São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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IDENTIDADES TÁTICAS

"O LUGAR DO BRASIL NA POLÍTICA EXTERIOR ARGENTINA" DEFENDE QUE OS DOIS PAÍSES DEVEM TROCAR UM PARADIGMA DE RELAÇÃO ÍNDIA-PAQUISTÃO POR UM DO TIPO FRANÇA-ALEMANHA

Eduardo Szklarz
free-lance para a Folha

A relação entre o Brasil e a Argentina sempre navegou num mar de ambigüidades. O país representou para o vizinho ora uma ameaça, ora um aliado, como afirmam os cientistas políticos Roberto Russell e Juan Gabriel Tokatlian no livro "El Lugar de Brasil en la Politica Exterior Argentina" [O Lugar do Brasil na Política Exterior Argentina, editora Fondo de Cultura Económica, 128 págs., 12 pesos]. Segundo eles, a democratização, a crescente interdependência econômica e a assimetria de poder criaram condições para que as duas nações finalmente ancorem seus destinos numa cultura de amizade, tal como já existe na Europa Ocidental.
"Esta é uma oportunidade única. Por décadas fomos rivais, competidores e opositores. Agora não temos mais esse ânimo", diz Tokatlian, diretor de ciência política e relações internacionais da Universidade San Andrés. Para Russell, diretor do mestrado de estudos internacionais da Universidade Torcuato di Tella e professor do Isen (Instituto Del Servicio Exterior de la Nación), a Argentina compreende e aceita o atual avanço do governo Lula rumo a uma liderança regional. "Mas o Brasil também deve reconhecer o papel da Argentina na construção de um projeto estratégico na América do Sul", adverte. Eles conversaram com o Mais! no gabinete de Russell, em Buenos Aires.
 
O ex-embaixador do Brasil na Argentina José Botafogo Gonçalves costuma dizer que brasileiros e argentinos são íntimos desconhecidos. O que levou a isso?
Juan Gabriel Tokatlian - Fatores históricos, culturais e políticos fizeram com que nossa história comum fosse mais de divisão que de unidade. Nossa relação sempre foi complexa e, por décadas, marcada por um componente de rivalidade. O fundamental é observar como tem sido a passagem da estrutura de rivalidade, que persistiu até os anos 1980, a uma estrutura marcada por reciprocidade e convivência política. Todos esses elementos ajudaram a criar o que, no livro, chamamos de cultura de amizade. É evidente que transitar a outro tipo de estrutura demanda tempo, atores sociais, mudança de visões, determinação política e inclusive militar. Nesse contexto, a democratização quase paralela nos dois países, facilitada pelo colapso da Guerra Fria e estimulada por uma visão distinta da integração, deu mais sentido à maior convergência.
Roberto Russell - Tratamos de identificar no livro os paradigmas que orientaram a política exterior argentina até a crise de dezembro de 2001 e ver qual o lugar ocupado pelo Brasil. No primeiro paradigma, quando a Argentina tem uma relação especial com a Grã-Bretanha e a Europa (1880 a 1930), há pouca interação entre os dois países. Nenhum olha para o outro. No segundo (globalista, pós-Segunda Guerra), já há um lugar importante reservado para a região. Mas a visão que a Argentina tem do Brasil está muito mesclada com elementos de rivalidade. A geopolítica e a oposição marcam muito mais a ação do que o discurso cooperador.
No último caso (governos Menem e De la Rúa), é desenvolvida uma estratégia de "plegamiento" (vínculo) com os Estados Unidos, o que dificulta o avanço na relação com o Brasil para além do plano econômico.
Tem havido interação desde sempre, mas ela tem sido pouco densa e fundamentalmente interestatal. Falta mais relação no plano das sociedades civis. A interdependência tem sido muito baixa. Talvez por isso, a frase de Botafogo ainda faça muito sentido.

