São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2008

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Conceito e ruptura


Professor de filosofia rebate crítica feita a seu livro no Mais! da semana passada

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

No Mais! de 5/10, o professor de teoria literária Evando Nascimento escreveu que meu último livro ["Cinismo e Falência da Crítica", ed. Boitempo] não passava, no fundo, de um amargo arremedo negativista marcado pelo ecletismo e pela imprecisão conceitual. Tais opiniões pessoais não me incomodariam se não estivessem baseadas em equívocos grosseiros de leitura a respeito do que escrevi. Vi-me acusado de dizer o que não disse e de não dizer o que disse. Primeiro, algumas considerações sobre a acusação de "ecletismo". Em um artifício retórico não muito recomendável, o resenhista apresenta uma espécie de índice onomástico do meu livro e diz que os autores ali citados "são convocados num grande amálgama". Quem diz amálgama, diz continuidade, fusão. Ou seja, a acusação é de que eu teria dito existir alguma espécie bizarra de unidade fusional entre Hegel, Austin, Lyotard, Bakhtin, Lacan, Habermas, Deleuze e Calvin Klein. Francamente, nunca defendi absurdo parecido, a não ser que o resenhista confunda sistematicamente continuidade com confrontação e debate.

A noção de ideologia
Na verdade, a partir de uma matriz que articula psicanálise lacaniana e tradição dialética (Hegel, Adorno), procurei estabelecer linhas de ruptura entre uma teoria da racionalidade cínica, que poderíamos derivar de tal matriz, e algumas tendências hegemônicas de reflexão sobre processos de racionalização nas sociedades contemporâneas. Assim, se ele se pergunta sobre "o que Foucault e Deleuze estão fazendo num texto que retrocede a uma filosofia da consciência hegeliana (sic), aliada a uma teoria psicanalítica lacaniana", a resposta é simples: eles estão, em larga medida, sendo criticados em pontos regionais e precisos. O primeiro, devido a aspectos de sua crítica à dita "hipótese repressiva". O segundo, devido a certas conseqüências de sua articulação entre capitalismo e esquizofrenia, assim como de sua teoria da sexualidade derivada do masoquismo. Se afirmei, por exemplo, que certos pontos da teoria hegeliana da modernidade reaparecem, com sinais invertidos, como teoria do capitalismo avançado no pós-estruturalismo de Deleuze/Guattari e Lyotard, trata-se simplesmente de uma estratégia de crítica a tal inversão. Diga-se de passagem, é no mínimo peculiar que o resenhista chame "pós-estruturalismo" de "rótulo impreciso", enquanto ele mesmo se auto-define como especialista em... "pós-estruturalismo francês". No mesmo ímpeto, me pede uma definição clara de ideologia quando há todo um capítulo dedicado exatamente à exposição da especificidade do conceito adorniano de ideologia e à necessidade de recuperá-lo.

Wikipédia?
Procuro mostrar como uma noção contemporânea de ideologia que não faz mais apelo a conceitos como "falsa consciência" e "reificação" pode fundamentar-se a partir da análise de disposições de conduta marcadas por aquilo que Adorno chama de "sintomas de consciência duplicada". Pode-se não concordar com tal estratégia, mas dizer que ela esconde uma imprecisão conceitual só faz sentido se o leitor estiver acostumado apenas com definições de Wikipédia. Por fim, há uma fração da intelectualidade nacional que acredita fazer análise quando repete adjetivos como "niilismo", "negativismo", "lógica do pior", "fracassomania" contra aqueles que desconfiam da força reguladora de chamados edificantes à "convivência mútua pautada por valores solidários". Não creio que isso deva ser levado a sério pois, parafraseando [o filósofo] Bento Prado Jr., "sempre se é o niilista de alguém". Ou seja, niilista é sempre o outro, aquele que preciso desqualificar para elevar o fundamento de minha perspectiva de avaliação à condição de princípio inquestionável. Como se trata de desqualificação, já se saiu há muito da dimensão da análise para se entrar na lama da injúria.

VLADIMIR SAFATLE leciona filosofia na USP.



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