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Jogo duro
Treinador da seleção que encantou o mundo em 1982, mas não ganhou a Copa, Telê Santana sintetiza o avanço e o retrocesso da sociedade brasileira, diz psicanalista
MARCOS FLAMÍNIO PERES
EDITOR DO MAIS!
N
o técnico Telê Santana -bicampeão
mundial com o São
Paulo em 1992 e
93 e figura emblemática da seleção canarinho
que encantou o mundo em
1982, mas não ganhou a Copa
da Espanha-, o psicanalista
Tales Ab'Saber identifica uma
contradição latente, tanto no
futebol quanto na sociedade
brasileiros.
A conclusão surgiu após dirigir, com Rubens Rewald, "Esperando Telê", trabalho de seleção de entrevistas dadas pelo
técnico a órgãos de comunicação e que será exibido nos dias
22 e 29/8 no Centro Universitário Maria Antonia (tel. 0/
xx/11/ 3255-7182), em SP.
Ab'Saber, que é membro do
Departamento de Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae,
diz na entrevista abaixo que
Telê (1931-2006) representou
uma evolução enorme no futebol brasileiro, ao defender o futebol arte e a lisura administrativa. Mas, ao mesmo tempo,
reiterou a tradição conservadora brasileira ao declarar, literalmente, que "no futebol não
há lugar para homossexuais".
Esse avanço acompanhado
de retrocesso seria o movimento dialético que nunca se cumpre na sociedade brasileira.
O psicanalista desenvolve esse ponto de vista ao falar do recente "caso Richarlyson" [leia
texto na outra pág.], e da auxiliar Ana Paula Oliveira, que,
após ser severamente punida
por um erro cometido em um
jogo da Copa do Brasil, aceitou
posar para a revista "Playboy",
no mês passado.
Para Ab'Saber, esse [uma revista masculina] deve ser o "lugar social objetificado das mulheres" na sociedade brasileira.
Essa também é razão, acrescenta, para o fracasso contumaz do futebol feminino no
Brasil, que, em contraste gritante com a versão masculina,
não consegue nem sequer criar
uma liga profissional -isso
apesar da prata na Olimpíada
de 2004 e do grande prestígio
das jogadoras brasileiras nas ligas européias e norte-americana. "O futebol segue não-contaminado", diz Ab'Saber.
FOLHA - A decisão do juiz Manoel
Maximiano Junqueira Filho, para
quem "o futebol é jogo viril, varonil,
não homossexual", revela um traço
mental e subjacente poderoso da
cultura e das instituições brasileiras,
permeando todas as esferas do poder? Como funciona aqui a noção de
micropoder de Foucault?
TALES AB'SABER - Creio que no
Brasil, dado o tradicional espetáculo do crescimento da concentração de renda e, portanto,
de poder, um conceito como esse de Foucault -que foi produzido em um mundo com longa
tradição de cidadania e embates públicos relativamente eficazes- deve ser nuançado, para não dizer abandonado.
Aqui há uma dimensão do
poder autoritária, deslocada
das necessidades sociais contemporâneas: podemos dizer
que o poder opera longe -e talvez contra- a sociedade, enunciando o seu interesse particular como direito geral.
Machado de Assis foi o primeiro a perceber essa ordem
política moderna que não reconhece os parâmetros modernos das coisas.
Tratar-se-ia mesmo de um
poder grosso, um evidente macropoder, espalhafatoso e
kitsch, como Glauber Rocha
desenhou tão bem, descompromissado profundamente do
sentido total de seus atos.
No "caso Richarlyson", é visível a distorção em relação às aspirações sociais democráticas.
A posição do poder em relação às aspirações contemporâneas, no caso, é grotesca. Creio
que um senhor de escravos
pensaria na mesma fase lógica a
natureza dos direitos humanos
e do corpo da sua propriedade.
O escândalo é que essas forças se mantenham praticamente imunes ao processamento da
história, funcionando abertamente contra todo princípio
republicano real.
FOLHA - Mais que em qualquer outro esporte, a torcida em jogos de futebol costuma ofender juízes e jogadores adversários chamando-os de
"veados". Isso é preconceito ou apenas folclore? O futebol é um esporte
homofóbico?
AB'SABER - Do mesmo modo
que o esporte é sublimação da
agressividade humana direta
na esfera da linguagem do corpo -e o futebol contém em si,
transmutada como um objeto-sonho, a história da batalha épica e da vitória difícil e desejada
na guerra-, me parece evidente que o futebol é também um
campo sublimado da homossexualidade masculina, um destino cultural específico do aspecto bissexual do humano.
Amigos gays, que nada entendem de futebol, perceberam
a imensa carga de homoerotismo que o campo carrega quando viram "Esperando Telê".
Como o futebol pode degenerar rapidamente em pancadaria -porque em sua origem ele
é violência transformada em
jogo, civilização-, ele também
tem que expulsar constantemente o homossexual de si,
porque ele é o amor dos homens pelos homens, transformado em jogo e em razão eficaz
e estética na forma do gol.
