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Expresso do Oriente
O historiador Luiz Felipe de Alencastro, que estréia na seção "Autores", defende que países como Japão e China usarão a crise financeira para se tornarem hegemônicos
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LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
Abu Dhabi e Dubai,
nos Emirados Árabes, país com uma
das mais altas rendas per capita do
mundo, retrataram nos últimos dias os paradoxos da crise.
Depois do voto pelo Congresso do "pacotão" do presidente George W. Bush [autorizando ajuda de até US$ 700 bilhões ao mercado financeiro],
os jornais locais prognosticaram que a reabertura dos negócios, no dia 5 passado, seria
muito positiva.
As Bolsas dos Emirados haviam fechado no feriado da Eid
al Fitr, marcando o fim dos 30
dias de jejum do Ramadã, e
abria-se um megaevento em
Dubai: a apresentação da Cityscape. Considerado o maior empreendimento imobiliário do
mundo, essa nova cidade pontuada de gigantescos prédios
de escritórios, alguns com mais
de um quilômetro de altura, está orçada em US$ 98 bilhões.
Prevê-se que 60 mil visitantes de 150 países assistirão às
exibições do projeto em Dubai,
onde Cityscape será construída
nos próximos 12 anos. Mas no
dia seguinte, como no resto do
mundo, as Bolsas de Abu Dhabi
e Dubai desabavam.
Depois da quebradeira,
Cityscape ficará vazia no deserto, como outras ruínas do passado multimilenar do Oriente
Médio, como um monumento
delirante da especulação financeira das últimas décadas?
É preciso esperar ainda os
efeitos da fantástica viração de
casaca praticada pelos governos ocidentais. De fato, Margareth Thatcher [então premiê
britânica] e Ronald Reagan
[1911-2004, presidente dos
EUA] fixaram nos anos 1980 o
dogma que se impôs à maioria
dos países, e que Reagan resumia assim: "O governo não é
parte da solução, é parte do
problema!".
Em setembro, num discurso
que pareceria herético seis meses atrás, o presidente francês
Nicolas Sarkozy, um dos líderes da direita francesa e européia, declarou: "A idéia de que
os mercados sempre têm razão
é uma idéia maluca!".
Dias depois, enterrando o
único dos dois introdutores
dessa "maluquice" que ainda
está vivo, os deputados conservadores ingleses apoiavam o
plano do governo trabalhista
que nacionalizou parcialmente
os oito maiores bancos britânicos. A justificação dada pelo
premiê Gordon Brown, que rolava ladeira abaixo e ressuscitou politicamente, também fará data: "Não é hora do pensamento convencional ou dos
dogmas ultrapassados".
No momento em que escrevo, o "New York Times" afirma
na edição on-line que o Tesouro americano planeja lançar
uma operação similar à britânica, nacionalizando parcialmente grandes bancos americanos.
O jornal acrescenta que a
proposta está sendo bem acolhida em Wall Street.
Desespero americano
Num discurso recente, Barack Obama [candidato democrata a presidente] disse que os
EUA atravessam um "desespero irracional". Isso explica muita coisa e relativiza os recentes
arrenegos políticos e econômicos do governo Bush.
Mas há um preço a pagar. Para começar, há a constatação da
responsabilidade do governo
americano na crise que empobrecerá milhões de pessoas
mundo afora.
Assim, Peter Mandelson, ministro de Negócios do Reino
Unido, ao declarar que a situação de seu país era "muito má",
acrescentou: "Nenhum dos
problemas que nós temos agora teria aparecido se não fossem os acontecimentos de Wall
Street e do sistema financeiro
americano".
Stephen Harper, primeiro-ministro do Canadá, onde haverá eleições em breve, foi mais
longe e atacou o sistema político americano. Pedindo aos
eleitores uma maioria ampla,
ele disse: "Não precisamos de
um Parlamento que aja como o
Congresso americano, onde há
pânico e anúncio de um plano
diferente todo dia".
A crítica pode fazer alusão a
uma decisão do governo Bush,
que, para impressionar o Congresso e o eleitorado potencial
de John McCain [candidato republicano a presidente], deixou o banco Lehman Brothers
ir à bancarrota, precipitando a
crise mundial.
Para muitos observadores, a
decisão aparece retrospectivamente como uma gigantesca
burrada. Martin Wolf, do "Financial Times", o mais respeitado comentarista econômico
europeu, também aponta nessa
direção.
Registrando o declínio norte-americano, o economista e
colunista do "New York Times" Paul Krugman passa recibo da baixa auto-estima que
atinge o país: "OK, nós somos
uma república bananeira", escreve ele no seu blog.
Se o problema americano
fosse só a questão financeira e a
depressão dos economistas de
esquerda, tudo poderia se resolver daqui a três semanas,
com a eleição de Barack Obama
e a implantação de uma política social-democrata. Algo que
não assustará mais ninguém,
visto que se fala de um retorno
a Keynes e às grandes obras públicas no estilo do New Deal
rooseveltiano.
Mas o problema é outro. Na
realidade, o recuo da liderança
dos EUA se soma a outro estrago causado pelo governo Bush:
o enfraquecimento da ONU e
das instituições internacionais.
No vazio assim criado, a Coréia do Norte retomou seu programa nuclear, a Rússia foi para cima da Geórgia e o Irã vai
tocando seu programa nuclear.
Israel preveniu que não irá tolerar que o Irã fabrique bombas
atômicas. As condições estão
reunidas para um conflito de
conseqüências imprevisíveis.
Mudança de eixo
Num plano mais geral, um
declínio continuado da liderança americana mudará o eixo
geopolítico mundial.
A China possui uma "arma
atômica financeira", como escreveu o "Le Monde": os "Treasuries", títulos do Tesouro
americano que alcançavam
US$ 518 bilhões no passado
mês de julho. De seu lado, o Japão detém US$ 594 bilhões.
Mas o montante dos "Treasuries" na mão de organismos
estatais é maior na China do
que no Japão. Circunstância
que dá ao governo chinês o estatuto de maior credor dos
EUA. Por enquanto, os chineses têm atuado em dobradinha
com os americanos: a China
compra os "Treasuries" e financia o déficit americano com
os excedentes obtidos no seu
comércio com os EUA.
Nem os chineses nem os japoneses têm interesse numa
queda acentuada do dólar que
desvalorizaria suas reservas de
divisas. Mas a fragilização das
economias ocidentais oferece à
China "uma oportunidade rara,
que só acontece uma vez em
cada século, de comprar a baixo
preço ativos estratégicos", como declarou um grande investidor chinês.
A exemplo dos países do Golfo Pérsico, os investidores chineses têm pouca experiência
na aplicação em ativos estrangeiros e queimaram os dedos
nas Bolsas ocidentais nas últimas semanas. Mas com o Japão a coisa é diferente, como
observou a "Economist". Mais
experientes, os japoneses também são investidores de longo
prazo e vêm realizando uma série de aquisições estratégicas
na Europa e nos EUA.
Se a tendência se confirmar,
se os chineses também voltarem às compras nas Bolsas do
Ocidente, Cityscape será todinha erguida nas areias de Dubai. E aparecerá como o novo
pólo de ligação entre o Ocidente e o Oriente. Como o marco
do verdadeiro início do século
21, o século da Ásia, sob a hegemonia do capitalismo chinês.
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