São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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Estado menor

Linha divisória entre o público e o privado esconde conflito de interesses políticos e econômicos

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Durante o segundo turno da campanha eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a questão das privatizações foi bruscamente recolocada em pauta. Ministros se manifestaram denunciando o crime de ter privatizado o patrimônio público e, pior ainda, a troco de nada. Essa é uma questão crucial para que se pensem novos rumos para o Estado brasileiro, e vale a pena continuar o debate. E, para que ele não se perca em meandros estéreis, começo desde logo perguntando até que ponto é necessário privatizar empresas estatais, deixando para depois o exame do que se deve fazer com as quantias arrematadas.
Convém não se esquecer de que a relação público/privado é histórica, sendo que a coisa pública ("res publica") não se define exclusivamente no nível do direito, isto é, de certos ordenamentos que configuram a identidade política de uma nação. O que era público em Roma dizia respeito ao povo em armas, de sorte que o "ager publicus" a ele pertencia.
Sabemos que Roma constrói seu império na base da conquista de territórios, divididos então em três partes: uma era distribuída aos centuriões vencedores, outra permanecia nas mãos da aristocracia local e, finalmente, a terceira era transformada em campo do povo.

Roma Antiga
Mas o controle jurídico, político e econômico desse território era feito pela instituição política suprema, denominada "Senado e povo romanos". Mas a despeito de ela comportar representantes da plebe, sempre foi controlada pelos senadores e, depois, pelos próprios imperadores. O "ager publicos" era objeto da luta de classes, e quase sempre eram os senadores que saíam ganhando.
Apenas para fins de contraste, lembremos que essa oposição muda de sentido a partir do século 18, quando se organiza uma sociedade de mercado, a sociedade civil-capitalista, que, de um lado, procura funcionar sem a intervenção do Estado, mas, de outro, dele necessita para poder se instalar e liquidar a dispersão da propriedade feudal, assegurar a paz nas zonas de fronteira e assim por diante.
Quando somente se atenta para o seu funcionamento estrutural, como ela se repõe por seus próprios meios, essa intervenção parece consistir numa ingerência a ser evitada. Daí a proposta do Estado mínimo, sendo que a tessitura dos vícios privados haveria de gerar virtudes públicas.
No entanto a instalação do modo de produção capitalista nesta ou naquela região -na França, na Inglaterra ou nos EUA e assim por diante- necessita de políticas públicas capazes de, no mínimo, assegurar a melhor concorrência entre os adversários. Daí a necessidade de uma intervenção constante e adequada do Estado distribuindo "justiça" e vantagens.

Apropriação fugaz
Desaparece assim aquela simples oposição entre atividades econômicas privadas, exercidas no domínio ou na grande propriedade, e a vida pública, desenvolvida aos olhos de todos. Essa polaridade se firma ou se desfaz segundo a própria luta política.
Parece-me evidente que, nas atuais formas de capitalismo, infiltradas pelo curso das informações e pelo monopólio das invenções tecnológicas, essa oposição entre público e privado muitas vezes se resolve em modos fugazes de apropriação, de posse, de algo que se mostra antes de tudo como coletivo, mas que, sendo escasso, precisa ser reservado como meu ou teu.
Desenha formas de poder que se ancoram na posse de recursos de várias ordens. A influência política, por exemplo, assegura a particularização da rua, da praça e de um serviço público. A compra de um bom computador ou de uma linha na internet permite a cada instante que nem a empresa nem a posse individual estejam isentas de agressões de terceiros: os programas são copiados, os discos, pirateados (ou transformados em "genéricos", como uma vez me disse um gaiato), o fluxo da informação, interrompido pelo vírus e até mesmo o curso do poder, bloqueado pelo terror.

Petrobras
Não há, pois, como evitar o exame caso a caso de por onde passa a linha separando o público e o privado e que tipo de linha está sendo traçada, por quais e sob quais interesses. Daí a pergunta sobre um caso candente: em que medida uma empresa estatal como a Petrobras é pública? Em que medida ela é do povo? Convém lembrar desde logo que funciona como uma empresa capitalista qualquer, de capital aberto, pois vende ações na Bolsa e distribui dividendos, seus lucros dependendo, de um lado, do preço internacional do petróleo, de outro, de uma tecnologia que combina elementos nacionais e internacionais.
A sobrevivência de uma empresa como a Petrobras está intimamente ligada à tecnociência moderna, essa mistura de ciência pura, ciência aplicada e capacidade de desenvolvimento tecnológico -por conseguinte, de um processo coletivo que aqui e ali se particulariza, mas ganha noutras partes dimensões coletivas.
Nesse fluxo a Petrobras se torna pública ou privada conforme suas partes e instâncias passam a ser controladas por um poder que venha do povo, cuja universalidade não seja destruída pelos particularismos dos grupos de qualquer tipo. Pouco importa, então, qual venha a ser seu estatuto jurídico, estatal ou não, desde que esteja sistematicamente controlada por instituições representativas da opinião pública.
Por certo essas instituições são atravessadas por dissidências, mas nunca devem estar sob o tacão de um grupo ideológico que imprime a elas a marca de seus preconceitos e, às vezes, de suas esperanças antigas.


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve na seção "Autores".


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