São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

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Filósofo alemão interpreta o "não" à Carta européia como a interrupção democrática e popular de um processo burocrático e defende uma Constituição "legível", que seja capaz de "estimular a fantasia"

A imaginação contra o poder

Jürgen Habermas

Em referendos com elevada participação, os eleitores respondem com um "não" democrático avassalador ao primeiro projeto para uma Constituição Européia em dois dos Estados-membros fundadores da Comunidade Européia. Esse maior acidente imaginável é comentado inteligentemente por Jean-Claude Juncker: "A Europa não deixa as pessoas mais sonharem. Assim como ela é, a Europa não é amada e por isso rejeitada na forma que ela deveria ter conforme a sua Constituição". O diagnóstico silencia sobre um dado: uma Constituição ilegível não pode estimular a fantasia. Ilegível o projeto já é pela razão ordinária de conservar o cipoal de tratados internacionais e não ser, como toda e qualquer Constituição genuína, um arcabouço transparente de normas fundamentais. Mas a ilegibilidade tem uma razão mais profunda: falta a perspectiva que permitiria às pessoas reconhecer por que a Europa necessita de uma constituição, agora.


Analisado no seu resultado, o voto quer dizer: "Não desse modo". Mas "como de outro modo?" é uma pergunta à qual um plebiscito não pode responder


Em vez de abusar das eleições européias para discutir temas nacionais, teria sido indicado fazer da tão invocada "finalité" ou do porquê do processo de unificação o tema do debate: queremos uma Europa que seja capaz de atuar politicamente, nos planos interno e externo? Ou será que os acertos intergovernamentais bastam para forçar o espaço econômico unificado no espartilho e fomentar assim uma concorrência favorável ao crescimento? Queremos o aprofundamento ou uma ampliação sem aprofundamento? Deverá a Europa acumular a força necessária para influir no regime econômico internacional, ou será que ela se deixa privar das múltiplas opções disponíveis entre o "welfare state" burocrático e o radicalismo da concorrência, no vórtice de uma globalização descontrolada?
Certamente uma Constituição deve ser apenas o marco institucional do debate sobre as alternativas políticas. Será que o próprio processo constituinte pode vincular-se ao debate sobre determinadas políticas? À diferença de seus modelos clássicos, as constituições supranacionais hoje não nascem mais de um ato revolucionário, não surgem da noite para o dia, mas no decorrer de décadas. Felizmente os cidadãos já vivem em Estados que asseguram as liberdades fundamentais. Por isso o processo não é impulsionado essencialmente pelos cidadãos, mas por governos eleitos. Enquanto todos se beneficiavam dele, os cidadãos estavam satisfeitos. Durante muito tempo, o projeto logrou legitimar-se apenas a partir dos seus resultados. Mas, em tempos de profundas transformações da economia mundial, a Europa pouco compreensível à primeira vista engendra conflitos distributivistas, para os quais essa forma da legitimação pelo "output" não basta mais. Agora os cidadãos querem saber para onde conduzirá o projeto que diariamente intervém nas suas vidas. Caso a unificação européia queira angariar a anuência dos cidadãos, deverá ligar-se a uma perspectiva política.