A relação continua dependente de ações presidenciais?
Tokatlian - Vamos dividir a questão em três partes. Quando Sarney e Alfonsín decidem iniciar um novo trajeto na relação bilateral -e nesse momento a palavra Mercosul não existia- o fundamento da aproximação mútua era político-estratégico. Era a convicção de que o Brasil e a Argentina deveriam buscar maior convergência porque, isoladamente, sua margem de influência e seu poder negociador internacional seriam muito baixos.
Portanto, se há uma comparação entre Lula e Kirchner em seus respectivos governos, é que agora os dois parecem coincidir na dimensão político-estratégica entre Brasil e Argentina.
A segunda parte é o Mercosul, entendido como um acordo de integração econômica que se iniciou como união aduaneira imperfeita e que deveria avançar para processos de maior institucionalização. Mas há uma franca paralisia do Mercosul como projeto de integração e união aduaneira. Parece que os limites do Mercosul terão impacto sobre a vocação política das lideranças. Se a relação Kirchner-Lula continuar num bom caminho e se o Mercosul econômico estiver travado, então chegamos ao terceiro elemento: a única maneira de buscar um mecanismo de institucionalização da relação é voltar a pensar qual é a estratégia do Brasil e da Argentina frente ao mundo.
Russell - A relação entre a Argentina e o Brasil é menos que o Mercosul, em um sentido, mas é também muito mais. É menos porque o Mercosul é um esquema de integração que inclui mais países e, até aqui, tem um caráter essencialmente econômico. É mais porque uma relação argentino-brasileira definida no marco da cooperação é uma condição necessária de nossa futura autonomia no plano internacional, que pode mobilizar outros países da sub-região.

A Argentina tem de fato uma política exterior ou se vincula a países como Brasil, Estados Unidos e Inglaterra por motivos basicamente econômicos?
Russell - Dificilmente se concretizará na Argentina uma política de "plegamiento" com o Brasil. Podemos entender um vínculo dessa natureza com um ator como os EUA. Com o Brasil, trata-se de outra coisa: um projeto estratégico com o qual alcançaremos juntos coisas que não conseguiríamos sozinhos. Não é que agora a Argentina vai fazer "seguirismo" (seguir o outro) com Brasília só porque o vínculo com os EUA não deu os resultados esperados. Se faz apenas seguirismo, então por que não tentar de novo com um ator mais poderoso? Não é essa a discussão. Os que dizem que a Argentina faria agora "seguirismo" com o Brasil são os mesmos que fizeram "seguirismo" com os EUA. Não querem a aliança estratégica que defendemos.

Mas há aceitação para a proposta de aliança estratégica?
Russell - Muito mais que nos anos 1990. A Argentina não está aí para seguir o Brasil. Isso não está em sua identidade, em sua natureza. Creio que tampouco convém ao Brasil esse tipo de relação, baseada em meros interesses de conjuntura em que o Brasil seria um "second best". Trata-se de defender posições maduras dos dois países, que busquem identificar interesses comuns e atuar em conseqüência disso.
Tokatlian - Não convém colocar a relação entre Argentina e Brasil no velho prisma da "realpolitik". Se queremos compartilhar elementos de identidade, devemos cortar a visão ortodoxa, clássica, de que o que existe com o Brasil é uma substituição de alianças: tivemos uma aliança com a Grã-Bretanha, depois com os EUA e agora teríamos que nos conformar com uma aliança com o Brasil. Essa visão alimenta os setores mais tendentes à tensão. A relação argentino-brasileira não deve se transformar numa do tipo Paquistão-Índia.
Por sorte, estamos longe disso. E tomara que seja mais uma relação França-Alemanha, que, mesmo com poderes diferenciados, tem sido fundamental para concretizar a União Européia. Hoje não estamos perto da relação França-Alemanha, mas pelo menos abandonamos a Índia-Paquistão.

Como observam o atual movimento do governo Lula em direção a uma liderança regional?
Russell - Esse movimento está sendo não apenas compreendido, mas também aceito por muita gente aqui na Argentina, inclusive no próprio Ministério das Relações Exteriores. Espera-se que o Brasil atue como um país que quer ter uma posição de líder, e não impor seus interesses e desejos. Mas essa é uma pergunta que deveria ser feita aos brasileiros. Como o Brasil está vendo a relação com a Argentina e os outros países da região? A ênfase posta por Lula na região poderia ser vista como uma expressão do propósito brasileiro de estender pouco a pouco sua influência e seu domínio sobre ela. Entretanto essa não é a visão que hoje prevalece nas esferas oficiais argentinas nem no palácio San Martín.
A preocupação é como construir uma sociedade estratégica que sirva aos dois países. Também se espera que o Brasil assuma uma liderança na região sem nenhuma pretensão hegemônica. Ao mesmo tempo, o Brasil tem que dar mostras de restrição de poder e contemplar os interesses da Argentina, que nem sempre haverão de coincidir com os seus.
Tokatlian - Um país da relevância do Brasil é um jogador-chave no plano regional e também ambiciona ter um papel global. Neste último, ele pode buscar fontes maiores, como China, Índia, África do Sul, mundo árabe e países influentes da África, de forma a ser um "global player". Para a Argentina, que vem de uma situação de decadência muito forte, esse papel é impossível. A Argentina não pode ser um "global player". Nesse campo, não existe competição com a aspiração do Brasil. No âmbito sul-americano, entretanto, mostrar que o Brasil tem uma capacidade de liderança importante é entender que deve haver uma co-responsabilidade com a Argentina.

