São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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Em defesa das letras vivas

"Estudos Filológicos", de Antenor Nascentes, e "Sob a Pele das Palavras", de Celso Cunha, reúnem inéditos e dispersos de dois dos principais historiadores da língua portuguesa

Maria Helena de Moura Neves
especial para a Folha

Quase simultaneamente, têm os estudiosos da língua e das letras portuguesas dois livros históricos, ambos com a significativa chancela da Academia Brasileira de Letras. Históricos especialmente porque trazem a lume dispersos e alguns inéditos de dois estudiosos que fizeram história na construção do saber lingüístico e filológico no Brasil: Antenor Nascentes e Celso Ferreira da Cunha. A obra "Estudos Filológicos", de Nascentes, organiza-se em três partes: a primeira traz a apresentação, uma explicação da obra e a bibliografia de e sobre o homenageado; a segunda apresenta três estudos sobre ele; a terceira reúne 57 ensaios do autor classificados em 12 rubricas, sendo as mais densas as referentes a filologia portuguesa e românica, morfologia e sintaxe da língua portuguesa, lexicografia e lexicologia do português.
Antenor Nascentes é mestre de mestres, aquele que, historicamente, permitiu a cada estudioso brasileiro ter na estante de sua biblioteca particular um dicionário etimológico brasileiro e aquele de quem se pode dizer, com Barbadinho Neto, que "não ficou recanto de nossos estudos de língua portuguesa ao qual (...) não tivesse dado atenção".
"O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa", para cuja elaboração o autor passou 20 anos coligindo materiais, foi polêmico na época, já o sabemos.
Exatamente por isso são de especial importância quatro textos da seção oito, em que Nascentes faz a defesa da obra, aceitando ou refutando críticas, mas com a elegância de ressalvar que todas elas foram "feitas por pessoas com autoridade para falar, e, ainda mais, em linguagem digna de gente educada", e para chegar à confissão: "Ninguém encontrou mais lacunas no dicionário do que eu".
Na defesa, são reveladoras duas indicações: a de que o dicionário não foi feito para o consulente comum, já que "quem se preocupa com saber uma etimologia, é pessoa de cultura mais que mediana", e a de que não opinou nos casos duvidosos por ter preferido proceder com moderação, já que os estudos sobre a língua não estavam tão adiantados que fosse possível tal solução. Nessa mesma seção é interessante a publicação do texto de 1968 de Hamílton Elia, que só então traduzia para o português o prefácio de Meyer-Lübke ao "Dicionário Etimológico", publicado originariamente em alemão, fato também criticado na época.


"A língua é uma entidade viva e não pode obedecer a resoluções de gabinete, por respeitáveis que sejam"


Mas a nota de destaque quanto aos estudos de Antenor Nascentes se refere ao seu inovador interesse pela "língua viva", como ressalta um dos colaboradores do livro, Zdenek Hampejs, que cita uma frase retirada de entrevista concedida pelo homenageado: "A língua é uma entidade viva e não pode obedecer a resoluções de gabinete, por mais respeitáveis que sejam".

