São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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Ao tentar reconstituir o caso Collor-PC Farias, "Uma Morte no Brasil", de Peter Robb, reforça os estereótipos sobre o país

Escândalo sob encomenda

Peter Burke

No início deste ano, o escritor australiano Peter Robb publicou um livro sobre o Brasil que já atraiu atenção considerável na Grã-Bretanha. E não é um livro de viagem, assim como outro livro do autor, "Midnight in Sicily" [Meia-Noite na Sicília], de 1996. "Meia-Noite na Sicília" tem um subtítulo longo, mas preciso: "Sobre Arte, Comida, História, Viagem e La Cosa Nostra". Robb, que já publicou um livro sobre Caravaggio, escreve com sensibilidade sobre o trabalho do pintor expressionista siciliano do século 20 Renato Guttoso e também sobre literatura, notadamente o grande romance "O Gattopardo" [ed. Record], do aristocrata siciliano Lampedusa, que vê a unificação da Itália com um olhar hostil, como uma tomada do Sul pelos piemonteses.
Robb escreve com prazer palpável sobre comida, destacando a especialidade siciliana "pannelle" (fatias fritas de massa de grão-de-bico) e "pasta con le sarde" (macarrão com sardinhas). Ele é bem informado sobre a história da Itália e conquistou minha simpatia com suas referências entusiásticas à obra de Fernand Braudel. Robb é um autor sobre viagens nato, com um ouvido aguçado para os diálogos e com um olhar observador. Ele também é um contista nato, com um tema cativante: a Máfia. Embora a Cosa Nostra seja mencionada por último no subtítulo do livro, "Meia-Noite na Sicília" é essencialmente a história da Máfia italiana da década de 1950 até a de 1990, com as digressões do autor sobre alimentação, pintura e história funcionando como uma espécie de rápido alívio em um relato vívido de corrupção, violência e mistério. Qual era a proximidade da Máfia com o primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti? A Máfia poderia ter salvado o líder democrata-cristão Aldo Moro depois que ele foi seqüestrado pelas Brigadas Vermelhas, e por que sua oferta para fazê-lo não foi aceita? Por que o banqueiro italiano Robert Calvi foi encontrado enforcado sob a ponte dos Blackfriars, em Londres? Quem envenenou o expresso que matou o banqueiro Michele Sindona quando ele estava aparentemente em segurança na prisão?
Quando comecei a ler "A Death in Brazil" [Uma Morte no Brasil, ed. Henry Holt, 352 págs., US$ 26], tive a curiosa sensação de déjà vu. Na Itália, Robb foi atraído pelo Sul pobre, por Palermo e Nápoles, mais que por Milão ou Florença. No Brasil, ele tem mais a dizer sobre o Nordeste: São Paulo é rapidamente dispensada como "a maior, mais suja e mais perigosa cidade da América do Sul" e, a Folha, como "um jornal bastante insosso" (embora "o diário mais influente do Brasil").
Os artistas estão ausentes do livro desta vez, mas há algumas apreciações sensíveis de autores brasileiros, notadamente Machado de Assis e Gilberto Freyre ("Casa Grande e Senzala" é descrito como "desconcertantemente bem escrito, com linguagem casual e extravagante, detalhes vívidos e exuberantes e cheio das visões, odores e sabores do Nordeste"). A comida e a bebida estão muito presentes neste livro, e a descrição de Robb da feijoada é ao mesmo tempo precisa e lírica.
A história do Brasil não é esquecida, e há uma vívida narrativa da campanha contra Canudos, baseada em Euclides da Cunha e no historiador americano Robert Levine. Os dons do autor como cronista de viagem ficam mais evidentes na evocação da vida nas ruas em torno de Nossa Senhora do Carmo, em Recife, que lhe lembrou Nápoles. A descrição vívida e precisa da disposição do bar preferido de Robb é tão detalhada quanto uma fotografia ou uma pintura realista: "Os intermináveis compartimentos de uma antiga cômoda continham garrafas de bebida, cartões-postais, abridores, espetos com contas e recibos, fotografias, um calendário, copos de diversos tamanhos, vários molhos de chaves, lápis e uma caneta esferográfica, algumas flores de papel num pequeno vaso, uma garrafa de licor caseiro, estranho e leitoso, um peso de papel e algumas figurinhas humanas de barro cru" (certamente Lampião e Maria Bonita).