Conflitos reprimidos
O fracasso dos referendos levou à irrupção do debate em torno dessa perspectiva. É certo que os políticos não definiram em tempo hábil e com suficiente clareza os objetos do debate. Não quiseram pôr em risco o confortável estilo burocrático de uma unificação de cima para baixo, propondo um tema polarizador. De qualquer modo, o chão da Europa está minado pelos interesses conflitantes dos Estados-membros mais ricos e mais pobres, maiores e menores, mais antigos e mais recentes. Os mitos das histórias nacionais contracorrentes também produzem sulcos profundos. Os políticos tiveram suas razões para se esquivarem à discussão pública sobre a meta da unificação européia. Durante décadas, varreram a sujeira para debaixo do tapete. Agora o povo teimoso dos eleitores lhes joga essa sujeira na frente da porta.
Aberto ou sorrateiro, o triunfo diante das conseqüências do "não", esperadas assim ou assado, revela mais sobre o conflito reprimido em torno das metas do que os sentimentos extremamente ambivalentes e as motivações mistas dos próprios eleitores. Depois da comunicação do resultado do referendo francês, os partidários xenófobos de [Pim] Fortuyn [líder da extrema direita holandesa, morto em 2002] juntaram-se nos Países Baixos a Bill Kristol, porta-voz dos neoconservadores de Washington, exclamando com satisfação pelo mal alheio: "Vive la France!". Uns querem agora colocar seus estilos nacionais de vida à prova d'água, outros exultam diante do colapso da resistência da velha Europa à expansão alegremente forçada dos mercados globalizados e das eleições livres. O pêndulo oscila de um extremo a outro. Mas os extremistas não são os únicos contentes com o resultado dos referendos. Os defensores do Estado-nação o são por motivos errôneos, os do livre mercado por motivos corretos.
Muitos temem uma transferência maior de direitos de soberania à esfera européia. Ressentem-se da falta de um "povo europeu", por isso divulgam a palavra de ordem de que os Estados Unidos da Europa não podem existir. Os defensores da soberania nacional só podem conceber o tipo de solidariedade que o Estado Constitucional efetivamente exige dos seus cidadãos na forma tradicional de uma consciência nacional artificialmente forjada. Apostam ilusoriamente na capacidade de funcionamento de um Estado nacional que há muito tempo já se viu obrigado a desistir de cobrar impostos das suas empresas mais rentáveis. Em tal situação, já é mais realista a satisfação sorrateira dos defensores do livre mercado, que nada temem tanto quanto as intervenções do poder estatal, tendentes a domesticar o capitalismo.
A Constituição teria ampliado a capacidade de ação política das instituições européias e exposto suas decisões a uma pressão maior de legitimação. Em perspectiva neoliberal, o primeiro fato induz apenas a movimentos errados, ao passo que o segundo perturba o mecanismo dos mercados automonitorados. A meta almejada foi atingida com a imposição das liberdades econômicas fundamentais, a instituição do Mercado Comum, o pacto de estabilidade e a união monetária. O resto fica por conta do Comissário Europeu da Concorrência e dos juízes do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. Os neoliberais se dão bem com os tratados de Nice.
[O primeiro-ministro britânico] Tony Blair e os outros haverão de interromper o processo de ratificação. O fracasso não maculará a Grã-Bretanha, como esperado, mas a França. Blair, que assumirá em julho a presidência da UE, pode apostar que a reserva britânica diante da integração européia seja apoiada nos próximos tempos também pelos governos francês e alemão. Findo o gabinete [de Dominique de] Villepin [premiê francês], Nicolas Sarkozy [ministro do Interior da França] pretende entrar na via inglesa. E o que mais podemos esperar de Angela Merkel [líder dos Democratas Cristãos na Alemanha, candidata da oposição para a chefia de governo]?
Em Berlim, ela nos brindou com um presidente da República que é um liberal em matéria de economia ("via preferencial para o trabalho"), em Bruxelas com um presidente da Comissão atabalhoado e sem rosto identificável. No debate sobre a adesão da Turquia à União Européia, o populismo de Angela Merkel também não a qualifica como defensora apaixonada da Europa. Seu exercício do constrangedor ritual de submissão à política belicista de Washington não foi esquecido. Podemos compreender o despertar repentino de inclinações européias em agitadores republicanos como Newt Gingrich: o cenário mais provável é a deriva do nosso continente economicamente unificado, mas em vias de decomposição como grandeza política, na direção do vórtice da potência hegemônica.

"Não desse modo"
A evolução previsível é, porém, uma bofetada no rosto do eleitor, cujo protesto voltou-se contra a classe política na sua totalidade e expressa um impulso democrático, o de sustar um processo que passa por cima da sua pessoa, de interrompê-lo ao menos por um instante. O "não" é também um protesto contra a falsa consciência de partidos que claramente se reconhecem na descrição luhmanniana do sistema político e resistem apenas estrategicamente aos ruídos importunos advindos do entorno da população eleitora. Não cabe ignorar de nariz empinado ou mesmo ferretear como patológicas as manifestações democráticas da vontade política da semana passada. Ralhar contra plebiscitos em geral é igualmente inconveniente. Referendos populares são um corretivo saudável, necessário até, de um Poder Executivo enregelado, que paralisa o vaivém entre governo e oposição. À medida que se sentiam deficientemente representados, os eleitores tinham um bom motivo para fazer oposição ao regime sem oposição em Bruxelas.
Não importa quais tenham sido as suas motivações, mas foi tão pouco razoável o que os cidadãos quiseram expressar no seu "não"? De qualquer modo, o voto de uma maioria dos eleitores franceses não se voltou contra a continuidade do processo de unificação da Europa, se tomarmos ao pé da letra a fundamentação dos votos socialistas pelo "não". Analisado no seu resultado, o voto quer dizer: "Não desse modo". Mas "como de outro modo?" é uma pergunta à qual um plebiscito não pode responder.
Um aprofundamento da União Européia com o objetivo da consolidação e garantia da união monetária por meio de uma harmonização gradual das políticas fiscal, social e econômica dos Estados-membros abre a perspectiva de recuperar nesse plano capacidades de ação que os Estados perderam. Mesmo no Ocidente, que pôs em marcha e ainda impele a modernização capitalista, deve haver espaço para vários modelos de sociedade. Um recado podemos ler com certeza no voto dos eleitores: nem todas as nações ocidentais estão dispostas a aceitar, no seu país e em escala mundial, os custos culturais e sociais da falta de políticas compensatórias, promotoras do bem-estar social, que os neoliberais lhes querem impor em nome de um aumento acelerado do bem-estar.
Ocorre que um protecionismo europeu também não vai longe. A ampliação de capacidades democraticamente legitimadas de ação das nossas instituições em Bruxelas e Estrasburgo deve vincular-se ao objetivo de dar vigência a idéias cosmopolitas em prol de outra ordem internacional. Precisamos reerguer-nos também com a perspectiva de dar o melhor de nós para que as invocações eufemísticas da "global governance" se transformem em políticas domésticas palpáveis em escala mundial.
Quem suspeitar antiamericanismo nessa agenda que permite que as pessoas novamente "sonhem com a Europa" perdeu o contato com os nossos amigos americanos. Meus amigos não se sentem representados por Bill Kristol e Newt Gingrich. Estão desesperados diante de uma UE em vias de auto-anulação. Não poderemos nos furtar ao dever de assumir uma posição no conflito cultural que hoje divide a América azul e vermelha. Também não está em nosso interesse fechar os olhos diante desse conflito.

