São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005 |
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TOPOGRAFIA EXISTENCIALISTA DE PARIS
EM SUA VIDA E EM SUA
OBRA, JEAN-PAUL SARTRE
LEVOU A FILOSOFIA
ÀS RUAS E AOS CAFÉS
E TRANSFORMOU
BAIRROS COMO
SAINT-GERMAIN-DES-PRÉS
E MONTPARNASSE EM
ÍCONES DA CONTRACULTURA
OCIDENTAL DO PÓS-GUERRA
Na ensolarada tarde de sábado de 23 de abril, o bairro de Saint-Germain-des-Prés, encravado no coração de Paris, está fervilhando com a
chegada da primavera. Multidões de
turistas e moradores flanam por
suas ruas apinhadas de restaurantes
e cafés, patinadores e ciclistas realizam acrobacias arriscadas e shows
de música étnica da África ou América do Sul ocupam as praças do
bairro mais famoso da contracultura
ocidental dos últimos 60 anos, talvez
só comparável ao Greenwich Village, em Nova York.
A praça ao lado reúne grifes caras e badaladas, que antes se concentravam do outro lado do rio, no entorno do Arco do Triunfo, tradicional reduto da alta burguesia parisiense. Um brasileiro desavisado que passasse por lá e pelas ruas adjacentes poderia imaginar-se em uma versão multiplicada e mais sofisticada da rua Oscar Freire, em São Paulo, sobretudo por não ser raro ouvir em voz alta o português falado por brasileiras trajando calças jeans apertadas e botas de cano alto e segurando, com dificuldade, várias sacolas. Se no pós-guerra Saint-Germain-des-Prés era sinal de afetação intelectual, hoje é símbolo de voracidade consumista. Estrategicamente localizada entre os três cafés, a livraria Hune surge como um oásis para quem busca vestígios existencialistas na região, oferecendo várias edições e estudos sobre Sartre assim como o valioso catálogo da exposição que ocorre na Biblioteca Nacional de Paris, a maior já realizada sobre Sartre. É irônico pensar, contudo, que na praça onde o existencialismo literalmente chegou às ruas e aproximou a reflexão filosófica do dia-a-dia, Sartre só seja efetivamente lembrado nas prateleiras de uma livraria. Mas, se Sartre, o intelectual engajado por definição, desapareceu da vida cotidiana que o consagrou, pelo menos tem sido objeto de uma lenta, mas constante, reavaliação, sobretudo em sua produção ficcional e dramatúrgica, após décadas de ostracismo imposto pelo estruturalismo e suas derivações. Como lembra Bento Prado Jr., que conviveu com Sartre e Simone de Beauvoir durante sua estada no Brasil, em 1960, seus contos são "extraordinários". Richard Rorty, apesar de condenar a tentativa de fundir marxismo e existencialismo, destaca, em entrevista na pág. 9, passagens notáveis de "O Ser e o Nada". Já para Michel Contat, a "Crítica da Razão Dialética" é ainda o ataque mais consistente já feito ao sistema capitalista. Vinculando reflexão e práxis, Sartre sempre defendeu a revolta como premissa básica da existência e fundamento da liberdade do homem. É esse o fio condutor de suas obras ficcionais, dramatúrgicas e filosóficas. Homem múltiplo, sempre teve em alta conta a utilização do "mass media" pelos intelectuais, de que são exemplos sua reportagem "Furacão sobre Cuba" ou os programas de rádio para a "Temps Modernes" ou a criação do jornal "Libération". Sua coerência sem fissuras levou-o a cometer erros grosseiros de avaliação, como a insistência em apoiar o ditador soviético Josef Stálin mesmo quando os expurgos que cometera já se faziam claros. Paris é uma festa esvaziada A predominância do espaço público na vida de Sartre -ruas, cafés, praças ou mesmo as inúmeras viagens que fez, aos EUA, Cuba, União Soviética ou Brasil- reflete-se com a mesma intensidade em seus romances, suas peças e seus contos. As personagens estão sempre perambulando por ruas ou cafés, como em "Erostrato" e "Intimidade" (de "O Muro") e em "A Idade da Razão", ou, ao contrário, estão fechadas em espaços exíguos, como em "O Quarto" (de "O Muro") ou em "Entre Quatro Paredes". Os bairros por que transitam são pouco nobres (pelo menos à época), como Montmartre -na margem direita do Sena-, Montparnasse, Quartier Latin, além de Saint-Germain-des-Prés -estes na margem esquerda. Mas, apesar da fama deste último, é em Montparnasse, ao sul do jardim de Luxemburgo, que perambula a maior parte das personagens atormentadas dos romances de Sartre. Cafés freqüentados por ele, como o Coupole e o Dôme, nas imediações do bulevar Raspail, são hoje tomados no almoço por turistas e secretárias ou executivos que trabalham na maior torre de escritórios de Paris, que domina o bairro com seu revestimento negro. O Coupole -onde o protagonista de "Erostrato" janta pela última vez antes de realizar seu diabólico plano: descarregar o revólver a esmo nos transeuntes e depois suicidar-se- pertence hoje a uma rede de cafés que cobre boa parte da França. Nesse conto, o anti-herói Paul Hilbert traça um roteiro preciso das ruas do bairro, imaginando sua rota de fuga: mora no sexto andar de um prédio da rua Delambre -pois "é preciso ver os homens do alto"-, passeia pelas ruas de Odéssa e Montparnasse, onde costuma freqüentar prostitutas, aguça sua pontaria treinando em uma feira da rua Denfert-Rochereau e, para conceber seu