São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

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Ponto de fuga

O futuro do passado

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Imagem e imaginação são palavras que se unem na etimologia. Juntam-se mais ainda em "Star Wars - Episódio 3: A Vingança dos Sith". De tal modo estão impregnadas uma da outra que, ali, imagem é imaginação e imaginação é imagem. São elas que, simbióticas, montam uma estrutura complexa, tão diferente da linearidade com que as histórias eram contadas nos dois episódios precedentes de "Star Wars". Essa estrutura, porém, não é nem estática nem mental nem abstrata. Ao contrário, move-se num ritmo visual denso e encorpado. Os duelos embriagam-se, dionisíacos, menos pela coreografia dos lutadores (como em "Matrix", "O Tigre e o Dragão", "Herói", e alguns outros), do que pela extraordinária pulsação cinematográfica.
George Lucas declarou que, antes de iniciar a saga de "Star Wars", queria refilmar os velhos "serials" de Flash Gordon. Os detentores da propriedade autoral, porém, exigiram muito dinheiro. Conta o diretor: "Na realidade não desejavam se separar dos direitos -queriam Fellini para dirigir Flash Gordon" (sic!). "Star Wars" nasce, assim, de uma frustração e de uma nostalgia. Nunca negou suas origens antigas; basta prestar atenção nas transições de uma cena a outra. Elas empregam máscaras em diafragma, em leque etc., como era moda no cinema dos anos de 1920 e 1930. "Star Wars" foi feito com a memória de outros filmes, muitos, e tão diversos. Lucas traz para o presente, num apogeu, duas das configurações mais essenciais que nasceram com o cinema. Uma é a ilusão do maravilhoso graças aos efeitos especiais: nisto, é o descendente fiel de Méliès. A outra, é a suntuosidade desmedida, em escala impossível: nisto, é o herdeiro de Griffith.

Covil
"Eu te imploro: permita-me amar minha escravidão." A frase é de Agata Kozak, escritora polonesa. Anakin transmuta-se em Darth Vader, em cena retomada de James Whale e seu Frankenstein. Palpatine não é um cientista, é um político. Como tal, constrói seu monstro com baixezas e traições já que, e isso é bem ensinado no filme, quem está no poder quer, antes de tudo, permanecer nele.

Super-homens
A filosofia clássica definia a liberdade como o domínio que o homem pode ter sobre si mesmo. O amor seria, nesse pensamento, ao mesmo tempo uma doença e uma servidão. O jedi, graças ao amor e à cólera, fragiliza-se, deixa-se invadir pelas sombras. Entrega-se, submisso, ao imperador. Que não hesita em sacrificar seus escravos mais fiéis. É possível aqui um paralelo com outro filme, "A Queda", de Oliver Hirschbiegel. Trata-se de galáxia cinematográfica a milhares de anos luz. Mas, em ambos, há um núcleo essencial de poder absoluto e de servidão voluntária. Situa-se em cúpula de dirigentes poderosos e de exércitos. O cerne da carcaça metálica de Darth Vader é um toco humano. A máscara assustadora esconde o frágil e ferido Anakin. Por trás do bigodinho de Hitler há também um homem. À volta dele, obedientes, gravitam outros seres humanos.
"A Queda" impõe várias questões abomináveis. Eis a pior, mais absurda: como tantos puderam entregar-se, com tal extremo, à autoridade enlouquecida? Todos estão mergulhados na mais transparente, completa e absoluta derrocada. Os gestos heróicos, no entanto, continuam, mecânicos. Palpatine disse que o bem é uma questão de ponto de vista. Em "A Queda", os heroísmos, as condecorações, a luta pela pátria, são desmontados graças a uma ótica de relativismo. Medalhas, bandeiras, pátrias, coragem, suicídios nobres, e mesmo supremas renúncias, como a de aniquilar os próprios filhos para que eles não cresçam num mundo mau, se vistos com simpatia, parecem gestos sublimes. "A Queda" expõe, pelo absurdo, o que há de irrisório, horrendo ou sórdido em tudo isso.

Considerações intempestivas
Certas leituras críticas de "A Queda" sentiram o filme como propenso ao nazismo. Ele humanizaria feras. Aquele bando enfiado num bunker suicida tinha sentimentos, emoções, afetos, como cada um de nós. Infelizmente, fera é apenas metáfora. O nazismo nunca esteve para além do humano. Como seria bom se estivesse.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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