São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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PONTO DE FUGA

A Provença e os vírus

JORGE COLI
especial para a Folha, na Provença

Aix-en-Provence foi a primeira cidade fundada por Roma fora da península itálica. Criava-se a "Província" romana, que se tornou Provença, da qual Aix seria a capital. O burgo desdobrou seu território desde o final da Idade Média, durante o Renascimento e no Grande Século, construindo seus edifícios com uma pedra de tons calorosos e dourados. Cresceu aos poucos, sem surtos de riqueza ou demografia, discretamente harmônica. Labiríntica ao norte, na trama medieval, ordenada ao sul por um projeto barroco, Aix é uma cidade rara, onde não se tem a sensação de ruptura entre os espaços privados e as ruas ou praças. Ela abriga, tranquiliza, facilita o convívio. O "Cours Mirabeau", passeio criado em 1650, espécie de grande salão urbano, alongado, coberto pela abóbada dos plátanos gigantescos e pontuado por fontes, forma seu eixo. Este equilíbrio delicado vem sendo corroído, nas últimas décadas, por dois vírus terríveis: os arquitetos restauradores, que são, como em qualquer parte do mundo, desprovidos de todo sentido de história; e a especulação imobiliária, universalmente predadora e desprovida de todo escrúpulo. A cidade tem sido desfigurada. Agora, uma pequena mostra, em Aix, apresenta três ignóbeis projetos para "redesenhar o perfil do Cours Mirabeau", visando a transformações radicais. Resta saber até quando o encanto mágico de Aix-en-Provence vai continuar operando.

SOBREVIVÊNCIA - Desde o século 19 até a Segunda Guerra Mundial, a Provença parou no tempo. Seu velho fundo de civilização mediterrânea pôde sedimentar-se longamente, sob a luz mais pura e céu límpido. Os falsos e tenebrosos esforços de "modernização" e "desenvolvimento" não conseguiram destruir por completo esta mescla de paisagem cristalina e cultura solar. O verão na Provença é, ainda, aquilo que mais se assemelha ao paraíso terrestre.

PASTIS - Ao pé da montanha de Santa Vitória, enorme calcário branco com sombras azuis, incessantemente pintado por Cézanne, existe um restaurante chamado Thomé. Em 1906, ele recebia a visita de Eduardo 7º da Inglaterra, conduzido em automóvel por um certo senhor Gras, como explicita uma placa selada na parede, deixando dúvidas sobre a importância maior, do monarca ou do veículo. As mesas ficam dispostas no jardim, sob castanheiros. Não há luxo, nem ostentação: o jantar delicioso custa menos de US$ 30. Há cordialidade e o canto das cigarras. Nestes nossos tempos devastados, Thomé é um minúsculo e aristocrático oásis.

CAMINHOS - Altíssimos artistas, incontáveis, da Idade Média até nós, recriaram a cultura da Provença, onde nunca houve relação direta entre opulência material e efervescência criadora. Para descobri-la, pode-se começar pelo fluxo ritmado de Fréderic Mistral, nos cantos do "Poema do Ródano" ou de "Mirêio", estes últimos traduzidos para o português por Manuel Bandeira. A prosa áspera de Jean Giono revela, em alguns dos maiores romances deste século, a densidade primitiva e pagã da Alta Provença. Mais que todos, Cézanne captou o rigor imóvel e transparente, atmosférico e mineral, de personagens, frutas, pinheiros e rochedos.


Jorge Coli é historiador da arte.
Coli@hotmail.com



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