São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2007

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Trópicos manjados

Relato de viagem a Vanuatu e Fiji mostra que gênero perdeu força devido à hiper- exposição de lugares exóticos

JEAN MARCEL C. FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

E m 1677, a "Journal des Sçavans", uma prestigiadíssima revista parisiense, publicou uma curiosa narrativa de viagem sobre o longínquo Ceilão. O autor, um anônimo, contava aos seus leitores, cultos e ávidos por notícias dos novos mundos, que havia no lugar uma árvore bastante singular, cujas folhas, ao caírem no chão, continuavam vivas, andando de um lado para o outro. Absurdo? Para os leitores do século 21, certamente. Todavia, no seu tempo, um tempo em que o mundo era parcamente conhecido e as narrativas de viagem eram tidas como legítimos substitutos dos "olhos da cara", nem tanto.
Outrora, entre os séculos 16 e 19, leitores céticos, e havia muitos, contavam somente com dois recursos: ir ao lugar descrito -coisa impraticável para a maioria- ou aguardar por outros testemunhos para poder comparar. Daí, sem dúvida, parte do enorme prestígio e sucesso de público dos relatos de viagem então publicados. Os ventos, porém, não correm mais tão de feição para os escritores do gênero. A hiperexposição (turismo em massa, câmeras digitais, internet, imagens de satélites, televisão etc.) transformou o mundo num lugar terrivelmente monótono e conhecido.

Estereótipos
Para mais, amargamente constatamos, nos últimos tempos, que as ditas "experiências íntimas de viagem" não são tão íntimas assim; ao contrário, repetem padrões, reiteram estereótipos. O que sobra, então, para os escritores do gênero? O holandês radicado na América J. Maarten Troost, autor de "Aprendendo com os Selvagens", que acaba de ser lançado no Brasil, tentou uma solução para o impasse: desmontar alguns estereótipos do gênero e tentar brincar com os pedaços. "Aprendendo com os Selvagens", segundo livro de Troost, narra uma experiência cada vez mais comum em países ricos ocidentais.
Um higiênico, simpático e culto casal, enfastiado com a rotina de uma grande cidade qualquer e com dinheiro suficiente para pensar na busca do paraíso, resolve mudar-se para um supostamente idílico lugarzinho enfiado no meio do mundo "menos rico". Em "Aprendendo...", o casal é americano e o lugarzinho edênico são as ilhas do Pacífico, nomeadamente as de Vanuatu e as de Fiji.
Em quase três centenas de páginas, Troost descreve para o leitor fragmentos dessa sua "experiência" na região, quase sempre contrapondo-a, melhor, comparando-a com as imagens do lugar vinculadas no Ocidente pelas narrativas de viagem, pelas reportagens geográficas e pelos guias turísticos -aqueles que sugerem uma natureza maravilhosa e um povo estranhamente simpático, por vezes um pouco lascivo.

Inconvenientes
O resultado desse cruzamento, isto é, a perspectiva que Troost constrói do cotidiano das ilhas em que viveu é agradável de ler, mas muito pouco surpreendente. Ora, constatar que o paraíso natural se dissolve depois de uns poucos meses de vida sob um sol escaldante, que a vida no Pacífico tem enormes inconvenientes e que a pobreza econômica, a degradação social e a crise moral em que vivem mergulhadas algumas sociedades da região soterram qualquer possibilidade de uma vida "aprazível" não constitui propriamente uma novidade para o leitor contemporâneo.
Troost, a bem da verdade, rodou, rodou, mas se limitou a atualizar as considerações sobre os povos e lugares de "climas quentes" que há séculos estão consolidadas nas narrativas de viagem, considerações que poderiam ser resumidas num dístico: um lugar belo, fértil e aprazível, habitado por gente -nativos e colonos- decaída. Ao término do seu livro, tem-se a sensação de que mais vale mesmo, com toda a sua "mesmice", viver na próspera Califórnia -para onde o autor se mudou com a família, depois de sua incursão pelo Terceiro Mundo.

JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).


APRENDENDO COM OS SELVAGENS
Autor:
J. Maarten Troost
Tradução: Ana Deiró
Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/ 3525-2000)
Quanto: R$ 45 (288 págs.)



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