Aprofundamento
A vinculação do processo de elaboração da Constituição a uma determinada perspectiva política não significa ancorar uma "policy" na própria Constituição. Muito pelo contrário, um aprofundamento da União Européia conduziria à superação da paralisia de acertos intergovernamentais celebrados em uníssono e daria vez e voz aos cidadãos da Europa. Somente então surgiria o espaço para uma concorrência aberta em torno da orientação política básica da União Européia. Hoje, a União é paralisada pelo conflito irresolvido entre representações de objetivos incompatíveis. As instituições européias devem internalizar esse conflito e simultaneamente liberá-lo, para que ele possa encontrar soluções produtivas.
O procedimento para essa alternativa à violência natural das relações econômicas e sociais, não importa quão improvável o seu sucesso seja, está previsto nos artigos 43 e 44 do Tratado de Nice. De acordo com eles, alguns membros fundadores da União Européia poderiam tomar a iniciativa de descobrir se num primeiro momento os Estados-membros associados na união monetária podem ser convencidos para uma "cooperação reforçada". As regras dessa cooperação poderiam indicar a via a uma Constituição futura. As disposições vigentes para uma cooperação mais estreita entre no mínimo oito Estados-membros são menos restritivas do que as correspondentes regulamentações no projeto da Constituição. Como uma tal práxis deve "ser acessível a todos os Estados-membros em conformidade com o art. 43 b", outros Estados-membros não poderiam compreender tal processo como exclusão, mas apenas como um convite a tomar posição diante de um aprofundamento energicamente iniciado da União Européia e eventualmente somar forças com ele. Desse modo poder-se-ia evitar que os governos passassem à ordem do dia, ignorando assim a vontade democraticamente articulada dos cidadãos da união.
No entanto, situações maduras para a decisão carecem de pessoas que agarrem a oportunidade, por menor que seja. Jean-Claude Juncker [primeiro-ministro de Luxemburgo] teria o tamanho e a vontade para tanto. Falta-lhe, porém, o poder. Zapatero [premiê espanhol] ainda não está há muito tempo na atividade política, e de Berlusconi [primeiro-ministro italiano] nem precisamos falar. Na política doméstica, [o presidente francês Jacques] Chirac e [o chanceler alemão Gerhard] Schröder, os candidatos natos, lutam de costas contra a parede. A coragem do desespero por vezes libera forças insuspeitas. Schröder e [o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Joschka] Fischer não conseguiriam ganhar as eleições com o tema da Europa. Mas caso usassem a campanha eleitoral para tornar manifesta uma alternativa mais esperançosa ao cenário paralisante da rotina continuísta e da deriva, eles emitiriam um sinal, e a sua saída do palco adquiriria um contorno. Na história, nada de essencial muda sem atos simbólicos, sem signos que as gerações futuras olham em retrospectiva com o fim de obterem um ponto arquimédico para o seu futuro. A geração de 68 já foi sensível a idéias românticas.

Jürgen Habermas é pensador alemão e um dos principais filósofos vivos. É autor de "O Futuro da Natureza Humana" (ed. Martins Fontes), entre outros livros.
Este texto foi originalmente publicado no diário "Süddeutsche Zeitung".
Tradução de Peter Naumann.


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