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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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PONTO DE FUGA

Simulação de vôo

Jorge Coli
especial para a Folha

A imagem é de um leitor. Ele escreve sobre a distinção entre filmes "verdadeiros" -os que voam- e os que oferecem apenas uma impressão de voar, como se tem nos simuladores usados para treino de pilotos. Refere-se, mais precisamente, ao paralelo de "Carandiru" e de "Hell" (Califórnia Filmes, DVD), proposto, outro domingo, numa nota desta coluna, e pede mais.
Aqui vai a resposta: "Carandiru" é feito com habilidade, cheio de personagens divertidos, simpáticos. Conclui-se por um tom sério, com efeitos de claro-escuro, ao reconstituir o massacre: Hector Babenco sabe fazer cinema. Mas conta menos com a força narrativa ou a densidade do clima do que com o fascínio, sobre o público, do mundo marginal colorido em tonalidade pitoresca. Empregou trunfos infalíveis, o mais evidente sendo o galã de telenovela no papel de travesti.
Tudo isso não é ruim em si mesmo. São porém fatores externos que substituem uma qualidade de invenção advinda de recursos efetivamente cinematográficos. "Hell" é um filme de ação, sem pretensões sociais ou cultas ou elevadas. Mas cada sequência é concebida com energia que vem dela própria, não de fora. Van Damme, ao que parece, é um astro em crise; precisa de um filme forte, convincente, para se sustentar. Por sorte, caiu nas mãos de Ringo Lam, diretor capaz de demonstrar força criadora pessoal e obsessiva: entre outros, seu "Victim", que, salvo erro, não foi distribuído no Brasil nem em DVD, instaura um universo denso, rude e, ao mesmo tempo, poético. "Hell", lembra, renovando-a, a angústia confinada sob pressão explosiva de "Brutalidade" ("Brute Force"), dirigido por Jules Dassin em 1947.

Radar - No jornal satírico francês "Le Charivari", Louis Leroy, em 1874, escreveu um artigo desopilante contra um movimento artístico que ele chamava de "impressionismo". O grupo, assim batizado, reuniu, como se sabe, alguns dos que estariam entre os mais célebres pintores de todos os tempos. O texto encontra-se transcrito na "História do Impressionismo", de Rewald. É um paradigma dos erros monumentais que um crítico pode cometer.
Porém, Leroy, mesmo errado, estava certo. Seu achincalhe feroz enganou-se nos critérios de julgamento, mas acertou na análise. Ela compreende e enumera características efetivas da pintura impressionista. Considera-as ruins e ridículas; não deixa, porém, de percebê-las com acuidade. Assinala o caráter sintético das pinceladas, a supressão do desenho, o sacrifício da descrição minuciosa, a execução livre, rápida e desenvolta, as vibrações de tom.
Os textos jornalísticos do século 19 sobre arte vinham, quase sempre, acompanhados por uma análise pertinente que fornece chaves. Mais interessante, mais importante do que a opinião, era o comentário, a faculdade reflexiva que abre portas e passagens, para o bem ou para o mal.

Radiologia - Análises e interpretações de obras de arte não são exatas e imóveis, está claro. Variam, mostram-se contraditórias. Tantas vezes, o gosto, individual ou coletivo, muda com o tempo.
Mas essas análises pedem que se observe com pertinência e que se empregue o melhor rigor possível na expressão, no vocabulário. As obras são às vezes traiçoeiras, emitindo sinais que as camuflam. Cedem a modas, a prestígios convencionais, sociais, que podem substituir por completo as formas mais verdadeiras de criação. Há ainda as intenções, as idéias, presidindo a projetos artísticos. São capazes de seduzir julgamentos intelectuais e abstratos, que passam por cima da obra, sem, de fato, a verem. Ora, a ética da crítica só pode ser construída sobre uma ética da percepção.

Voar - Degas, segundo contam, teria dito a Mallarmé: "Não sei como não consigo escrever poemas: tenho tantas idéias boas!". E Mallarmé: "Meu caro, poemas não se escrevem com idéias, escrevem-se com palavras". Idéias e intenções do artista não contam, a não ser que se efetivem e ressurjam na própria espessura da obra. Nada é mais enganoso, nesse campo, do que os sinais exteriores que precedem -e, num certo sentido, quase dispensam- o fruir e o observar.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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