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Ponto de fuga
O futuro do passado
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Imagem e imaginação são palavras que
se unem na etimologia. Juntam-se mais
ainda em "Star Wars - Episódio 3: A Vingança dos Sith". De tal modo estão impregnadas uma da outra que, ali, imagem é
imaginação e imaginação é imagem. São
elas que, simbióticas, montam uma estrutura complexa, tão diferente da linearidade
com que as histórias eram contadas nos
dois episódios precedentes de "Star Wars".
Essa estrutura, porém, não é nem estática
nem mental nem abstrata. Ao contrário,
move-se num ritmo visual denso e encorpado. Os duelos embriagam-se, dionisíacos, menos pela coreografia dos lutadores
(como em "Matrix", "O Tigre e o Dragão",
"Herói", e alguns outros), do que pela extraordinária pulsação cinematográfica.
George Lucas declarou que, antes de iniciar a saga de "Star Wars", queria refilmar
os velhos "serials" de Flash Gordon. Os detentores da propriedade autoral, porém,
exigiram muito dinheiro. Conta o diretor:
"Na realidade não desejavam se separar
dos direitos -queriam Fellini para dirigir
Flash Gordon" (sic!). "Star Wars" nasce, assim, de uma frustração e de uma nostalgia.
Nunca negou suas origens antigas; basta
prestar atenção nas transições de uma cena
a outra. Elas empregam máscaras em diafragma, em leque etc., como era moda no
cinema dos anos de 1920 e 1930. "Star
Wars" foi feito com a memória de outros
filmes, muitos, e tão diversos. Lucas traz
para o presente, num apogeu, duas das
configurações mais essenciais que nasceram com o cinema. Uma é a ilusão do maravilhoso graças aos efeitos especiais: nisto,
é o descendente fiel de Méliès. A outra, é a
suntuosidade desmedida, em escala impossível: nisto, é o herdeiro de Griffith.
Covil
"Eu te imploro: permita-me amar minha
escravidão." A frase é de Agata Kozak, escritora polonesa. Anakin transmuta-se em
Darth Vader, em cena retomada de James
Whale e seu Frankenstein. Palpatine não é
um cientista, é um político. Como tal, constrói seu monstro com baixezas e traições já
que, e isso é bem ensinado no filme, quem
está no poder quer, antes de tudo, permanecer nele.
Super-homens
A filosofia clássica definia a liberdade como o domínio que o homem pode ter sobre
si mesmo. O amor seria, nesse pensamento,
ao mesmo tempo uma doença e uma servidão. O jedi, graças ao amor e à cólera, fragiliza-se, deixa-se invadir pelas sombras. Entrega-se, submisso, ao imperador. Que não
hesita em sacrificar seus escravos mais fiéis.
É possível aqui um paralelo com outro filme, "A Queda", de Oliver Hirschbiegel.
Trata-se de galáxia cinematográfica a milhares de anos luz. Mas, em ambos, há um
núcleo essencial de poder absoluto e de servidão voluntária. Situa-se em cúpula de dirigentes poderosos e de exércitos. O cerne
da carcaça metálica de Darth Vader é um
toco humano. A máscara assustadora esconde o frágil e ferido Anakin. Por trás do
bigodinho de Hitler há também um homem. À volta dele, obedientes, gravitam
outros seres humanos.
"A Queda" impõe várias questões abomináveis. Eis a pior, mais absurda: como tantos puderam entregar-se, com tal extremo,
à autoridade enlouquecida? Todos estão
mergulhados na mais transparente, completa e absoluta derrocada. Os gestos heróicos, no entanto, continuam, mecânicos.
Palpatine disse que o bem é uma questão de
ponto de vista. Em "A Queda", os heroísmos, as condecorações, a luta pela pátria,
são desmontados graças a uma ótica de relativismo. Medalhas, bandeiras, pátrias, coragem, suicídios nobres, e mesmo supremas renúncias, como a de aniquilar os próprios filhos para que eles não cresçam num
mundo mau, se vistos com simpatia, parecem gestos sublimes. "A Queda" expõe, pelo absurdo, o que há de irrisório, horrendo
ou sórdido em tudo isso.
Considerações intempestivas
Certas leituras críticas de "A Queda" sentiram o filme como propenso ao nazismo.
Ele humanizaria feras. Aquele bando enfiado num bunker suicida tinha sentimentos,
emoções, afetos, como cada um de nós. Infelizmente, fera é apenas metáfora. O nazismo nunca esteve para além do humano.
Como seria bom se estivesse.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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