". Tudo o mais seria repetição ou paráfrase do primeiro livro, "totêmico", dizia-o Oswald de Andrade, sublinhando o método da saudade. O Proust da sociologia brasileira traz o íntimo da cultura patriarcal e popular, cuja base é menos negra do que lusa, afastando-se nesse aspecto antropológico de outros "tropicalismos" da indústria cultural. Gilberto Freyre gostava de se defrontar intelectualmente com o paradoxo. O representante máximo da sociologia patriarcal da cultura escreve um livro com a perspectiva do órfão e amante. "Casa-Grande & Senzala" é a visão do menino na história do Brasil e os segredos dos filhos de criação. A letra reveste-se de ranço jesuíta, o limite grafocêntrico do patriarcalismo colonial burguês. Na época do sarampo Internet, vale recordar que ele garatujava ao escrever à mão no papel branco de Mallarmé, conforme o belo título "Vida, Forma, Cor". Não obstante a admiração por Sérgio Buarque de Holanda, carioca apaulistado, de quem foi amigo na juventude, meio "speed", agitado, boêmio dionisíaco, mas intelectualmente apolíneo, Gilberto Freyre considerava-o estilisticamente abstrato, no sentido de que Sérgio descreve o paraíso sem nele entrar.

Sinestesia sociológica
A essência do mistério na sociologia de Apipucos é a cópula metarracial entre o luso e o trópico, espécie de sinestesia sociológica. A metarraça obnubila o esperma. Os marujos de Cabral, falando a língua de Camões, pisando em índias nuas. O amavio erótico translinguístico. A cópula do senhor com o escravo seria arcaísmo pré-burguês. Entusiasta do novo mundo que o português criou nos trópicos, Gilberto Freyre não curte Caio Prado Júnior por este considerar predatória a colonização portuguesa. Os autores marxistas, incluindo Darcy Ribeiro e Nelson Werneck Sodré, se insurgiram contra a interpretação gilbertiana de que a escravidão teria sido mansa e doce, quase que um benefício para os escravos, abordando menos o escravo do eito do que o escravo doméstico. Isso não deixa de ser em parte verdade, o fluxo sexual miscigenado neutralizando a exploração social: o mito do sexo superando a drenagem da mais-valia para o além-mar. À maneira de Oliveira Vianna, o colonialismo para Gilberto Freyre não é uma categoria decisiva, como se estivesse em segundo plano a dominação externa, tanto que ele chega a afirmar que o escravo no Brasil foi um co-colonizador. Todavia, hoje é mister colocar a leitura da obra de Freyre em outro patamar, sem ficar adstrito apenas às mediações classistas. O xará revolucionário está justamente em sua tropicologia, o logos sobre a natureza tropical, que o levou a observar a inexistência de quintal nos romances de Machado de Assis. E, como se sabe, nossos sociólogos e economistas nos últimos 50 anos, formados na paidéia transoceânica da Cepal, são dendrofóbicos e insensíveis à contemplação de um pé de couve, ou seja, são cientistas sociais munidos de um discurso feio e antierótico, com raiva de quem sabe escrever e preza o valor da expressão, cingido apenas à variável monetária e inteiramente desconectado da flora, da fauna, do sol e da água. Enfim, essa alienação desvitalizada da sociologia em relação à natureza dos trópicos é um fato escandaloso e de consequências políticas desastrosas, conforme se verifica pelo desnacionalizado percurso Cepal-Cebrap-Palácio da Alvorada: o fetichismo da moeda ocultando a natureza, a energia, a tecnologia.

Ciência dos trópicos
O saudoso Severo Gomes, um dos intelectuais paulistas mais argutos e sofisticados, foi um dos primeiros a perceber o caráter socialmente emancipador da tropicologia gilbertiana, a ciência dos trópicos atenta à importância decisiva da energia vegetal nos rumos da civilização brasileira. Civilização dos hidratos de carbono. Isso quer dizer o seguinte: em Gilberto Freyre o ideólogo da apropriação da riqueza feita pelos senhores de engenho é quase irrelevante em relação aos logos multidisciplinar da ciência dos trópicos elaborada nos meados dos anos 60.
Eis o que há nele de revolucionário como sociólogo: foi pioneiro em juntar energia da natureza e trabalho, enfatizando a necessidade de criar uma autêntica civilização dos trópicos, e não uma mera e espúria civilização nos trópicos. Nessa diferença energética está o cerne de um roteiro descolonizado para o Brasil: o "socius" dos trópicos, e não nos trópicos.
À semelhança do espanhol Miguel de Unamuno, ninguém como Gilberto Freyre era tão zeloso em permanecer imortal na posteridade. A única ressalva que faço ao meu xará genial é não ter ele se aproximado mais intelectualmente de Luís da Câmara Cascudo.
Para mim o nome de seu instituto de pesquisa no Recife, em vez do dândi Joaquim Nabuco, deveria chamar-se Manoel de Oliveira Lima, nosso assombroso Dom Quixote gordo, que sonhava o Brasil um país rico, e não um país de ricos.


Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "As Ruínas do Pós-Real" e "O Príncipe da Moeda", entre outros.


Texto Anterior: José Mario Pereira: Fragmentos de um discurso
Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: Lição de fora
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.