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O patrimônio da diferença
PARA ANTROPÓLOGA, HISTÓRIA DO PAÍS REVELA SUCESSIVAS TENTATIVAS
DE NEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA FÍSICA E CULTURAL DOS ÍNDIOS
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há um grande divisor de águas na
maneira de se perceberem os índios.
Até muito recentemente -e ainda existem resquícios felizmente cada vez
mais isolados dessa visão- entendia-se que os índios estavam aí como resquício do passado e destinados a desaparecer física e culturalmente.
A partir sobretudo do final
da década de 1980, percebeu-se
que os índios estavam aqui para ficar, e que faziam parte do
futuro do Brasil.
As variações sobre esses temas são muitas: na colônia,
procurava-se evangelizar os índios, escravizá-los ou pelo menos transformá-los em trabalhadores braçais, em suma incorporá-los por baixo à sociedade colonial.
Morreram nos aldeamentos
aos milhares, em poucos anos,
de causas então desconhecidas.
Uma explicação teórica a essa
mortandade chegou no final do
século 18: biologicamente, afirmou-se com De Pauw, o Novo
Mundo era um local de senescência precoce, em que não havia grandes mamíferos como
na África e onde a civilização
não podia prosperar porque a
humanidade era acometida de
prematura velhice antes de poder atingir a plena maturidade.
O desaparecimento dos índios se tornava assim, pela primeira vez, um destino biológico. Quase um século mais tarde, o darwinismo social explicava pela seleção natural o declínio populacional dos índios
sem aparentemente atentar
para as guerras movidas nesse
período aos índios em todas as
Américas para controle das
terras.
Outra vertente de programas
de desaparecimento biológico
dos índios eram as políticas de
miscigenação, das quais a mais
famosa foi a do marquês de
Pombal em 1755, mas que José
Bonifácio endossou na tentativa de criar uma nação homogênea correspondendo ao novo
Estado do Brasil.
O século 19 agregou a noção
de civilização à de catequização
e em larga parte a substituiu. O
"progresso" -para o qual os índios estavam "atrasados"- sucedeu à "civilização", da República até o fim da Segunda
Guerra Mundial. Depois do
"progresso", veio o "desenvolvimento". Em muitos sentidos,
catequização, civilização, progresso e desenvolvimento são
avatares uns dos outros na medida em que preconizam mudança cultural. Mas há diferenças significativas.
Etapas da cobiça
O historiador José Oscar
Beozzo distingue com razão
dois grandes períodos da política indigenista no Brasil: até
cerca de 1850, os índios eram
sobretudo cobiçados como
mão de obra; a partir de 1850,
cobiçavam-se sobretudo as terras deles.
"Desinfestar os sertões" do
país dos seus índios passou a
ser entendido como condição
de progresso. Aldeá-los fora de
seus territórios tradicionais era
um modo de dar acesso às terras deles. O mapa das terras indígenas no Brasil de hoje é o
mapa das terras que até recentemente não interessavam a
ninguém.
Foi com a cobiça de suas terras que os índios passaram a ser
considerados como entraves,
empecilhos ao desenvolvimento. Agora um programa de assimilação passava a ser estratégico para tentar descaracterizar
legalmente os índios enquanto
sujeitos de direitos territoriais,
reconhecidos pelo menos desde 1680 e inscritos em todas as
Constituições brasileiras desde
a de 1934.
As tentativas de "emancipação" dos índios das décadas de
1970 e 1980 repetiram estratégias do último quartel do século
19 que dissolviam aldeamentos
a pretexto de que os índios estivessem misturados com o resto
da população.
"Desenvolvimento" foi o
mantra do pós-guerra e em nome dele fez-se por exemplo a
Revolução Verde [que disseminou novas técnicas agrícolas].
Outra ideia mestra, provocada
pelos horrores do racismo nazista, foi a do direito à igualdade, inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos
da Organização das Nações
Unidas, de 1948, e também na
Convenção 107 da Organização
Internacional do Trabalho
(OIT), de 1957, essa respondendo ao racismo do apartheid.
O direito à igualdade, essencial sem dúvida, de certa forma
obnubilou outro direito fundamental, o direito à diferença.
Sartre já dizia que a forma de
racismo liberal era aceitar a
igualdade dos homens desde
que despidos de qualquer especificidade cultural.
A grande inovação do final
dos anos 1980 e que ganhou
corpo nos anos 90 foi o reconhecimento desse direito à diferença. A grande introdutora
desse direito no âmbito internacional foi a Convenção 169
da OIT, adotada em 1989, que
revisava em grande parte a convenção de cunho assimilacionista de 1957.
Uniformidade nacional
No domínio da diferença, a
questão da língua sempre foi
sensível: é provavelmente o
traço mais reconhecível de todo grupo étnico. Há pouco tempo ainda se proibia falar ou publicar em catalão na Espanha,
com a consequência -curiosa,
aliás- de que há toda uma geração catalã que não sabe escrever sua língua porque apenas a falava em casa, clandestinamente.
A ideia de que cada país deva
falar uma única língua faz parte
de uma concepção de Estado
do século 18, assente em uma
única comunidade homogênea
em todos os seus aspectos: religiosos, linguísticos, culturais
em geral. Ora, países como esses são a exceção, e não a regra.
Mas, durante pelo menos dois
séculos, tentou-se no Ocidente
dar realidade a essa utopia.
No Brasil não foi diferente.
Em 1755, o marquês de Pombal
exigiu o uso do português e
proibiu o do nheengatu, um tupi gramaticalizado pelos jesuítas e introduzido pelos missionários na Amazônia.
Nos últimos 20 anos, a situação mudou consideravelmente:
na Constituição de 1988 se assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas
maternas no ensino fundamental e agora abundam cartilhas em línguas indígenas.
Há alguns anos, o município
de São Gabriel da Cachoeira, no
Amazonas, reconheceu quatro
línguas oficiais, das quais três
são indígenas. E, agora, o IBGE
anuncia que incluirá as línguas
indígenas nas perguntas do
próximo Censo.
Todas essas iniciativas marcam uma distância clara da
ideologia assimilacionista de
algumas décadas atrás. A diferença linguística -e o Brasil
tem pelo menos 190 línguas indígenas- passou a ser vista como patrimônio.
Dessas 190 línguas e dialetos,
a grande maioria é falada por
menos de 400 pessoas. Ora, a
estrutura e a gramática das línguas encerram toda uma visão
de mundo: Benveniste mostrou, por exemplo, que as categorias da filosofia de Aristóteles eram as próprias categorias
gramaticais do grego. Calculem
os riscos que corremos.
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga e professora da Universidade de Chicago.
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