São Paulo, Domingo, 12 de Dezembro de 1999


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Graças às elites, vulgaridade pode virar conceito sociológico
Do homem cordial ao homem vulgar

Thomaz Farkas
Foto de Thomaz farkas, da década de 40, mostra torcedores no Estádio do Pacaembu


CONTARDO CALLIGARIS

A vulgaridade é uma propriedade do mundo moderno. Mas há uma vulgaridade que hoje é reserva especial das elites nacionais. Os brasileiros já se definiram como homens (e mulheres) cordiais. O país inteiro, aliás, era cordial: um sistema social de favores, de protegidos e de amigos do peito. Modernizou-se e segue nessa direção -o que significa, em princípio, que evolui para um sistema no qual os direitos de cada um não dependem de ele estar ou não no coração dos amigos. Não sei se esse é ou não um progresso. De qualquer forma, algo (talvez muito) vai ser perdido na troca. Mas esse não é o tema, agora. Essa modernização aos trancos e barrancos deixa nossas elites (como se costuma dizer) divididas entre resquícios da antiga cordialidade e erupções de modernidade. Com isso, elas ficaram feias como nunca: vulgares, em um sentido bem além de um vago juízo estético. Graças a elas, talvez a vulgaridade passe a ser um conceito sociológico. Mas, para começar, é necessário se perguntar o que pode ser a sensação de vulgaridade.

À espera dos aviões Quando eu era criança, em Milão, estação de trem era lugar pouco recomendável e vagamente perigoso: a melhor aproximação dos bas-fonds da cidade. Por necessidade, os exponentes das classe privilegiadas se aventuravam até os vagões em que viajariam. Às vezes, menos ricos ou mais avaros do que gostariam, viajavam até de segunda classe, mas não sem lamentar os tempos em que havia três classes e uma pessoa podia até viajar de segunda -pois a ralé ficava na terceira. Mas enfim, como diria minha avó, houve "essa mania" de abolir diferenças, e a terceira classe se foi. Os aeroportos, ao contrário, nos anos 50, eram reservados a poucos eleitos. Em domingos de verão, era um programa popular olhar os aviões. Os clientes naturais da ferrovia (não dos aeroportos) chegavam de bonde, a pé ou a bordo de carros velhos e repletos de gente, montavam piqueniques na grama suja e passavam o dia de camiseta, à espera de que os aviões passassem urrando por cima deles, como rolos compressores sancionando sua inferioridade social. Parecia haver, nessa contemplação, um misto de veneração tecnológica, de admiração pelo privilégio de voar e talvez de esperança de que os filhos, ao contemplarem aqueles engenhos tão próximos e intocáveis, pudessem um dia chegar lá. Eu via essa estranha reunião perto das pistas do aeroporto Forlanini, quando, em alguma excursão, saíamos da cidade pelo oeste. Com o nariz espichado no vidro do carro, perguntei um dia por que não parávamos ali para passar nosso domingo, apenas contemplando os aviões. Uma voz me respondeu que eu já subira em um avião e em muitos ainda subiria (previsão que se revelou infaustamente verdadeira). Esqueci as palavras que vieram depois, mas aprendi que ficar ao lado da pista e olhar aviões em um domingo de verão era uma atitude vulgar. Foi minha primeira experiência da vulgaridade. Mas por que era vulgar, afinal? Para nossos antepassados próximos, até o século 17, "vulgar" significava comum, banal, próprio à massa do povo -sem a conotação de torpe ou abjeto. Para eles, dizer que o povo era vulgar significava apenas um pleonasmo, algo como afirmar que o povo é popular. Acontece que até então o povo era povo e se presumia que continuasse povo. Ele não precisava ser contido em seus quintais pelos estigmas da cafonice. Não havia, portanto, grande necessidade de recorrer a considerações estéticas para separar o povo das elites. Pertencer ao povo talvez não fosse o melhor destino, mas era um fato, não um insulto.