plano, hospeda-se em uma pensão da rua Vavin; finalmente, no bulevar Edgar-Quinet, realiza os disparos. Aqui, a abordagem naturalista dos detalhes, em que o leitor quase perde a dimensão trágica do ato que está para se consumar, evoca a precisão cinematográfica de um Buñuel de "O Anjo Exterminador" (1962). Cinema, aliás, que foi uma das grandes paixões de Sartre, conforme lembra Michel Contat. Já o Dôme é um dos cenários de "Intimidade", onde se encontra a ambiciosa Rirette aguardando a chegada de Lulu, amiga que decidira abandonar o marido. "Aqui se sente o cheiro de roupa suja... Detesto os miseráveis", pensa ela, que prefere o elegante Café de la Paix, em frente à Ópera, do outro lado do Sena. No que parece uma auto-ironia de Sartre, Rirette se revolta contra Lulu por insistir em marcar encontros no Dôme: "Aqui eles bebem café o dia inteiro ou então café com creme, porque não têm dinheiro, e isso deve enervá-los [...] Como devem espantar-se aqueles que me vêem no meio desse pessoal, desses homens que não fazem a barba e dessas mulheres que têm ar nem sei de quê!". No final do conto, a cena de Lulu fugindo do ex-marido ao longo da rua Delambre (a mesma em que mora o Paul Hilbert de "Erostrato" e a Sara de "A Idade da Razão") remete a "Acossado" (1960), de Godard. Também fica em Montparnasse, precisamente na rua Campagne-Première, a casa de Bergère, o surrealista que irá iniciar nas artes e no sexo o jovem Lucien, protagonista da contundente novela "A Infância de um Chefe" (de "O Muro"). É nos cafés e dancings do Quartier Latin que Lucien e seus amigos vão divertir-se às escondidas com jovens vindas da província. É na rua Saint-André-des-Arts, como uma das etapas de seu aprendizado para tornar-se líder, que ele espanca um imigrante. E será em um dos cruzamentos principais do bairro, ao ver-se refletido em uma vitrina na esquina da rua des Écoles com o bulevar Saint-Michel, que Lucien -morador da chique rua Raynouard, perto da torre Eiffel- se dá conta de que não é mais um jovem trôpego, mas um "chefe" consumado -que adota posições nacionalistas, anti-semitas e colaboracionismo com os nazistas. Nisso, Sartre é tributário da melhor poesia e ficção do século 19, como a de Poe, Baudelaire ou Zola, onde o indivíduo -temeroso ou desafiador- se defronta com a metrópole e seu índice mais evidente -a multidão. Mas, em sua prosa, Sartre inverte essa relação, esvaziando Paris tanto de aglomerações quanto de importância política. Em "A Idade de Razão", por exemplo, Mathieu Delarue busca compreender os fatos que irrompem em sua vida até então sem sobressaltos -a contingência-, mas não a partir dos elementos objetivos que se lhe apresentam, mas voltando-se para sua experiência interior, da qual não consegue desgarrar-se. Passado em dois dias e três noites, em que Mathieu perambula atônito pela cidade em busca de dinheiro para realizar o aborto da amante, "A Idade da Razão" é em grande parte responsável pela temática e a dinâmica da literatura beat -trata-se de um romance "on the road" a pé. Vazia de massas, Paris também é esvaziada de importância continental, numa antecipação da geopolítica bipolar que iria se configurar no pós-guerra e em que a França seria coadjuvante. Pois, nesse romance, tudo o que conta para o destino da Europa está sendo decidido bem longe de Paris: na Espanha, onde se dava a heróica resistência ao fascismo de Franco, e no eixo Londres-Berlim, onde se buscava uma saída diplomática para evitar a iminente eclosão da Segunda Guerra. Nova geografia da contestação Na Paris de hoje, a geografia da contestação mudou radicalmente, abandonando o circuito da "rive gauche" e deslocando-se para o norte e nordeste da capital. É lá que se concentram as massas imigratórias vindas das ex-colônias francesas na África e na Ásia ou ainda imigrantes mais recentes, como europeus do Leste e chineses. Nessa nova realidade, uma caminhada pelo antigos redutos existencialistas pode mostrar como as posições políticas de Sartre e sua defesa intransigente da liberdade voltam a adquirir uma súbita atualidade. A duas quadras da sofisticada praça Sartre-Simone de Beauvoir, operários de origem africana, falando em sua língua nativa, reparam a fachada de um edifício. No Quartier Latin, nas ruas atrás do liceu onde estudou Sartre -o Henri 4º-, restaurantes árabes se acotovelam para atrair a atenção dos turistas. Às 21h30 de uma segunda-feira 24 de abril, na estação Châtelet-Les Halles, um dos entroncamentos do gigantesco metrô parisiense, um jovem negro é cercado por dois policiais, depois seis, e interpelado aos gritos e de forma agressiva -até onde a reportagem pôde acompanhar. A imigração, juntamente com a defesa dos direitos de outras minorias, parecem recolocar na ordem do dia em todas as sociedades do Ocidente a questão subjacente em toda a obra de Sartre: o Outro. Talvez seja agora o momento de sua filosofia -expurgada dos erros, entre os vários acertos, que o homem Sartre cometeu- provar sua atualidade. Texto Anterior: + política: A imaginação contra o poder Próximo Texto: + cronologia Índice |
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