São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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A LIÇÃO DE CASA DA DITADURA

"NOTURNO DO CHILE" ENCONTRA NO TERROR SUA ESSÊNCIA METAFÍSICA E PROVA QUE A FICÇÃO PODE SER, AO MESMO TEMPO, UM BRINQUEDO LITERÁRIO E UMA APOSTA NA SERIEDADE

Christopher Domínguez Michael
do "Letras Libres"

Entre os milhares de páginas, indignadas ou comovidas, escritas sobre as ditaduras militares que reinaram no Cone Sul nas últimas décadas, poucas me pareceram tão eficazes como as que Roberto Bolaño dedica, no fantasmagórico "Noturno do Chile" [Companhia das Letras, trad. Eduardo Brandão, 120 págs., R$ 27], a um inverossímil general Pinochet tendo aulas de marxismo com o sacerdote e crítico literário Sebastián Urrutia Lacroix, vulgo padre Ibacache. Só um prosador com o refinamento intelectual de Bolaño poderia retratar o terror por meio de uma anedota espectral, sem recorrer a convenções surradas, pondo uma junta militar ansiosa por conhecer a ideologia do inimigo marxista diante de um poeta improvisado, de relativo sucesso. Para chegar a isso, Bolaño constrói, em apenas 120 páginas, uma obra-prima da novela, cuja progressão asfixiante cobre o enigma da vocação artística, a maldição da crítica literária, as estranhezas do Estado eclesiástico e a real ou suposta banalidade do mal. São, no mínimo, quatro problemas expostos em uma narração que não dá descanso ao leitor. Seguindo o recurso de Hermann Broch em "A Morte de Virgílio", Bolaño desfia a memória em fuga de um moribundo ou de um febrento delirante que se sente morrer, disposto a narrar alguns momentos-chave de uma vida um tanto supérflua. "Noturno do Chile" nos lembra que a realidade novelesca só toca o sentido poético do mundo quando cria, ao mesmo tempo, personagens e atmosferas. Sebastián Urrutia Lacroix deve iniciar sua educação sentimental passando pelo crivo do crítico Farewell, príncipe da literatura chilena. Com singular liberdade, Bolaño parece apresentar uma versão ficcional de Hernán Díaz Arrieta (1891-1984), conhecido durante meio século por seu pseudônimo, Alone. Resenhista compulsivo, Alone deixou uma obra imensa, na qual se destaca "Pretérito Imperfecto", "Memorias de un Crítico Literario" (1976) e "Historia Personal de la Literatura Chilena" (1954). Herdeiro austral e tardio de Sainte-Beuve, Alone -Farewell em "Noturno do Chile"- praticou a velha crítica mediante "um esforço civilizador, um esforço de tom comedido e conciliador, como um humilde farol na costa da morte", como descreve Bolaño com ironia. Alone foi um combativo jornalista de direita, o que não o impediu de ser amigo e protetor de Pablo Neruda. O padre Ibacache, em sua febre, dialoga com Farewell: "Eu queria lhe dizer que até os poetas do Partido Comunista chileno morriam de desejo de que o sr. escrevesse alguma coisa amável sobre seus versos". E é justamente na presença de Neruda, no sítio de Farewell, que o pobre padre, humilhado tanto por seu colarinho eclesiástico como por sua puberdade lírica, passa pelo rito de iniciação, tornando-se parceiro ou acólito do grande crítico. Desde "La Literatura Nazi en América" (1996), Bolaño decidiu apostar alto e, brincando muito a sério, trabalhar os fantasmas ideológicos do século 20. O Chile é um lugar sinistramente apropriado para o exercício, seja pela brutal repressão que se seguiu à derrocada de Allende [1973], seja pela impressionante presença do nacional-socialismo no país já antes de 1933, como Víctor Farías documenta à exaustão em seu "Los Nazis en Chile" (2000).

