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O campo social
Em "A Dança dos Deuses",
o historiador
da USP Hilário Franco Jr. discute a relação entre futebol
e cultura
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
direção dos clubes,
a contratação de jogadores famosos e
as conquistas de títulos possibilitariam a eles [dirigentes] ascendência sobre as massas. E os jogadores, apesar de alguns bem
remunerados e até mesmo com
certo poder de intervenção em
seus times, continuariam a ser
matéria-prima para as articulações políticas que se processariam a partir de então."
A citação, extraída de "A
Dança dos Deuses - Futebol,
Sociedade, Cultura" (Companhia das Letras, 472 págs., R$
54), de Hilário Franco Jr., foi
retirada de um trecho do livro
em que o autor discute o futebol do Brasil nos anos 40. Poderia, contudo, servir como
descrição permanente.
Basta pensar nas recentes
declarações do presidente da
Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, a respeito do atacante Ronaldo durante a Copa de 2006, transferindo para o jogador uma responsabilidade que é dele mesmo em grau infinitamente
maior.
O problema é ainda mais grave se se levar em conta que o
caos administrativo é sempre
apoiado por governos e verbas
públicas -que assim, entre outras coisas, corroboram a prática mais do que usual dos dirigentes esportivos de se perpetuarem no poder, em evidente
conflito com uma das idéias
centrais de qualquer processo
democrático, a da alternância
de comando.
Um dos méritos da obra de
Hilário Franco Jr. é mostrar
com fartura de exemplos como
os acontecimentos e mudanças
do futebol no Brasil e no mundo estão intimamente ligados à
história de cada período.
Além disso, na segunda parte
de sua obra, ele estuda a ligação
do esporte com a sociologia, a
psicologia, a antropologia, a religião e a linguagem, estabelecendo paralelos originais e inventivos.
Na entrevista a seguir, o professor de história medieval da
USP (tema que ele pretende
continuar estudando, assim como o futebol) discute algumas
dessas questões e também o recente "caso Richarlyson".
FOLHA - Com raras exceções, o futebol é muito pouco estudado e discutido no Brasil. Ainda que a situação esteja aos poucos se modificando, por que acontece isso com esse
esporte tão evidentemente importante no cotidiano brasileiro?
HILÁRIO FRANCO JR. - Esse é um
problema importante que mereceria ser aprofundado.
De um lado, sem dúvida há
preconceito de muitos intelectuais em relação a tal objeto de
estudo, pretensamente menor.
Se resolvi enfrentar esse preconceito, é porque me parece
que todo tema de pesquisa é legítimo; o que pode ser menor é
a maneira de tratá-lo.
Um mau estudo não fica melhor porque é, digamos, de filosofia ou de física.
Mas também existem, de outro lado, dificuldades que vêm
exatamente da importância do
futebol na sociedade brasileira.
O excesso de informação sobre
qualquer assunto acaba por
anestesiar a capacidade reflexiva sobre ele.
É o que vemos, por exemplo,
com a corrupção e a violência.
Esses casos são tantos, uma
surpresa substitui outra, um
choque supera outro, que não
há tempo e equilíbrio emocional para o cidadão comum refletir sobre esses fenômenos.
Algo semelhante ocorre em
relação ao futebol. Somos todos tão inundados cotidianamente por informações sobre
futebol na televisão, na internet, nas rádios, nas revistas,
nos jornais que ficamos enredados em discussões sobre detalhes de uma partida, e não sobre o significado do jogo.
A emoção que ele desperta
também não facilita a reflexão,
como mostram certos programas de debate no rádio e na TV.
FOLHA - Como o sr. analisa o caso
Richarlyson, tanto do ponto de vista
da celeuma que provocou no meio
do futebol quanto no que diz respeito aos comentários do juiz que avaliou o caso?
FRANCO JR. - Creio que a celeuma em torno do Richarlyson
reforça a tese que proponho no
livro sobre o futebol como metáfora, síntese, da sociedade.
Se, de um lado, o comentário
do dirigente do Palmeiras trouxe à tona, de forma canhestra,
um assunto ainda tabu não só
no meio futebolístico, ele pode
ser em parte creditado (o que
explica, sem justificar) à rivalidade entre os clubes.
O Palmeiras tentou há muitos meses contratar o referido
jogador, que preferiu trabalhar
no São Paulo.
Muito mais absurda é a manifestação do juiz, que, sendo
teoricamente neutro (o que
não se espera de um dirigente
do futebol) diante de partes
discordantes, emite um juízo
de valor longe da objetividade
jurídica esperada.