De que forma essa co-responsabilidade se refletiria?
Tokatlian - Em vários campos. Um bom exemplo foi a resolução conjunta da crise na Bolívia.
O Brasil também convidou a Argentina a ser membro do Grupo de Amigos da Venezuela, que teve um papel importante para chegar ao referendo naquele país. Infelizmente, a Argentina não soube aproveitar a chance.

Um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU seria um limite a essa co-responsabilidade, já que ambos países aspiram a ele?
Tokatlian - Não haverá problema se nunca existir coincidência nesse ponto. Não é algo dramático. É dramático que Itália e Alemanha tenham posições diferentes sobre o tema? Há atores na União Européia que defendem apenas um veto para ela. Inglaterra e França não vão ceder nisso nunca. Mas isso impede que a UE funcione? Não. Primeiro, é preciso desdramatizar esse tema. Depois, ser realista e ver que, se houver reformas em breve no marco da ONU, elas não serão em prol de países da periferia ou de atores regionais influentes.
Os EUA ainda controlam uma espécie de "superveto" no sistema internacional. Proclamar que estamos às vésperas de uma reforma é desgastar esforços diplomáticos. Quando chegar o momento, a Argentina terá uma posição: assento rotativo. O Brasil terá outra posição: ser representante para toda a América Latina. O ponto é: vamos ter a maturidade para debater o tema?

Já existe uma identidade latino-americana nos dois países?
Russell - O Brasil talvez não tenha uma identidade sul-americana nem sequer latino-americana, e sim um projeto político-estratégico na América do Sul. Se é um projeto hegemônico ou de outro tipo, ainda veremos.
O Brasil sempre se sentiu diferente dessa América Latina, que além de tudo é de fala hispânica. Já a identidade da Argentina está em debate, e seu projeto estratégico de inserção internacional ainda carece de consenso interno. A Argentina também nunca se sentiu muito latino-americana, mas por motivos distintos. Nossa identidade latino-americana foi se construindo fundamentalmente como conseqüência de nosso declínio. Uma espécie de fatalidade que muitos argentinos ainda resistem em aceitar.

Como o caso das Malvinas.
Russel - Tudo o que a Argentina passou desde as Malvinas, para não ir mais longe, tende a construir essa identidade latino-americana. As condições atuais da Argentina e do mundo vão fazer com que o país se incline cada vez mais a um projeto de política exterior que enfatize a América do Sul. Esse é o espaço natural para firmar as bases de uma política exterior mais independente. Muitos dos que hoje levantam as bandeiras de um projeto mais "latino-americano" temem que a limitação ao sul-americano gere uma nova forma de dependência, desta vez do Brasil.
Tokatlian - A construção da identidade tem componentes constantes, como lugar geográfico, dimensão, demografia e variáveis, que são os que estão em jogo. Cada vez mais, a Argentina tem pares no Cone Sul que compartilham princípios, como democracia, direitos humanos e estabilidade institucional.
O país também vem recebendo imigrantes chilenos, uruguaios, paraguaios, bolivianos e peruanos, que têm vínculos profundos com as sociedades de origem.
Esses fatores nos trazem a necessidade de ter não apenas uma identidade, mas uma identidade múltipla. Há uma Argentina que ainda pulsa por ser uma espécie de arquipélago da Europa, sonha com relações especiais com os EUA e tem um universo sociocultural quase pós-moderno. Mas há uma outra Argentina que necessita e se nutre da região. No momento, não há uma definição sobre qual grupo ou ator social hegemoniza um projeto internacional. Esse processo está aí, em pleno processo de contradições e mutações.


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