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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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Campanha do governo para erradicar a miséria põe em evidência a obra do autor de "Geografia da Fome", que forneceu a base conceitual para bandas como Chico Science & Nação Zumbi e mundo livre s/a

JOSUÉ DE CASTRO E OS CARANGUEJOS COM CÉREBROS

Túlio Velho Barreto
especial para a Folha

Em 1993, no 20º aniversário da morte do cientista pernambucano Josué de Castro (1908-1973), as bandas Chico Science & Nação Zumbi e mundo livre s/a encaravam o então inevitável percurso Recife-São Paulo atrás de alguém disposto a "bancar" seus primeiros CDs. Passados dez anos daquela viagem, é relevante destacar a influência da obra de Castro sobre o que os "caranguejos com cérebros" começavam a aprontar. Assim, logo se verá que ela corresponde à base conceitual do manguebeat -o que mostra a sua atualidade e o fato de que poucos trataram de maneira tão própria Recife, sua geografia física e humana e sua cultura, como Castro e os "mangueboys".
Atualmente, os estudos pioneiros de Josué de Castro sobre a fome -tema que em sua época era tabu no meio acadêmico- vêm sendo objeto de novas edições e leituras. Também têm ganho novo impulso, sobretudo do ponto de vista político, a partir das iniciativas do governo Lula para erradicar a fome e a miséria no país. Mas, até a reedição do estudo "Geografia da Fome" e do romance "Homens e Caranguejos", pela Civilização Brasileira (2001), foi na "cena mangue" que eles começaram a tornar à superfície com mais vigor.
E, para que se tenha uma idéia da influência de Castro sobre os "mangueboys", deve-se começar lendo o "Prefácio um Tanto Gordo para um Romance um Tanto Magro", de "Homens e Caranguejos" [ed. Civilização Brasileira], e o manifesto "Caranguejos com Cérebros", do manguebeat, encartado no CD "Da Lama aos Caos" (1994), de Chico Science. De fato, a estrutura e o conteúdo do manifesto ("Mangue o conceito; Manguetown a cidade; Mangue a cena") parecem contidos naquele prefácio.
Mas não é só. Para uma medida mais exata dessa influência, pode-se cotejar "Rios, Pontes e Overdrives", também gravada no primeiro CD do mundo livre, "Samba Esquema Noise" (1994), que ressalta as "impressionantes esculturas de lama" e percorre longo itinerário pela periferia de Recife ("É Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor, é o Ibura, Ipsep/... Santo Amaro, Madalena.../... é Brasilit, Beberibe, CDU/ Capibaribe e o Centrão") com o trecho do "Prefácio", no qual Castro afirma que "o fenômeno da fome se revelou a [seus] olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite".
Pode-se comparar também "Antene-se" ("Recife, cidade do mangue/ Incrustada na lama dos manguezais/ Onde estão os homens caranguejos ..."), "Da Lama ao Caos" ("O sol queimou, queimou a alma do rio/ Eu vi um chié andando devagar/ Vi um aratu pra lá e pra cá/ Vi um caranguejo andando pro sul/ Saiu do mangue, virou gabiru/ Oh, Josué, eu nunca vi tamanha desgraça ...") e "Risoflora" ("Eu sou um caranguejo e estou de andada ...") com o que Castro escreveu para explicar que não foi na Sorbonne que tomou conhecimento daquele fenômeno, mas na "lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejos, pensando e sentindo como caranguejos".
Embora a temática do "Prefácio" esteja mais nítida nos trabalhos de Science, em especial nos dois primeiros CDs, é possível observá-la também no já citado "Samba Esquema Noise", do mundo livre. Por exemplo, "Cidade Estuário" ("Maternidade, diversidade, salinidade/ Fertilidade, produtividade/ Recife, Cidade, Estuário/ Recife, Cidade, És tu .../ Água salobra, desova e criação/ Matéria orgânica, troca e produção") refere-se à formação natural da cidade, tema tratado assim por Castro: "Os mangues iam assim apoderando-se da vida de toda aquela gente [...]. Estas estranhas plantas que, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado [dessa] fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do Recife [...]. Na verdade, foram os mangues [...], em grande parte, os seus criadores".
De "Afrociberdelia" (1996), segundo CD de Chico Science, há ainda três músicas sobre o tema: "Corpo de Lama" ("se o asfalto é meu amigo eu caminho/ como aquele grupo de caranguejos/ ouvindo as músicas do trovão/... fiquei apenas pensando/... há muitos meninos correndo em mangues distantes..."); "Cidadão do Mundo" ("é o zum zum zum da capital/ só tem caranguejo esperto/ saindo desse manguezal/ eu pulei, eu pulei/ corria no coice macio/ encontrei o cidadão do mundo/ no manguezal da beira do rio/ Josué! ..."), que é uma referência explícita a Castro -"sou um homem interessado no espetáculo do mundo", dizia ele-; e, por último, a emblemática "Manguetown", espécie de hino às avessas do Recife ("estou enfiado na lama/ é um bairro sujo/ onde os urubus têm asas/ e eu não tenho asas/ mas estou aqui em minha casa/... vou pintando, segurando as paredes do mangue do meu quintal/ manguetown/ andando por entre becos/ andando em coletivos/ ninguém foge ao cheiro sujo/ da lama da manguetown/ ... ninguém foge à vida suja dos dias da manguetown").
Tais versos podem ser entendidos, enfim, como uma releitura do "Prefácio" e do próprio romance, à medida que Castro já caracterizara os "homens caranguejos/ mangueboys" e seu cotidiano como "seres anfíbios habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar dessa crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos". Não à toa, ele próprio chamou esse livro de memórias de "o romance do ciclo do caranguejo".
Mas o ciclo foi abalado pela urbanização, que feriu os manguezais de Recife e suas veias (os rios). Tal fato não escapou ao mundo livre, e, em "Samba Esquema Noise", pode-se ouvir "Sob o Calçamento", em que Fred Zeroquatro retrata o processo que levou à obstrução das veias ("Terra por si só/ não vira asfalto/ ... Onde há calçamento/ pode crer que havia Mangue"). Porém enquanto a Nação Zumbi, mesmo após a morte de Science, manteve diálogo com a obra de Castro, o que é visível em "Quando a Maré Encher" e "Caranguejo da Praia das Virtudes", do CD "Rádio S.AMB.A." (2000), o mundo livre diversificou sua temática a partir do segundo CD, "Guentando a Ôia (1996)". De toda forma, a influência de Josué de Castro já se mostrara decisiva na desobstrução das veias da cidade, ainda que o objeto usado para isso, uma antena parabólica, tenha sido enfiada na lama pelos "mangueboys".


Túlio Velho Barreto é cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. É autor de "Representação Classista ou Representação de Classe?" (ed. Massangana), entre outros.


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