São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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Ponto de fuga

O canto de Bayreuth

Jorge Coli
Especial para a Folha

Tudo ia bem no começo. "O Anel do Nibelungo", ciclo de quatro óperas composto por Wagner, cada uma encenada num dia, terminava sua carreira. No Festival de Bayreuth, a montagem dessa tetralogia dura quatro ou cinco anos, voltando em cada verão. Depois, é destruída, para que desapareça para sempre. Em seguida, prepara-se a nova produção. No fim de agosto, era a última vez que se apresentava a atual, concebida por Jürgen Flimm, com cenários de Erich Wonder. Grande poesia em certos momentos, desde o primeiro quadro no fundo do rio, com carcaças de barcas naufragadas onde as Filhas do Reno evoluíam com jeito de Esther Williams. Perpassaram por este "Anel" certas lembranças norte-americanas: planícies, interiores vagamente sulistas, paisagens como nos quadros de Grant Wood ou de Thomas Benton.
Os meios técnicos que o teatro wagneriano de Bayreuth dispõe são fora do comum. Tudo o que é concebido nos projetos de montagem sobressai por uma execução prodigiosa. Faltou, porém, na tetralogia de Flimm, coerência cênica forte e direção de atores convincente; a movimentação no quartel das valquírias foi particularmente infeliz. Ao contrário, a gruta de Fafner (buraco com uma arquibancada ao lado e a tabuleta: "Vista para Fafner"), diante de imensa perspectiva, serviu para o mais belo momento: um enorme dragão de tecido, leve, inflado, no qual Siegfried mergulha e atravessa. O pássaro da floresta surgiu como anjo da guarda, na figura de um mímico com asas.
Foi acertado que o próximo "Anel" seria confiado a Lars von Trier. Mas, depois de dois anos de estudos, o cineasta desistiu da tarefa.

Moços - Tudo ia bem no começo. A montagem de Jürgen Flinn em Bayreuth não atingia o gênio de Chéreau, há quase 30 anos (os DVDs Unitel trazem registro dessas apresentações incomparáveis), nem a solenidade do penúltimo "Anel", montado por Harry Kupfer. Mas teve belas invenções e foi, em todo caso, mais convincente que o anterior, de triste memória, concebido por Alfred Kirchner.
A direção musical, sólida, justa, do maestro Adam Fischer, estava também nesse nível honroso. Alan Titus, introspectivo, encarnou Wotan como mais ninguém hoje é capaz e como só os grandes do passado o faziam. Muitos jovens no elenco confirmaram uma renovação de alto nível no canto wagneriano, depois de um período no fundo da vaga. A japonesa, de aparência frágil Mihoko Fujimura, musical e sensível como Fricka e como a Waltraute de "O Crepúsculo dos Deuses", mostrou voz tão poderosa, tão bela no timbre, tão rica nos harmônicos que provocou um estrondo de aplausos. Evelyn Herlitzius foi Brünnhilde. Graciosa, bonita e ótima atriz, com fervor comovido fez esquecer os limites de sua voz.
Sobretudo, o magnífico Siegmund de Robert Dean Smith revelou, enfim, depois de tantos anos, um verdadeiro tenor dramático, como não existem mais. Salvo armadilhas do destino, ele estará, por força, entre os grandes intérpretes da nova geração.

Taquara rachada - Tudo ia bem no começo. Até que apareceu Siegfried e seu urso. O urso fez coisas de urso e deu conta do recado. Mas Siegfried, esse, foi uma calamidade. Escalado para o último "Anel" deste verão, o tenor Wolfgang Schmidt tem uma voz de cabrito, incapaz de atingir os agudos, que desafinavam e ondulavam num vibrato sem controle nenhum. Schmidt é passável em papéis de composição, como o Herodes, que cantou na "Salomé" de São Paulo. Mas por que cargas d'água Bayreuth o contratou para um Siegfried é mistério que só sabem Deus e Wolfgang Wagner, o diretor do festival.

Dinastia - Depois da morte de Richard Wagner, sua mulher, Cosima, tomou as rédeas do Festival de Bayreuth; em seguida, o comando passou à sua nora Winifred. Em 1951, os netos do compositor, Wieland e Wofgang, renovaram o espírito das representações, já que era preciso apagar da memória certas antigas afinidades políticas. Wieland morreu em 1966. Wolfgang, com mais de 80 anos, continua no posto de diretor. A numerosa descendência de Wagner fervilha, na expectativa da futura sucessão.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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