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Trópicos manjados
Relato de viagem a Vanuatu e Fiji mostra que gênero perdeu força devido à hiper-
exposição de lugares exóticos
JEAN MARCEL C. FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
E
m 1677, a "Journal des
Sçavans", uma prestigiadíssima revista parisiense, publicou
uma curiosa narrativa
de viagem sobre o longínquo
Ceilão. O autor, um anônimo,
contava aos seus leitores, cultos e ávidos por notícias dos
novos mundos, que havia no
lugar uma árvore bastante singular, cujas folhas, ao caírem
no chão, continuavam vivas,
andando de um lado para o outro. Absurdo?
Para os leitores do século 21,
certamente. Todavia, no seu
tempo, um tempo em que o
mundo era parcamente conhecido e as narrativas de viagem
eram tidas como legítimos
substitutos dos "olhos da cara",
nem tanto.
Outrora, entre os séculos 16 e
19, leitores céticos, e havia muitos, contavam somente com
dois recursos: ir ao lugar descrito -coisa impraticável para
a maioria- ou aguardar por
outros testemunhos para poder comparar. Daí, sem dúvida,
parte do enorme prestígio e sucesso de público dos relatos de
viagem então publicados.
Os ventos, porém, não correm mais tão de feição para os
escritores do gênero. A hiperexposição (turismo em massa,
câmeras digitais, internet, imagens de satélites, televisão etc.)
transformou o mundo num lugar terrivelmente monótono e
conhecido.
Estereótipos
Para mais, amargamente
constatamos, nos últimos tempos, que as ditas "experiências
íntimas de viagem" não são tão
íntimas assim; ao contrário, repetem padrões, reiteram estereótipos.
O que sobra, então, para os
escritores do gênero? O holandês radicado na América J.
Maarten Troost, autor de
"Aprendendo com os Selvagens", que acaba de ser lançado
no Brasil, tentou uma solução
para o impasse: desmontar alguns estereótipos do gênero e
tentar brincar com os pedaços.
"Aprendendo com os Selvagens", segundo livro de Troost,
narra uma experiência cada vez
mais comum em países ricos
ocidentais.
Um higiênico, simpático e
culto casal, enfastiado com a
rotina de uma grande cidade
qualquer e com dinheiro suficiente para pensar na busca do
paraíso, resolve mudar-se para
um supostamente idílico lugarzinho enfiado no meio do mundo "menos rico".
Em "Aprendendo...", o casal é
americano e o lugarzinho edênico são as ilhas do Pacífico, nomeadamente as de Vanuatu e
as de Fiji.
Em quase três centenas de
páginas, Troost descreve para o
leitor fragmentos dessa sua
"experiência" na região, quase
sempre contrapondo-a, melhor, comparando-a com as
imagens do lugar vinculadas no
Ocidente pelas narrativas de
viagem, pelas reportagens geográficas e pelos guias turísticos
-aqueles que sugerem uma natureza maravilhosa e um povo
estranhamente simpático, por
vezes um pouco lascivo.
Inconvenientes
O resultado desse cruzamento, isto é, a perspectiva que
Troost constrói do cotidiano
das ilhas em que viveu é agradável de ler, mas muito pouco surpreendente.
Ora, constatar que o paraíso
natural se dissolve depois de
uns poucos meses de vida sob
um sol escaldante, que a vida no
Pacífico tem enormes inconvenientes e que a pobreza econômica, a degradação social e a
crise moral em que vivem mergulhadas algumas sociedades
da região soterram qualquer
possibilidade de uma vida
"aprazível" não constitui propriamente uma novidade para
o leitor contemporâneo.
Troost, a bem da verdade, rodou, rodou, mas se limitou a
atualizar as considerações sobre os povos e lugares de "climas quentes" que há séculos
estão consolidadas nas narrativas de viagem, considerações
que poderiam ser resumidas
num dístico: um lugar belo, fértil e aprazível, habitado por
gente -nativos e colonos- decaída.
Ao término do seu livro, tem-se a sensação de que mais vale
mesmo, com toda a sua "mesmice", viver na próspera Califórnia -para onde o autor se
mudou com a família, depois de
sua incursão pelo Terceiro
Mundo.
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).
APRENDENDO
COM OS SELVAGENS
Autor: J. Maarten Troost
Tradução: Ana Deiró
Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/ 3525-2000)
Quanto: R$ 45 (288 págs.)
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