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Monólogo paciente
COM APENAS UMA FALANTE FLUENTE, O IDIOMA POIANAUA É ENSINADO
EM SALA DE AULA PARA QUE PRÓXIMAS GERAÇÕES POSSAM REUTILIZÁ-LO
LUIZA BANDEIRA
ENVIADA ESPECIAL A MÂNCIO LIMA (AC)
Parecem intermináveis
os 30 segundos em que
Railda Manaitá, 79, interrompe a conversa
para tentar lembrar,
em silêncio, como se diz "bananeira" em poianaua. Para qualquer um, seria um "branco" trivial. Mas, quando uma língua
tem só três falantes, uma palavra
esquecida é mais do que isso.
Railda olha para cima e se concentra. A insistência traduz o espírito dos poianauas: em um esforço conjunto, o grupo indígena
tenta recuperar um idioma que
foi proibido há quase cem anos e
resgatar, com isso, uma identidade que parecia perdida.
A tarefa é árdua. Até hoje, a
única história conhecida de língua que ressurgiu é a do hebraico, que perdeu seu uso durante a
diáspora judaica e ficou restrito
às cerimônias religiosas por cerca de 1.800 anos. Foi recriado
como língua oficial em Israel.
O poianaua começou a desaparecer por volta de 1910, quando os índios foram sequestrados
e escravizados na extração de
borracha. A primeira providência dos seringalistas foi proibir o
uso do idioma indígena e criar
uma escola para que todos
aprendessem o português.
Quem falava poianaua era castigado. Tinha os olhos furados,
dentes e unhas arrancados e era
açoitado, de acordo com o linguista Aldir de Paula, da Universidade Federal de Alagoas. "Os
patrões foram inteligentes. É pela língua que existe controle social", diz.
Nos últimos 20 anos, morreram quase todos os falantes da
língua, que eram crianças à época do contato. Após a escravização, os índios passaram a ter vergonha do idioma, que ficou quase esquecido.
Hoje, os cerca de 500 índios
poianauas vivem onde funcionava a fazenda, em Mâncio Lima
(AC), quase na fronteira com o
Peru. Quem ainda fala a língua
aprendeu escondido: além de
Railda, seu irmão, Luiz Manaitá,
85, e o ex-cacique Mario Puyanawa, 65. Mas Railda é a única
que ainda é fluente na língua.
Desobediência
Criança nos anos de maior repressão, ela só lembra de ouvir
falar na proibição uma vez. "Mas
minha mãe não obedecia." Em
casa, longe dos olhos dos patrões, Joana Manaitá continuava
a falar poianaua. Foi devido a essa desobediência da mãe que ela
e o irmão, Luiz, aprenderam o
idioma.
Railda aprendeu a falar observando os mais velhos. Pegou os
parentes de surpresa. "Ela vai falar nossa língua", comemoraram
quando pronunciou as primeiras
palavras, conta Railda, repetindo
a frase em poianaua.
Mas a transmissão cessou aí.
Nenhum filho de Railda aprendeu a língua. A neta Joana, 31, diz
que não aprendeu porque, quando era criança, a identidade indígena não era valorizada. "A gente
sabia que era índio, mas isso não
mudava nada. Ninguém queria
aprender poianaua".
Foi somente com o início do
processo de demarcação da terra
que a cultura poianaua começou
a ser valorizada. Em 2002, um
ano após o reconhecimento pela
Funai [Fundação Nacional do
Índio], a escola local passou a se
chamar Escola Estadual Ixubãy
Rabuy Puyanawa e adotou um
modelo de ensino que valoriza a
cultura indígena.
A partir daí, o local criado para
destruir o poianaua se tornou o
principal foco de resistência à
extinção do idioma.
A escola vai do ensino infantil
ao médio. Todas as manhãs, os
232 alunos respondem à chamada em poianaua e dançam músicas indígenas. Eles aprendem
nomes de animais, de partes do
corpo, números e frases simples
em poianaua.
O conteúdo das disciplinas é
traduzido pelo professor Samuel
Puyanawa, filho de Mario, de
quem herdou um caderno com
anotações em poianaua. Nas aulas de matemática, por exemplo,
os nomes dos números são ensinados também em poianaua.
Mas, apesar do esforço, os resultados ainda são limitados. Nenhum aluno consegue manter
um diálogo na língua. Uma gramática está sendo produzida,
mas o sucesso do projeto dos
poianauas ainda depende de
Railda. Só ela sabe, por exemplo,
a entonação das palavras.
Complexidade
Morador da aldeia, Jósimo
Constante, 20, fala inglês e espanhol e tenta aprender o poianaua. "Mas a lógica é bem mais
complicada".
A complicação à qual se refere
é reflexo de um sistema linguístico que traduz uma forma diferente de enxergar o mundo. São
essas riquezas, escondidas na diversidade dos idiomas, que desaparecem quando morrem as línguas. No poianaua, por exemplo,
existem quatro formas diferentes de falar "nós": uma que inclui
somente o interlocutor, outra
para um grupo que não o inclui,
uma terceira que inclui o interlocutor e todos os presentes e
uma que significa todos os seres,
todas as criaturas.
Tantas palavras para "nós" são
reflexo da importância do coletivo para a etnia. "Eles fizeram várias assembleias até decidir escrever a língua e ensiná-la na escola. Levou muito tempo", diz a
pedagoga Maristela Walker, da
Universidade Federal do Acre.
Os poianauas sabem que também vai levar muito tempo até o
projeto de recuperação dar resultado. Como os pais não falam,
as crianças não têm como usar o
conhecimento adquirido na escola em casa. Por isso, ninguém
espera que os alunos comecem a
falar a língua naturalmente. "A
ideia é que eles cresçam e ensinem o idioma para os filhos", diz
a diretora da escola, Olinda dos
Santos, 49.
Mas paciência não parece ser
problema para os poianauas. Depois de intermináveis segundos,
Railda Manaitá lembra da palavra: "xiku", diz, aliviada. E volta a
contar suas histórias.
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