Tirania
A esse respeito, Hampejs destaca a primeira obra filológica de Nascentes, "O Linguajar Carioca", de 1922, e destaca também o encaminhamento para a dialetologia, com "A Gíria Brasileira", de 1953, ressaltando a opção do autor por entender o uso como o ditador da linguagem, ao lado do senso estético, e a oposição dele aos que perturbam o entendimento com a tirania das regrinhas, aos que subestimam as forças vivas da língua e querem parar o processo de sua evolução, aos que se aferram ao passado ou à "lógica" da língua, aos que se rebelam contra estrangeirismos e neologismos, privando a língua de sua plasticidade, aos que não estudam e não acompanham o progresso da ciência. A segunda obra com que estamos brindados é "Sob a Pele das Palavras", que traz, do filólogo e lingüista, bibliófilo e medievalista, literato e camonista Celso Cunha, 30 ensaios, divididos em cinco seções: medievalística, camonística, lexicografia (que, na verdade, é mais metalexicografia e lexicologia), filologia e lingüística, memorialística. Quem é Celso Cunha no panorama da lingüística e da filologia qualquer estudioso do ramo sabe, pois quem buscou estudar a fundo esta língua portuguesa, por qualquer filtro, o teve à cabeceira. Mas, o que é mais importante, o povo brasileiro, de Norte a Sul, também conhece e respeita esse nome que é o daquele gramático de rigor tradicional, mas de sensibilidade inovadora, em quem se agarram tanto os tradicionalistas convictos, que confiam no seu estabelecimento de padrões gramaticais, como os inovadores ferrenhos, que também nele confiam para lições cientificamente seguras sobre variação lingüística. Celso Cunha já recebera uma homenagem memorável na publicação, em 1995, de uma miscelânea na qual Houaiss o qualifica como "apaixonado da luta pela unidade da língua e por isso esforçado no estabelecimento de suas variantes e eventuais contrastes". O conjunto que agora se publica só faz confirmar a posição que Josué Montello lhe atribui: "A do grande mestre que, conhecendo profundamente a língua portuguesa, nas suas minúcias e no seu conjunto, associou a esse saber admirável a sensibilidade de quem nascera para apreciá-la na condição de obra de arte". Bem-vindos são, particularmente, os inéditos, entre os quais se destaca o intrigante "A Magia da Palavra". Notável nesse texto é uma organização que se faz ver claramente como provisória e que, por isso mesmo, se pode entender como reveladora de uma capacidade singular de pontilhar um tema e ao mesmo tempo mergulhar nele, só possível a alguém com formação, curiosidade e experiência como as tinha o autor. O tema da "linguagem como magia" aí se desnuda num acercamento que vem de diversos ângulos, só havendo a lamentar a impossibilidade de acesso a algumas que seriam importantes notas de rodapé, por exemplo as que se ligam à reflexão sobre o "lógos" grego. O estudo parte da afirmação de que pela palavra "fomos criados" e daí vai aos nomes próprios -um campo que exige tratamento guiado por muita reflexão e sensibilidade- e chega ao mistério do silêncio, não sem antes fixar-se no crescer de um primado da escrita, terreno em que Platão não é esquecido, faltando apenas salientar a má-vontade do filósofo grego em relação a essa modalidade de linguagem.

Grande impulso
Dessas duas obras de homenagem podemos dizer, afinal, que constituem material valioso para uma área que está tomando grande impulso, a historiografia lingüística. Elas vêm do Rio de Janeiro, de onde temos visto vir o grande estofo da cultura filológica brasileira, embalada no berço do Colégio Pedro 2º. Feliz memória a de quem tem um colégio que registra concursos para os quais um candidato manda buscar na Europa livro que trata "do problema das nasais no português antigo", que foi o que fez Antenor Nascentes, segundo o depoimento do embaixador Roberto Assumpção de Araújo.
Do exame de ambas as obras e da reflexão a que elas levam fica a nítida noção de que muitos afoitos que hoje assestam baterias contra o bloco de conhecimento sobre língua e linguagem que a tradição oferece ouviram falar alguma coisa sobre filólogos e gramáticos tradicionais, mas não souberam ler as lições que os grandes dentre eles nos deixaram.

Maria Helena de Moura Neves é professora no departamento de lingüística da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Araraquara) e autora de "A Gramática Funcional" (ed. Martins Fontes), entre outros livros.

Estudos Filológicos
745 págs.
de Antenor Nascentes. Academia Brasileira de Letras (av. Presidente Wilson, 203, CEP 20030-021, RJ, tel. 0/xx/21/ 3974-2500).
Sob a Pele das Palavras
464 págs., R$ 63,00
de Celso Cunha. Org. Cilaine da Cunha Pereira. Academia Brasileira de Letras/ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2131-1111).



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