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Campanha do governo para erradicar a miséria põe em evidência a obra do autor de "Geografia da Fome", que forneceu a base conceitual para bandas como
Chico Science & Nação Zumbi e mundo livre s/a
JOSUÉ DE CASTRO E OS CARANGUEJOS COM CÉREBROS
Túlio Velho Barreto
especial para a Folha
Em 1993, no 20º aniversário da
morte do cientista pernambucano
Josué de Castro (1908-1973), as
bandas Chico Science & Nação
Zumbi e mundo livre s/a encaravam o
então inevitável percurso Recife-São
Paulo atrás de alguém disposto a "bancar" seus primeiros CDs. Passados dez
anos daquela viagem, é relevante destacar a influência da obra de Castro sobre o
que os "caranguejos com cérebros" começavam a aprontar. Assim, logo se verá
que ela corresponde à base conceitual do
manguebeat -o que mostra a sua atualidade e o fato de que poucos trataram de
maneira tão própria Recife, sua geografia
física e humana e sua cultura, como Castro e os "mangueboys".
Atualmente, os estudos pioneiros de
Josué de Castro sobre a fome -tema que
em sua época era tabu no meio acadêmico- vêm sendo objeto de novas edições
e leituras. Também têm ganho novo impulso, sobretudo do ponto de vista político, a partir das iniciativas do governo
Lula para erradicar a fome e a miséria no
país. Mas, até a reedição do estudo "Geografia da Fome" e do romance "Homens
e Caranguejos", pela Civilização Brasileira (2001), foi na "cena mangue" que eles
começaram a tornar à superfície com
mais vigor.
E, para que se tenha uma idéia da influência de Castro sobre os "mangueboys", deve-se começar lendo o "Prefácio um Tanto Gordo para um Romance
um Tanto Magro", de "Homens e Caranguejos" [ed. Civilização Brasileira], e o
manifesto "Caranguejos com Cérebros",
do manguebeat, encartado no CD "Da
Lama aos Caos" (1994), de Chico Science. De fato, a estrutura e o conteúdo do
manifesto ("Mangue o conceito; Manguetown a cidade; Mangue a cena") parecem contidos naquele prefácio.
Mas não é só. Para uma medida mais
exata dessa influência, pode-se cotejar
"Rios, Pontes e Overdrives", também
gravada no primeiro CD do mundo livre,
"Samba Esquema Noise" (1994), que ressalta as "impressionantes esculturas de
lama" e percorre longo itinerário pela
periferia de Recife ("É Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor, é o Ibura, Ipsep/...
Santo Amaro, Madalena.../... é Brasilit,
Beberibe, CDU/ Capibaribe e o Centrão") com o trecho do "Prefácio", no
qual Castro afirma que "o fenômeno da
fome se revelou a [seus] olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina,
Santo Amaro, Ilha do Leite".
Pode-se comparar também "Antene-se" ("Recife, cidade do mangue/ Incrustada na lama dos manguezais/ Onde estão os homens caranguejos ..."), "Da Lama ao Caos" ("O sol queimou, queimou
a alma do rio/ Eu vi um chié andando devagar/ Vi um aratu pra lá e pra cá/ Vi um
caranguejo andando pro sul/ Saiu do
mangue, virou gabiru/ Oh, Josué, eu
nunca vi tamanha desgraça ...") e "Risoflora" ("Eu sou um caranguejo e estou de
andada ...") com o que Castro escreveu
para explicar que não foi na Sorbonne
que tomou conhecimento daquele fenômeno, mas na "lama dos mangues do
Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne
de caranguejos, pensando e sentindo como caranguejos".
Embora a temática do "Prefácio" esteja
mais nítida nos trabalhos de Science, em
especial nos dois primeiros CDs, é possível observá-la também no já citado
"Samba Esquema Noise", do mundo livre. Por exemplo, "Cidade Estuário"
("Maternidade, diversidade, salinidade/
Fertilidade, produtividade/ Recife, Cidade, Estuário/ Recife, Cidade, És tu .../
Água salobra, desova e criação/ Matéria
orgânica, troca e produção") refere-se à
formação natural da cidade, tema tratado assim por Castro: "Os mangues iam
assim apoderando-se da vida de toda
aquela gente [...]. Estas estranhas plantas
que, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado [dessa] fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do Recife
[...]. Na verdade, foram os mangues [...],
em grande parte, os seus criadores".
De "Afrociberdelia" (1996), segundo
CD de Chico Science, há ainda três músicas sobre o tema: "Corpo de Lama" ("se
o asfalto é meu amigo eu caminho/ como
aquele grupo de caranguejos/ ouvindo as
músicas do trovão/... fiquei apenas pensando/... há muitos meninos correndo
em mangues distantes..."); "Cidadão do
Mundo" ("é o zum zum zum da capital/
só tem caranguejo esperto/ saindo desse
manguezal/ eu pulei, eu pulei/ corria no
coice macio/ encontrei o cidadão do
mundo/ no manguezal da beira do rio/
Josué! ..."), que é uma referência explícita
a Castro -"sou um homem interessado
no espetáculo do mundo", dizia ele-; e,
por último, a emblemática "Manguetown", espécie de hino às avessas do Recife ("estou enfiado na lama/ é um bairro
sujo/ onde os urubus têm asas/ e eu não
tenho asas/ mas estou aqui em minha casa/... vou pintando, segurando as paredes do mangue do meu quintal/ manguetown/ andando por entre becos/ andando em coletivos/ ninguém foge ao
cheiro sujo/ da lama da manguetown/ ...
ninguém foge à vida suja dos dias da
manguetown").
Tais versos podem ser entendidos, enfim, como uma releitura do "Prefácio" e
do próprio romance, à medida que Castro já caracterizara os "homens caranguejos/ mangueboys" e seu cotidiano como "seres anfíbios habitantes da terra e
da água, meio homens e meio bichos.
Alimentados na infância com caldo de
caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da
lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem
enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar dessa crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos". Não à toa, ele próprio chamou esse livro de memórias de "o romance do
ciclo do caranguejo".
Mas o ciclo foi abalado pela urbanização, que feriu os manguezais de Recife e
suas veias (os rios). Tal fato não escapou
ao mundo livre, e, em "Samba Esquema
Noise", pode-se ouvir "Sob o Calçamento", em que Fred Zeroquatro retrata o
processo que levou à obstrução das veias
("Terra por si só/ não vira asfalto/ ... Onde há calçamento/ pode crer que havia
Mangue"). Porém enquanto a Nação
Zumbi, mesmo após a morte de Science,
manteve diálogo com a obra de Castro, o
que é visível em "Quando a Maré Encher" e "Caranguejo da Praia das Virtudes", do CD "Rádio S.AMB.A." (2000), o
mundo livre diversificou sua temática a
partir do segundo CD, "Guentando a Ôia
(1996)". De toda forma, a influência de
Josué de Castro já se mostrara decisiva
na desobstrução das veias da cidade, ainda que o objeto usado para isso, uma antena parabólica, tenha sido enfiada na lama pelos "mangueboys".
Túlio Velho Barreto é cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. É autor de "Representação Classista ou Representação de
Classe?" (ed. Massangana), entre outros.
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