Um jovem duplo
Mas, voltando a Farewell e ao padre Ibacache, velhos pinochetistas que não entendem o significado político da morte de Neruda, ocorrida poucos dias depois do golpe militar de 11 de setembro de 1973. Esse é outro dos pontos altos de "Noturno do Chile": "No dia seguinte fomos ao cemitério. Farewell estava muito elegante. Parecia um navio-fantasma, mas muito elegante. Vão me devolver o sítio, disse-me ao ouvido [...]. Então alguém começou a gritar. Um histérico. Outros histéricos ecoavam o bordão. Que grosseria é essa?, perguntou Farewell. Pequenas recaídas, não se preocupe, já estamos chegando ao cemitério. E onde está Pablo?, pergunto Farewell. Ali adiante, no caixão. [...] Pena que não se façam mais enterros como antigamente, disse Farewell. É verdade, disse eu. Com panegíricos e despedidas de todo tipo, disse Farewell. À francesa, disse eu. Eu teria escrito um belo discurso para Pablo, disse Farewell e começou a chorar. Devemos estar sonhando, pensei. Ao deixarmos o cemitério, de braço dado, vi um sujeito dormindo recostado num túmulo. Um arrepio me percorreu a espinha. Os dias que se seguiram foram bem agradáveis. Eu estava cansado de ler tantos gregos, então voltei a freqüentar a literatura chilena".
O padre Ibacache nunca será mais do que um "écrivain raté", atormentado por um jovem duplo e perseguido pelas sentenças céticas de Farewell -"de que serve a vida, para que servem os livros, são apenas sombras". E sua vida clerical só desabrocha durante uma viagem eclesiástica pela Europa, enviado pela Opus Dei, para acompanhar o restauro de igrejas e basílicas. O padre literato de "Noturno do Chile" acaba conhecendo uma rede italiana, francesa e espanhola de clérigos colombófobos que transformam seus campanários em nichos de cetraria, pois só os falcões podem acabar com as pombas, culpadas pela deterioração sistemática dos monumentos da Igreja Católica.
Depois do golpe militar, indiferente à função do crítico como farol civilizador da costa da morte, o padre Ibacache recebe a estranha proposta, que deve manter em absoluto segredo, de instruir os generais golpistas na ideologia marxista. Nessas sessões, Pinochet se destaca como o mais paciente dos alunos e, no final, se confessa superior aos presidentes Alessandri, Frei e Allende, pois, à diferença destes, ele escreveu livros, ainda que de geopolítica e publicados por editoras militares.
"A décima aula", lemos em "Noturno do Chile", "foi a última. Só assistiu o general Pinochet. Falamos de religião, não de política. Ao me despedir, deu-me uma lembrança em seu nome e no dos demais membros da junta. Não sei por que eu pensei que a despedida seria mais emotiva. Não foi. Foi uma despedida de certo modo fria, correta, condicionada pelos imperativos de um homem de Estado. Perguntei-lhe se as aulas haviam sido de alguma utilidade. Claro, disse o general. Perguntei-lhe se eu estivera à altura do que se esperava de mim. Vá com a consciência tranqüila, afirmou, seu trabalho foi perfeito. O coronel Pérez Larouche acompanhou-me até minha casa. Quando cheguei, às duas da manhã, depois de atravessar as ruas desertas de Santiago, a geometria do toque de recolher, não consegui dormir nem soube o que fazer. Comecei a zanzar pelo quarto enquanto uma maré crescente de imagens e de vozes tomava meu cérebro. Dez aulas, dizia a mim mesmo. Na verdade, só nove. Nove aulas. Nove lições. Pouca bibliografia. Fiz tudo direito? Eles aprenderam alguma coisa? Eu ensinei alguma coisa? Fiz o que tinha de fazer? Será que o marxismo é um humanismo? Será uma teoria demoníaca? Se eu contasse o que fiz para meus amigos escritores, teria a aprovação deles? Alguns manifestariam absoluto repúdio? Alguns compreenderiam e perdoariam? Um homem sabe, sempre, o que é certo e o que é errado?". No final, o padre Ibacache conta seu segredo ao crítico Farewell. Pouco depois, o Chile inteiro sabe disso.
As trepidantes primeiras cem páginas de "Los Detectives Salvajes" (1998), esse retrato da vida literária mexicana dos anos 70, deu prova do enorme talento de Bolaño. Mas esse romance, tão aclamado, padece de um defeito comum na ficção latino-americana, certo bizantinismo que nos impede de interromper o fluxo narrativo sem perder o fio novelesco. Já em "Estrella Distante" (1996) e "Noturno do Chile", Bolaño demonstra, sem dúvida alguma, que é um dos dois ou três narradores latino-americanos mais talentosos de nossa época.
Poucos como ele tiraram tanto proveito da diáspora sul-americana dos anos 70, transformando as dores ideológicas em profecias literárias, encontrando no terror sua essência metafísica, provando que a prosa pode e deve ser, ao mesmo tempo, um brinquedo literário e uma aposta na seriedade. As obras de Bolaño apresentam um escritor que pertence simultaneamente a várias literaturas, não apenas, como já se disse, à mexicana e à chilena, mas à tradição narrativa universal, virtude da qual poucos escritores podem se vangloriar.
Em sua brevidade, "Noturno do Chile" apresenta um personagem difícil de esquecer, esse padre Ibacache que concentra atributos só encontráveis na mais alta elaboração artística: desde a personalidade da linguagem até o horror da história, o pasmo da vocação crítica e o romance como casa onde impera não a imitação servil da vida, e sim a experiência da literatura.


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