São Paulo, domingo, 12 de julho de 2009

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Coro da selva

MUNICÍPIO EM QUE SE FALA O MAIOR NÚMERO DE LÍNGUAS NAS AMÉRICAS OFICIALIZA, ALÉM DO PORTUGUÊS, TRÊS IDIOMAS INDÍGENAS, FATO INÉDITO NO PAÍS

FLÁVIA MARTIN
VITOR MORENO
ENVIADOS ESPECIAIS A SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM)

Português, espanhol, baniua, uanano, kuripako, nheengatu, uerequena, tucano e arara. Luiz Laureano, 62, fala ou pelo menos entende cada uma dessas nove línguas. O auxiliar administrativo Marino Fontes, 31, é fluente ou consegue entender seis idiomas. Eles não são os únicos poliglotas de São Gabriel da Cachoeira (AM). Na cidade, a 860 km de Manaus, indígenas de 22 etnias dão um jeito de se comunicar em cerca de 20 línguas.
Banhada pelas águas do rio Negro, a cidade está estrategicamente localizada na tríplice fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela, na região conhecida como Cabeça do Cachorro. Pela proximidade física, os são-gabrielenses incorporaram o espanhol a seu caldeirão linguístico.
Em 2002, a Câmara Municipal de São Gabriel aprovou a lei nº 145, que oficializou três dessas línguas -baniua, nheengatu e tucano-, fazendo da cidade a primeira no país com língua oficial além do português.
Com 76,31% de sua população declarada indígena segundo o último Censo, São Gabriel, de quase 40 mil habitantes, ocupa uma área maior do que Portugal. Os superlativos não param por aí. A cidade concentra o maior número de línguas das Américas.

Exclusão
O linguista Gilvan Müller, um dos idealizadores da lei, diz que antes da oficialização muitos eram excluídos por não falarem o português, já que a língua é o canal de acesso aos serviços públicos.
"Havia uma situação em São Gabriel igual à da África do Sul na época do apartheid, em que a maioria era indígena e, no entanto, a única língua oficial era a da minoria", diz Müller.
Um dos fatores que explicam a profusão de línguas da região é a tradição do casamento entre etnias diferentes. Matrimônios na mesma etnia são considerados relações consanguíneas.
Andreza Andrade, gerente do Instituto Socioambiental, entidade que estuda as etnias locais há 23 anos, explica que a língua paterna predomina, mas que as crianças também aprendem a da mãe. Nas escolas indígenas, o português costuma ser aprendido mais tarde.
A diversidade linguística sobreviveu até ao nheengatu -ou língua geral-, introduzido por missionários na tentativa de uniformizar as línguas indígenas e que contribuiu para a extinção de algumas delas. Hoje, o risco é que, com a predominância do tucano, outros idiomas minoritários desapareçam.
A tentativa de oficializar essa diversidade não vingou. Depois da regulamentação da lei, em 2006, a prefeitura tinha o prazo de um ano para providenciar a emissão dos documentos públicos nas três línguas, além do português. A sinalização urbana, as lojas e as propagandas institucionais deveriam ir pelo mesmo caminho.
Nas ruas há poucas placas de sinalização, mesmo em português. Nem a Câmara Municipal nem o único hospital da cidade ou a prefeitura possuem equipe de tradutores a postos, como previsto na lei. O Conselho Municipal de Política Linguística, que deveria ter sido criado para fiscalizar a aplicação da lei, tampouco saiu do papel.
A lei prevê também que a rádio municipal tenha programação nas três línguas. Atualmente, só há em duas. Em tucano, Rigoberto Assis, da etnia uanana, apresenta o "Boa Noite, Rio Negro". A rádio tem ainda o "Desperta, São Gabriel", em nheengatu. Gerente da rádio, Elke Oliveira diz que é difícil encontrar um locutor fluente em baniua.
As esperanças de fazer valer a lei foram renovadas em janeiro, quando ocorreu na cidade um fato inédito na política brasileira: a eleição de prefeito, vice e presidente da Câmara indígenas. São eles, respectivamente: Pedro Garcia, da etnia tariana, que fala tucano; André Fernando e Rivelino Ortiz, baniuas.


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