Mas usa um mecanismo paranóico e sádico contra o homossexual para livrar-se da
constante ameaça da própria
homossexualidade sublimada,
mas sempre presente.
O futebol é um mundo de homens entre homens; no cinema
de um diretor como Howard
Hawks [1896-1977], por exemplo, esse mundo era o do Oeste,
da aventura e da guerra.
Que a guerra e o homoerotismo sublimados no esporte deixem um resto paranóico homofóbico, regressivo, me parece
um problema da política das
pulsões e das possibilidades de
um destino humano melhor de
grande porte, que põe em xeque a própria forma da solução
simbólica chamada futebol.
FOLHA - "Esperando Telê" se encerra com uma declaração do técnico contra a presença de homossexuais no futebol. No entanto ele foi
um dos mais empenhados na profissionalização e lisura do futebol no
país. O que esse paradoxo pode dizer sobre o Brasil?
AB'SABER - Rubens Rewald e eu
discutimos bastante a natureza
contraditória do personagem.
Esse homem, que jogou com
Didi contra Garrincha, tinha
em Pelé um ideal técnico inatingível, um norte para os próprios times que montava.
Ele se tornou personagem
central no incrível futebol brasileiro dos anos 1970, foi o líder
na derrota geopolítica mais importante na história do futebol
contemporâneo, na Copa de
1982 [na Itália], e, no fim da vida, com o São Paulo, recuperou
o seu lugar de gênio do esporte.
Torna-se então uma voz dissonante, que lembra que a vitória se conquista com elevados
padrões técnicos, éticos e inteligência estética, eficaz, contra
um tecnicismo rebaixado e
burro, razão instrumental degradada, que se generalizou
não só no futebol mas no país.
No meio dessa jornada civilizatória particular, de um homem conservador, a inacreditável posição: "Não há lugar no
futebol para homossexuais".
Para nós, Telê é um homem
do seu mundo, o do futebol brasileiro clássico. Ele não é melhor do que o seu mundo... Ele é
melhor em seu mundo.
Embora ocupe um lugar paterno no mundo do esporte,
sua posição discriminatória
pública, embora no conteúdo
seja exatamente a mesma, é em
alguma medida diferente da de
um juiz que deveria preservar a
esfera universal de lei comum.
FOLHA - O jogador inglês Beckham
anunciou nesta semana que irá interpretar um personagem gay no cinema. Isso seria possível no Brasil?
AB'SÁBER - Há ambivalências.
Há outras dimensões democráticas potenciais populares em
jogo. O espaço popular que envolve o futebol -e não o seu
controle pela elite masculina
tradicional- carrega ambigüidades humanas e sexuais muito
mais ricas do que concebem
aqueles que controlam política
e economicamente o jogo.
Em 1999, o grande volante
Vampeta posou para uma revista gay. Isso foi motivo de
chistes e alegria no mundo
masculino do futebol, que teve
nesse momento uma irônica
intuição de si mesmo.
Em nenhum momento o
grande jogador que ele é foi
questionado tecnicamente ou
prejudicado profissionalmente. Ele foi o último convocado
por Felipão, para a seleção
campeã do mundo em 2002.
Por outro lado, se os objetos
do macropoder, os jogadores,
exigem discriminação mais clara dos seus direitos, saindo do
campo erótico ambíguo e conservador, então se produzem
reações arcaicas profundas, como a que estamos vendo.
Na velha tradição do poder
brasileiro, resiste-se a estruturar os direitos do outro.
FOLHA - Por que, em contraste com
os campeonatos de futebol masculinos, o futebol feminino no Brasil é, institucionalmente, um fracasso,
mesmo a seleção nacional sendo
uma das melhores do mundo. Você
acha que, devido ao erro que cometeu, a bandeirinha Ana Paula Oliveira tenha sido "empurrada" para as
funções a que o imaginário coletivo
associa à imagem da mulher, ao
aceitar posar nua para uma revista
masculina?
AB'SABER - Acho que é isso. De
boa fé, Ana Paula desejou ser
uma mulher no forte mundo
homoerótico dos homens. Ela
não era homossexual, não desejava ser homem.
Quando entrava em campo,
como mulher, para fazer a função abstrata do trabalho de auxiliar, punha em risco a estrutura do pacto inconsciente do
grande grupo dos homens
-que amam um Pelé, que
amam um Raí e um Romário,
entidades eróticas disfarçadas
e elevadas à eficácia racional do
gol e da vitória.
O grande grupo masculino só
podia concebê-la como mulher
no lugar em que ela terminou
[na capa da revista "Playboy"],
no lugar social objetificado das
mulheres.
O futebol segue não-contaminado, as mulheres seguem
controladas. Creio que esse é
também o problema do lugar
difícil do futebol feminino entre nós.
Mas os dois exemplos, mais o
de Richarlyson, mostram que
há um processamento social
transformador em curso: o futebol brasileiro -e sua política
inconsciente de fundo- está
sob ataque em todas as frentes.
Por outro lado, a Justiça do
macropoder e sua razão grotesca, que não condena homens
brancos, ricos, católicos e homofóbicos, continua intocada e
impune no Brasil .
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