São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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A história dos prisioneiros na Alemanha e a resistência armada de 1.140 judeus na 2ª Guerra são temas de dois estudos

A corda bamba do heroísmo

Marco Antonio Villa
especial para a Folha

A vasta literatura sobre a Segunda Guerra foi acrescida de mais dois livros: "A Última Fuga", de John Nichol e Tony Rennell, e "Os Irmãos Bielski", de Peter Dufy. O primeiro conta a história dos 300 mil prisioneiros de guerra americanos e ingleses na Alemanha nazista entre os anos de 1944-1945. Os aliados tinham invadido a Normandia e, no leste, o Exército Vermelho vinha obtendo sucessivas vitórias contra o Exército alemão. Os prisioneiros estão neste fogo cruzado: são deslocados de campo para campo de detenção e são mais de 200 -em marchas forçadas com centenas de mortos, servindo como uma espécie de escudo humano quando dos freqüentes bombardeios aliados na Alemanha e Polônia. A imagem dos prisioneiros é muito diferente daquela consagrada pelo cinema. Ao invés do americano de suéter que passa o dia fazendo pilhérias, ironizando seus carcereiros e imaginando planos mirabolantes de fuga (quando não consegue cavar túneis enganando os "boches"), temos prisioneiros esqueléticos, mas que, mesmo assim, são obrigados a realizar trabalhos forçados, sempre ameaçados de fuzilamentos sumários. O desaparecimento de um pão, por exemplo, foi pretexto para os alemães aleatoriamente fuzilarem vários prisioneiros. A barbárie terminou quando o pão foi devolvido.

Fora do estereótipo
O prisioneiro não se encaixa no estereótipo do herói militar: não morreu lutando e nem venceu o inimigo. Acabou tendo de se render. As histórias são diversas: um soldado perdido do seu destacamento, outro que foi gravemente ferido ou um piloto que teve seu avião abatido. Por paradoxal que seja, sobreviver rompe a aura dos "valores" da guerra, onde só pode haver soldados vencedores e soldados mortos. Daí a dificuldade de readaptação que tiveram quando voltaram aos EUA ou à Inglaterra e a resistência dos governos em considerá-los heróis. Sempre ficava no ar a pergunta: como distinguir o soldado que foi aprisionado lutando do que estava ferido ou daquele que simplesmente, no primeiro combate, acabou se entregando ao inimigo? Quando os prisioneiros são libertados pelo Exército Vermelho -a maioria deles estava no leste da Alemanha, nos territórios ocupados pelos nazistas-, começa a vingança. Saques de casas de alemães simplesmente por serem alemães, estupros, enforcamentos, fuzilamentos a esmo. Um soldado americano, irritado com o andar de uma moça numa pequena cidade da Alemanha, resolveu simplesmente abatê-la a sangue frio, em plena rua, com uma rajada de metralhadora. A absoluta desorganização durante as primeiras semanas após a libertação foi marcada pela anarquia. Os ex-prisioneiros queriam voltar o mais rápido possível para seus países, mas não havia meios de retirá-los e nem interesse por parte das autoridades militares. Em um dos relatos, os soldados amotinados atacam um capelão militar que tentava organizá-los dentro das normas disciplinares do Exército: teve de fugir para escapar do linchamento. Depois de sobreviver ao desafio diário nos campos de prisioneiros, os soldados tiveram de se adaptar ao mundo em liberdade. E não foi fácil. Numa refeição, um ex-prisioneiro roubava comida e guardava no bolso. Outro preferia armazenar velas e fósforos. Assistir a um filme de humor nada representava: "Eu não podia compreender o filme nem porque as pessoas riam tanto. Era tudo estranho para mim. Não podia entrar no mundo da imaginação", disse um deles. O soldado americano que passou meses imaginando como seria recebido por sua mulher ao chegar a[o Estado de] Idaho, após ter atravessado o país, foi surpreendido pela notícia de que ela queria o divórcio. Como muitos ex-soldados, buscou consolo na bebida. Outro ex-prisioneiro não conseguia, nas férias, viajar para lugar nenhum; tinha medo, não queria sair da Inglaterra. Quando foi receber os soldos atrasados, acabou tendo um desconto de 10%, referente ao "Lagergeld", a moeda que circulava nos campos e que "pagava" o trabalho dos prisioneiros, como determinava a Convenção de Genebra.

Guerra de guerrilhas
Já "Os Irmãos Bielski" trata da resistência armada dos judeus de uma região de Belarus contra a dominação nazista, entre 1941 e 1944 -quando o Exército Vermelho retomou o controle da região, que passou a fazer parte da União Soviética, até a sua desintegração.
O autor reconstruiu a saga da família Bielski trabalhando com arquivos russos, alemães, poloneses e de Belarus, além de inúmeras entrevistas com participantes da resistência. Os irmãos Bielski organizaram o maior destacamento judaico do conflito e, por meio de uma guerra de guerrilhas, atacaram sistematicamente o Exército nazista. Ao mesmo tempo, fomentavam movimentos de resistência na área de sua influência, estimulando a fuga de judeus dos campos de concentração para as florestas. Arregimentaram 1.140 combatentes, travaram dezenas de combates, atacaram ferrovias e armazéns, enfraquecendo o domínio alemão. Na contabilidade macabra da guerra, para efeito de comparação, na resistência do gueto de Varsóvia morreram 16 soldados alemães; já a ação guerrilheira dos irmãos Bielski abateu 381 soldados.
A ação do destacamento judaico nem sempre foi fácil: se tinham de enfrentar um poderio bélico infinitamente superior, ao mesmo tempo conviviam com o anti-semitismo presente entre os oficiais do Exército Vermelho e as desconfianças por se tratar de um grupo guerrilheiro autônomo. Apesar da heróica resistência, com o término da guerra, a maioria dos guerrilheiros acabou migrando para a Europa Ocidental, os EUA ou para a Palestina: na União Soviética stalinista também não havia lugar para os judeus.


Marco Antonio Villa é historiador é professor do departamento de ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos (SP). É autor de "Jango, um Perfil (1945-1964)" (ed. Globo).

A Última Fuga
508 págs., R$ 65,00
de John Nichol e Tony Rennell. Trad. Alfredo Barcelos Pinheiro de Lemos. Ed. Imago.
Os Irmãos Bielski
320 págs., R$ 46,00
de Peter Dufy. Trad. Marcos Padilha. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).



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