UOL


São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Sonho de uma Noite de Verão" e "Macbeth", adaptadas para a prosa e dirigidas a jovens leitores e encenadores, ressaltam a força dramática das peças e se mostram uma boa iniciação à obra do autor inglês

A ficção legal de Shakespeare

Beth A. Keiser - 18.abr.2002/Associated Press
Encenação de "Sonho de uma Noite de Verão", de William Shakespeare, em Nova York


Luiz Fernando Ramos
especial para a Folha

Shakespeare é sempre um desafio a qualquer tradutor, seja o que verte o inglês do bardo numa nova língua, seja o que encena -e traduz em matéria teatral- o que era antes literatura dramática. Em qualquer uma dessas formas de tradução há resultados mais e menos felizes. Imagine-se um arco em que numa extremidade esteja a adaptação sofrível de uma peça de Shakespeare para história em quadrinhos e em outra uma montagem em inglês assistida no próprio Globe Theatre de Londres, hoje reconstituído. Independentemente da qualidade da tradução, se fosse possível estabelecer uma gradação de fidelidade ao original, cada meio escolhido tem suas próprias leis, e a tradução deve ser julgada não em relação a um ideal estático, mas de acordo com as condições dinâmicas em que se insere. A coleção "Shakespeare" da editora Objetiva pretende atingir um público infanto-juvenil e servir como um convite a que marinheiros de primeira viagem possam navegar na ficção shakespeariana. Essa pretensão foi alcançada, sem dúvida, na prosa desenvolta com que Fernando Nuno traduziu peças como "Sonho de Uma Noite de Verão" e "Macbeth".

Sentidos inequívocos
Os puristas poderão argumentar que, mais do que uma tradução, há uma transfiguração, quando se verte o que eram falas ritmadas, ainda que muitas vezes em versos brancos, em prosa coloquial e se lança mão de um vocabulário corrente para explicitar as elípticas metáforas de Shakespeare. No cômputo geral, contudo, as vantagens que essa facilitação no acesso trazem não são pequenas, e, ademais, qualquer iniciante em Shakespeare poderá sempre evoluir para traduções mais elaboradas, para a leitura no original e, idealmente, até para a condição de espectador das peças encenadas no Globe Theatre. Shakespeare talvez seja o autor mais globalizado do planeta, tendo sido adaptado e devorado pelas mais diversas culturas. No caso da adaptação para o formato romance ou novela, como no caso das traduções de Nuno, o que chama a atenção é o comportamento de sua dramaturgia nesse desdobramento ou nessa torção que a mudança de registro provoca. Potencialidades não-exploradas se revelam, e regiões tomadas como inacessíveis se deixam tocar. Isso acontece particularmente na elucidação das metáforas cujos sentidos, sempre ariscos na rapidez da palavra curta e sintética do verso, a prosa separa e exibe de forma linear, tornando-os inequívocos. Com certeza há um empobrecimento da forma, mas que resulta em clarificação narrativa. À medida que o tradutor segue rigorosamente a estrutura das cenas, todas as entradas e saídas e outras rubricas, o desenho do arco da ação dramática é sublinhado e se destaca.

Falta de espaço
Ao mesmo tempo, muitas vezes as metáforas parecem latejar na forma narrativa, querendo explodir além da prosa. Como se esta não lhes oferecesse espaço para as circunvoluções a que, enquanto poesia, aspiram. Outro problema é que as indicações cênicas estão sobrecarregadas na função narrativa, somando-se, ao comentário normalmente discreto da rubrica, a fala de um narrador explícito, que apresenta os personagens e informa quando começam ou deixam de falar.
São prejuízos inevitáveis das opções adotadas, mas que não chegam a invalidar o projeto de Nuno. Ao contrário, além de garantir acessibilidade, ele apresenta com a sua adaptação ângulos de leitura das respectivas peças que desnudam suas estruturas essenciais e se faz útil não só ao jovem leitor, mas também ao jovem encenador.
Nesse balanço de perdas e ganhos que a constrição da matéria shakespeariana na forma narrativa enseja, há que ressaltar, ainda, a notável flexibilidade que as peças "Macbeth" e "Sonho de Uma Noite de Verão" revelaram ao se moldarem a essas novas circunstâncias. Sendo ambas peças em que a habilidade de Shakespeare como tecelão de tramas intrincadas excede e em que ações humanas estimuladas por forças sobrenaturais resultam ora em tragédia, ora em concórdia e harmonia, essa versatilidade foi particularmente evidenciada.
O tradutor Fernando Nuno já tinha lançado esse ano versões semelhantes de "Hamlet" e "Romeu e Julieta" e promete adaptar mais oito peças de Shakespeare. Terá sido um esforço meritório na divulgação no Brasil do maior poeta dramático da língua inglesa. É preciso, porém, ter claro que essas adaptações não esgotam as possibilidades de aproximação com aquela dramaturgia. Ler Shakespeare numa tradução que resgatasse a riqueza musical e formal de seus versos permitiria uma fruição de qualidade muito superior.
Mal comparando, seria como assistir a um gol de Pelé em imagens reais em vez de, como é o caso nessas adaptações de Nuno, assisti-lhe numa animação, percebendo a jogada só pelo seu desenho esquemático, descarnada das nuanças rítmicas e dos detalhes plásticos.


Luiz Fernando Ramos é professor de teoria e história do teatro do departamento de artes cênicas da USP. É autor de "O Parto de Godot e Outras Encenações Imaginárias" (ed. Hucitec).


Sonho de uma Noite de Verão
108 págs., R$ 22,90 de William Shakespeare. Tradução e adaptação de Fernando Nuno. Ed. Objetiva (r. Cosme Velho, 103, CEP 22241-090, RJ, tel. 0/xx/21/2556-7824).
Macbeth
112 págs., R$ 22,90 de William Shakespeare. Tradução e adaptação de Fernando Nuno. Ed. Objetiva.


Texto Anterior: Religião é tema de outros livros
Próximo Texto: Ponto de fuga: Simulação de vôo
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.