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Estado menor
Linha divisória entre o público e o privado esconde conflito de interesses políticos e econômicos
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Durante o segundo
turno da campanha
eleitoral do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, a
questão das privatizações foi
bruscamente recolocada em
pauta. Ministros se manifestaram denunciando o crime de
ter privatizado o patrimônio
público e, pior ainda, a troco de
nada. Essa é uma questão crucial para que se pensem novos
rumos para o Estado brasileiro,
e vale a pena continuar o debate. E, para que ele não se perca
em meandros estéreis, começo
desde logo perguntando até
que ponto é necessário privatizar empresas estatais, deixando para depois o exame do que
se deve fazer com as quantias
arrematadas.
Convém não se esquecer de
que a relação público/privado é
histórica, sendo que a coisa pública ("res publica") não se define exclusivamente no nível
do direito, isto é, de certos ordenamentos que configuram a
identidade política de uma nação. O que era público em Roma dizia respeito ao povo em
armas, de sorte que o "ager publicus" a ele pertencia.
Sabemos que Roma constrói
seu império na base da conquista de territórios, divididos
então em três partes: uma era
distribuída aos centuriões vencedores, outra permanecia nas
mãos da aristocracia local e, finalmente, a terceira era transformada em campo do povo.
Roma Antiga
Mas o controle jurídico, político e econômico desse território era feito pela instituição política suprema, denominada
"Senado e povo romanos". Mas
a despeito de ela comportar representantes da plebe, sempre
foi controlada pelos senadores
e, depois, pelos próprios imperadores. O "ager publicos" era
objeto da luta de classes, e quase sempre eram os senadores
que saíam ganhando.
Apenas para fins de contraste, lembremos que essa oposição muda de sentido a partir do
século 18, quando se organiza
uma sociedade de mercado, a
sociedade civil-capitalista, que,
de um lado, procura funcionar
sem a intervenção do Estado,
mas, de outro, dele necessita
para poder se instalar e liquidar
a dispersão da propriedade feudal, assegurar a paz nas zonas
de fronteira e assim por diante.
Quando somente se atenta
para o seu funcionamento estrutural, como ela se repõe por
seus próprios meios, essa intervenção parece consistir numa
ingerência a ser evitada.
Daí a proposta do Estado mínimo, sendo que a tessitura dos
vícios privados haveria de gerar
virtudes públicas.
No entanto a instalação do
modo de produção capitalista
nesta ou naquela região -na
França, na Inglaterra ou nos
EUA e assim por diante- necessita de políticas públicas capazes de, no mínimo, assegurar
a melhor concorrência entre os
adversários. Daí a necessidade
de uma intervenção constante
e adequada do Estado distribuindo "justiça" e vantagens.
Apropriação fugaz
Desaparece assim aquela
simples oposição entre atividades econômicas privadas, exercidas no domínio ou na grande
propriedade, e a vida pública,
desenvolvida aos olhos de todos. Essa polaridade se firma
ou se desfaz segundo a própria
luta política.
Parece-me evidente que, nas
atuais formas de capitalismo,
infiltradas pelo curso das informações e pelo monopólio das
invenções tecnológicas, essa
oposição entre público e privado muitas vezes se resolve em
modos fugazes de apropriação,
de posse, de algo que se mostra
antes de tudo como coletivo,
mas que, sendo escasso, precisa
ser reservado como meu ou teu.
Desenha formas de poder que
se ancoram na posse de recursos de várias ordens.
A influência política, por
exemplo, assegura a particularização da rua, da praça e de um
serviço público. A compra de
um bom computador ou de
uma linha na internet permite
a cada instante que nem a empresa nem a posse individual
estejam isentas de agressões de
terceiros: os programas são copiados, os discos, pirateados
(ou transformados em "genéricos", como uma vez me disse
um gaiato), o fluxo da informação, interrompido pelo vírus e
até mesmo o curso do poder,
bloqueado pelo terror.
Petrobras
Não há, pois, como evitar o
exame caso a caso de por onde
passa a linha separando o público e o privado e que tipo de linha está sendo traçada, por
quais e sob quais interesses.
Daí a pergunta sobre um caso
candente: em que medida uma
empresa estatal como a Petrobras é pública? Em que medida
ela é do povo? Convém lembrar
desde logo que funciona como
uma empresa capitalista qualquer, de capital aberto, pois
vende ações na Bolsa e distribui
dividendos, seus lucros dependendo, de um lado, do preço internacional do petróleo, de outro, de uma tecnologia que
combina elementos nacionais e
internacionais.
A sobrevivência de uma empresa como a Petrobras está intimamente ligada à tecnociência moderna, essa mistura de
ciência pura, ciência aplicada e
capacidade de desenvolvimento tecnológico -por conseguinte, de um processo coletivo
que aqui e ali se particulariza,
mas ganha noutras partes dimensões coletivas.
Nesse fluxo a Petrobras se
torna pública ou privada conforme suas partes e instâncias
passam a ser controladas por
um poder que venha do povo,
cuja universalidade não seja
destruída pelos particularismos dos grupos de qualquer tipo. Pouco importa, então, qual
venha a ser seu estatuto jurídico, estatal ou não, desde que esteja sistematicamente controlada por instituições representativas da opinião pública.
Por
certo essas instituições são
atravessadas por dissidências,
mas nunca devem estar sob o
tacão de um grupo ideológico
que imprime a elas a marca de
seus preconceitos e, às vezes,
de suas esperanças antigas.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento). Escreve na seção "Autores".
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