Se "futebol não é para homossexuais", a magistratura
não é para preconceituosos.
De toda forma, os dois personagens refletem uma visão que
não é meramente pessoal. Não
surpreende que o futebol, como
em relação a tantos temas, tenha sido nesse episódio, mais
uma vez, uma janela aberta sobre a sociedade.
Surpreende o que se viu nessa fatia supostamente nobre da
sociedade.
FOLHA - No decorrer das pesquisas
para o livro, quais foram para o sr. os
momentos de maior revelação, as
percepções mais imprevistas?
FRANCO JR. - Para ser sincero,
não foram poucos esses momentos. Uma coisa é ao longo
do tempo ter se acumulado sobre o futebol uma série de observações, impressões, intuições, idéias trocadas com amigos. Outra é tentar sistematizar
esses fragmentos e verificar
que ainda faltam muitas peças
para uma compreensão global
do futebol enquanto fenômeno
cultural.
Respondendo objetivamente
à pergunta, por exemplo foi
prazeroso confirmar a intuição
de que o desenvolvimento das
regras e das táticas do futebol
acompanham muito de perto a
trajetória histórica da época
observada.
Para lembrar somente um
caso, a tática concebida em
1874, que propunha ataque pelos lados do campo de jogo (o 2-3-5), se inspirou no que os
prussianos tinham feito com
sucesso nos campos de batalha
em 1870-71.
Também foi gratificante ter
podido comprovar em detalhes, com dados históricos e antropológicos, o chavão de que o
futebol é uma espécie de religião. Ou ainda formular a hipótese de ele ser também uma linguagem gestual, com morfologia, semântica, sintaxe e retórica próprias.
FOLHA - O sr. mostra no livro como
o futebol esteve sempre muito próximo de uma idéia de construção da
"nacionalidade brasileira". Ele cumpre assim, em outro âmbito, um
projeto romântico que tem seu momento mais incisivo no movimento
modernista. Na arte, contudo, ao
mesmo tempo e depois, houve inúmeros "contramovimentos", enquanto no campo esportivo o fenômeno parece caminhar até hoje na
mesma direção. Gostaria que o sr.
comentasse esse contraste.
FRANCO JR. - As razões me parecem variadas, todas decorrentes do fato de as artes e o futebol terem estruturas diferentes. Do ponto de vista funcional, as regras das artes são muito mais complexas do que as do
futebol, permitem um amplo
leque de conteúdos e de soluções formais para eles.
Do ponto de vista sociológico, as artes tendem a lidar com
um público mais restrito, culturalmente mais bem equipado
para solicitar e aceitar novos
caminhos, novas propostas, enquanto o futebol, como a maioria dos fenômenos de massa,
tende a ser mais conservador.
Do ponto de vista emocional,
o futebol, devido a seu caráter
competitivo, alimenta rivalidades que as artes podem apenas
registrar, não motivar.
Do ponto de vista da produção, enquanto o artista cria solitariamente e apenas depois
tem contato com a emoção popular que despertou, o futebolista recebe de imediato sinais
de aprovação ou reprovação
pelo seu trabalho.
Simetricamente, do ponto de
vista do consumo, o público é
tocado de formas e em intensidades diferentes por uma pintura e uma partida de futebol.
Se ambas mexem com os sentidos, com a emoção, a primeira
está no domínio do material, do
reproduzível, a segunda do efêmero, do inimitável.
FOLHA - Na segunda parte, o sr.
discute de modos específicos o futebol a partir de algumas metáforas
(sociológica, antropológica, religiosa, psicológica e, a mais original, lingüística). Qual dessas áreas merece
maior aprofundamento por parte
dos estudiosos do esporte?
FRANCO JR. - Se fizermos o balanço em termos de Brasil, encontraremos clara predominância de obras meramente
descritivas, que têm valor memorialístico, mas por isso mesmo não alcançam os papéis e
significados do futebol.
No campo da análise, verificaremos que as abordagens sociológicas têm sido praticamente as únicas a receberem
certa atenção. Todos os demais
campos estão por explorar.
Claro que aquilo que escrevemos em cada um desses capítulos pode dar origem a livros específicos, que desenvolvam a
argumentação, ampliem a
exemplificação, aprofundem
(ou neguem) as hipóteses, refinem os conceitos.
Quem sabe nessa fase em que
o futebol brasileiro, de clubes e
de seleção, entusiasma pouco
possa receber menos manifestações acaloradas de aprovação
ou de rejeição e mais estudos.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
Universidade de São Paulo (USP).
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