Quanto à narrativa e ao mistério, desta vez são fornecidos pela história de PC Farias, sua ascensão à riqueza e ao poder a serviço de Fernando Collor de Mello, sua queda, a fuga para a Tailândia, a prisão e finalmente seu assassinato, a "morte no Brasil" do título do livro. Em suma, Robb, que descreve Freyre como "escrevendo o mesmo livro repetidamente", fez algo parecido, dando-nos o que as prescrições dos médicos ingleses costumavam descrever como "o mesmo preparado de antes". O preparado é uma espécie de feijoada literária, as descrições de romances, comidas, ruas e assim por diante, boiando num molho de corrupção. Ou poderíamos falar de contas coloridas passadas num fio, o fio de uma narrativa que começa cedo, mas é constantemente interrompida, aumentando o suspense, até a conclusão do mistério -não solucionado.
Esse método ou gênero informal é excelente, pelo menos quando os diversos temas são entremeados com habilidade, como neste caso. O que é bem mais problemático é a analogia implícita entre a Itália e o Brasil, que vai além das semelhanças entre o Sul italiano e o Nordeste brasileiro. Como meio para visitantes estrangeiros se orientarem ao chegar, a analogia talvez não seja má. Como Peter Robb, eu já conhecia a Itália antes de visitar o Brasil e comecei minha primeira estada em São Paulo tendo uma visão da cidade como uma Milão gigantesca, embora gradualmente as diferenças tenham se tornado cada vez mais aparentes. No que diz respeito a suas descrições da vida cotidiana, as diferenças também são aparentes para Robb, e ninguém poderia dizer que sua descrição de Recife careça de cor local. Por outro lado, a história de Collor-PC Farias -apesar das dramáticas citações de conversas que o autor não escutou e sua tentativa fracassada de entrevistar Augusto Farias [irmão de PC Farias]- é vista como uma apresentação repetida dos complôs e escândalos associados a Andreotti, Sindona e Calvi.
Robb é um guia bastante confiável da história recente da Máfia. Ele viveu na Itália durante 14 anos ou mais, numa época em que a Máfia estava sob intensa investigação, e pôde se servir não apenas dos muitos volumes de registros de tribunal, mas também dos relatórios de uma comissão parlamentar. Por outro lado, Robb passou menos tempo no Brasil, embora tenha visitado o país durante mais de 20 anos e seja menos simpático à cultura (ou, com a idade, esteja ficando mais inflexível em suas opiniões). Ele odeia as telenovelas e, apesar de sua amizade com brasileiros, fala em uma "amabilidade espúria" como uma característica das relações sociais cotidianas. Ele aprecia Lula e acha que sua eleição foi boa para o Brasil, mas o descreve como "treinado para sorrir freqüentemente e chorar com fluência ensaiada".
Quanto ao caso Collor-PC Farias, a nota de Robb sobre fontes cita apenas alguns livros, juntamente com algumas reportagens da revista "Isto É". Em todo caso, o conflito entre o desejo de descrever um país e sua cultura e o desejo de contar a história de um escândalo é mais agudo desta vez. Sejam quais forem as intenções do autor, um resultado dessa porção de temas é certamente fazer de PC Farias um símbolo do Brasil, assim reforçando os estereótipos estrangeiros sobre o país. De modo bastante previsível, embora Robb raramente mencione o Carnaval, uma resenha recente de seu livro no jornal inglês "The Observer" trouxe um subtítulo que colocava a corrupção ao lado do Carnaval, como "características essenciais do país mais colorido da América do Sul".


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (ed. Jorge Zahar) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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