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Coro da selva
MUNICÍPIO
EM QUE SE FALA
O MAIOR NÚMERO
DE LÍNGUAS
NAS AMÉRICAS
OFICIALIZA, ALÉM
DO PORTUGUÊS,
TRÊS IDIOMAS INDÍGENAS,
FATO INÉDITO
NO PAÍS
FLÁVIA MARTIN
VITOR MORENO
ENVIADOS ESPECIAIS A SÃO GABRIEL DA
CACHOEIRA (AM)
Português, espanhol,
baniua, uanano, kuripako, nheengatu, uerequena, tucano e
arara. Luiz Laureano,
62, fala ou pelo menos entende
cada uma dessas nove línguas.
O auxiliar administrativo Marino Fontes, 31, é fluente ou
consegue entender seis idiomas. Eles não são os únicos poliglotas de São Gabriel da Cachoeira (AM). Na cidade, a 860
km de Manaus, indígenas de 22
etnias dão um jeito de se comunicar em cerca de 20 línguas.
Banhada pelas águas do rio
Negro, a cidade está estrategicamente localizada na tríplice
fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, na região
conhecida como Cabeça do Cachorro. Pela proximidade física, os são-gabrielenses incorporaram o espanhol a seu caldeirão linguístico.
Em 2002, a Câmara Municipal de São Gabriel aprovou a lei
nº 145, que oficializou três dessas línguas -baniua, nheengatu e tucano-, fazendo da cidade a primeira no país com língua oficial além do português.
Com 76,31% de sua população declarada indígena segundo o último Censo, São Gabriel,
de quase 40 mil habitantes,
ocupa uma área maior do que
Portugal. Os superlativos não
param por aí. A cidade concentra o maior número de línguas
das Américas.
Exclusão
O linguista Gilvan Müller,
um dos idealizadores da lei, diz
que antes da oficialização muitos eram excluídos por não falarem o português, já que a língua é o canal de acesso aos serviços públicos.
"Havia uma situação em São
Gabriel igual à da África do Sul
na época do apartheid, em que
a maioria era indígena e, no entanto, a única língua oficial era
a da minoria", diz Müller.
Um dos fatores que explicam
a profusão de línguas da região
é a tradição do casamento entre
etnias diferentes. Matrimônios
na mesma etnia são considerados relações consanguíneas.
Andreza Andrade, gerente do
Instituto Socioambiental, entidade que estuda as etnias locais
há 23 anos, explica que a língua
paterna predomina, mas que as
crianças também aprendem a
da mãe. Nas escolas indígenas,
o português costuma ser
aprendido mais tarde.
A diversidade linguística sobreviveu até ao nheengatu -ou
língua geral-, introduzido por
missionários na tentativa de
uniformizar as línguas indígenas e que contribuiu para a extinção de algumas delas. Hoje, o
risco é que, com a predominância do tucano, outros idiomas
minoritários desapareçam.
A tentativa de oficializar essa
diversidade não vingou. Depois
da regulamentação da lei, em
2006, a prefeitura tinha o prazo
de um ano para providenciar a
emissão dos documentos públicos nas três línguas, além do
português. A sinalização urbana, as lojas e as propagandas
institucionais deveriam ir pelo
mesmo caminho.
Nas ruas há poucas placas de
sinalização, mesmo em português. Nem a Câmara Municipal
nem o único hospital da cidade
ou a prefeitura possuem equipe
de tradutores a postos, como
previsto na lei. O Conselho Municipal de Política Linguística,
que deveria ter sido criado para
fiscalizar a aplicação da lei,
tampouco saiu do papel.
A lei prevê também que a rádio municipal tenha programação nas três línguas. Atualmente, só há em duas. Em tucano,
Rigoberto Assis, da etnia uanana, apresenta o "Boa Noite, Rio
Negro". A rádio tem ainda o
"Desperta, São Gabriel", em
nheengatu. Gerente da rádio,
Elke Oliveira diz que é difícil
encontrar um locutor fluente
em baniua.
As esperanças de fazer valer a
lei foram renovadas em janeiro,
quando ocorreu na cidade um
fato inédito na política brasileira: a eleição de prefeito, vice e
presidente da Câmara indígenas. São eles, respectivamente:
Pedro Garcia, da etnia tariana,
que fala tucano; André Fernando e Rivelino Ortiz, baniuas.
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