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PONTO DE FUGA
A Provença e os vírus
JORGE COLI
especial para a Folha, na Provença
Aix-en-Provence foi a primeira
cidade fundada por Roma fora da
península itálica. Criava-se a
"Província" romana, que se tornou
Provença, da qual Aix seria a capital. O burgo desdobrou seu território desde o final da Idade Média,
durante o Renascimento e no
Grande Século, construindo seus
edifícios com uma pedra de tons
calorosos e dourados. Cresceu aos
poucos, sem surtos de riqueza ou
demografia, discretamente harmônica. Labiríntica ao norte, na
trama medieval, ordenada ao sul
por um projeto barroco, Aix é uma
cidade rara, onde não se tem a
sensação de ruptura entre os espaços privados e as ruas ou praças.
Ela abriga, tranquiliza, facilita o
convívio. O "Cours Mirabeau",
passeio criado em 1650, espécie de
grande salão urbano, alongado,
coberto pela abóbada dos plátanos
gigantescos e pontuado por fontes,
forma seu eixo. Este equilíbrio delicado vem sendo corroído, nas últimas décadas, por dois vírus terríveis: os arquitetos restauradores,
que são, como em qualquer parte
do mundo, desprovidos de todo
sentido de história; e a especulação
imobiliária, universalmente predadora e desprovida de todo escrúpulo. A cidade tem sido desfigurada. Agora, uma pequena mostra, em Aix, apresenta três ignóbeis projetos para "redesenhar o
perfil do Cours Mirabeau", visando a transformações radicais. Resta saber até quando o encanto mágico de Aix-en-Provence vai continuar operando.
SOBREVIVÊNCIA - Desde o século 19 até a Segunda Guerra
Mundial, a Provença parou no
tempo. Seu velho fundo de civilização mediterrânea pôde sedimentar-se longamente, sob a luz mais
pura e céu límpido. Os falsos e tenebrosos esforços de "modernização" e "desenvolvimento" não conseguiram destruir por completo esta mescla de paisagem cristalina e
cultura solar. O verão na Provença
é, ainda, aquilo que mais se assemelha ao paraíso terrestre.
PASTIS - Ao pé da montanha de
Santa Vitória, enorme calcário
branco com sombras azuis, incessantemente pintado por Cézanne,
existe um restaurante chamado
Thomé. Em 1906, ele recebia a visita de Eduardo 7º da Inglaterra,
conduzido em automóvel por um
certo senhor Gras, como explicita
uma placa selada na parede, deixando dúvidas sobre a importância maior, do monarca ou do veículo. As mesas ficam dispostas no
jardim, sob castanheiros. Não há
luxo, nem ostentação: o jantar delicioso custa menos de US$ 30. Há
cordialidade e o canto das cigarras. Nestes nossos tempos devastados, Thomé é um minúsculo e aristocrático oásis.
CAMINHOS - Altíssimos artistas, incontáveis, da Idade Média
até nós, recriaram a cultura da
Provença, onde nunca houve relação direta entre opulência material e efervescência criadora. Para
descobri-la, pode-se começar pelo
fluxo ritmado de Fréderic Mistral,
nos cantos do "Poema do Ródano"
ou de "Mirêio", estes últimos traduzidos para o português por Manuel Bandeira. A prosa áspera de
Jean Giono revela, em alguns dos
maiores romances deste século, a
densidade primitiva e pagã da Alta Provença. Mais que todos, Cézanne captou o rigor imóvel e
transparente, atmosférico e mineral, de personagens, frutas, pinheiros e rochedos.
Jorge Coli é historiador da arte.
Coli@hotmail.com
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