Frear e humilhar A coisa muda drasticamente no fim do século 18: de repente "vulgar" se torna uma injúria social. Ser vulgar não é só pertencer ao povo: significa ser grosso e inferior. "Ordinário" segue o mesmo destino semântico. Começa assim a experiência moderna da vulgaridade.
Mas como isso se instaura? Desde sua aurora, a modernidade decreta que somos todos iguais em princípio e direito. Não há mais obstáculos essenciais à mobilidade social. Qualquer barata -comenta-se nos salões- pode subir pelos canos do esgoto e abrir espaço na sociedade. Torna-se útil, portanto, frear e humilhar um pouquinho as pretensões da barata e, eventualmente, se ela chegar até os aposentos, achar nela um cheiro de esgoto, resquício de suas origens.
Foi o que me apresentaram no aeroporto Forlanini: o povo enquanto tal é apenas banal. Agora, quando ele manifesta suas aspirações e sonha um dia viajar em um avião, já se torna vulgar. Se por acaso conseguir se infiltrar, obviamente ele não vai caber em nossa sociedade.
A vulgaridade, no começo, é uma experiência conservadora, uma resistência à mobilidade social moderna. É o desprezo para o recém-chegado ou mesmo para quem confessa seus sonhos de crescer.
De qualquer forma, no fim do século 18, mesmo deixando de lado o problema das baratas (que não representavam ainda uma grande ameaça, pois a subida do esgoto é longa e escorregadia), as elites já não sabiam mais como se diferenciar.
Até então era simples: por nascença, você era duque, ele era conde e eu era burguês. As pessoas se dividiam segundo critérios objetivos: pertenciam a classes diferentes. Havia até regras (ditas suntuárias) pelas quais você podia usar colarinho de vison, ele só de cordeiro e eu, burguês, simplesmente de lã.
De repente, isso acaba e torna-se necessário encontrar critérios subjetivos para estabelecer o grupo. Com quem quero estar? Quem quer estar comigo? Passamos a nos escolher mutuamente. Portanto (é o sentido do trabalho de Norbert Elias sobre as boas maneiras) é importante ser admirado.
A apreciação dos outros decide quem somos socialmente. Destacar-se para ser notado, amado, invejado se torna, por exemplo, mola básica do mecanismo de um poder cujo fundamento é agora subjetivo. Como não pertencemos mais a classes definidas por propriedades objetivas (sangue azul e outros atributos), é necessário então ter classe, ser "classudo" (mais uma palavra que desliza).
Poderíamos ter substituído a hierarquia objetiva da nobre nascença pela hierarquia dos bens móveis e imóveis. A diferença social seria facilmente entendida e praticável. Os mais ricos primeiro, depois os outros, em ordem facilmente calculável. Mas tudo se complicou: resistimos a simplesmente passar da qualidade do sangue ao capital líquido na conta. Inventamos assim uma outra qualidade: a das maneiras, do estilo, da elegância. De novo, naquele famigerado fim do século 18, com o dandismo, nossa cultura inventou um critério de distinção social que continua nos divertindo e atrapalhando até hoje.
À diferença da nobreza, a elegância é acessível a todos, não é privilégio de berço. Revolucionária, ela vai permitir que um burguês dite a moda e que um judeu, como Disraeli, por sua elegância, chegue a ser ministro da rainha Vitória.
Além disso, a elegância não coincide com a riqueza, ela é esquiva: não se deixa comprar. Ao contrário, instaura-se desde esta época uma espécie de ameaça permanente de divórcio entre estilo e elegância de um lado e riqueza do outro. Não só é possível ser pobre com estilo, mas também é fácil ser rico sem qualquer elegância.
A elegância e o estilo se tornam então um operador de inclusão social da mesma forma que a riqueza. Inversamente, os juízos de vulgaridade são em geral procedimentos de exclusão: em primeiro lugar, medidas de proteção contra a mobilidade social. Os miseráveis, os pobres e os proletários só são vulgares quando pressionam. Aquém e além de qualquer justificação estética, o pagode, o Ratinho, o Leão etc. são vulgares pelo espaço que ocupam. Se atuassem na selva, seriam apenas pitorescos. O juízo de vulgaridade é o recurso da nostalgia aristocrática. Por isso, o novo rico é condenado ao sarcasmo quando deveria ser o protótipo do homem moderno, o herói da mobilidade social. A vulgaridade assim entendida tem suas épocas e seus lugares preferidos. Ela floresce nos momentos de aceleração da mobilidade social, por exemplo nos ditos milagres econômicos, nas reconstruções etc., ou seja, cada vez que um grupo de pessoas enriquece rapidamente. A vulgaridade é apontada, por exemplo, na prepotência de uma riqueza que quer se impor sem concessões à elegância (as elites da Alemanha entre as duas guerras, nos quadros de Grosz). Ou, então, na corrupção da própria elegância, vendida como uma receita de bolo. Nesse caso (por exemplo, na Itália do milagre ou no Brasil de hoje), assiste-se a uma acelerada codificação da elegância. As listas detalhadas dos objetos, das marcas e dos apetrechos necessários facilitam a tarefa de compor um estilo. No que concerne aos lugares, os europeus (mestres em cegueiras sobre si mesmos e nostálgicos de antigos regimes) diriam facilmente que a vulgaridade tem um lugar de residência onde ela é endêmica: as Américas. De fato, os americanos (Norte e Sul), na condição de filhos da modernidade, parecem ter aceito sem muitas nostalgias e remorsos as formas modernas de divisão social: riqueza e elegância. Como observou Thornstein Veblen, a riqueza, para desenvolver sua função de divisor social, deve ser ostentada. A elegância não escapa a essa necessidade: ela também deve ser conspícua.

O dinâmico "emergente" No Norte, as hierarquias impostas pela riqueza podem até dispensar a mascarada da elegância. Por exemplo, Donald Trump é um caso perfeito de riqueza conspícua sem a sombra de uma preocupação com a qualidade de seu estilo. Trump não se importa com isso, o que não impede que ele seja um plausível candidato presidencial nos Estados Unidos. Ou -fato para ele mais importante ainda- que as pessoas queiram residir nos edifícios que ele constrói e batiza. Seu nome próprio se tornou uma referência de sucesso social, um marcador de classe, apesar da deselegância de sua figura: Trump Tower, Trump Building, Trump Plaza etc.
No Brasil a riqueza sem elegância é menos praticável ou encontra menos sucesso. Talvez só no centro do império seja possível subir e se sustentar em cima da pirâmide social puramente por dinheiro. Nas margens, próximas ou longínquas, é necessário reivindicar também uma filiação estética com a América do Norte ou a Europa, que funciona como marca de elegância. Os edifícios de nossos mais ricos endereços não possuem o nome do construtor local, mas Park Avenue ou Champs Elysées.
Por essa dependência, a elegância ostentada é aqui uma necessidade, é menos aceitável ser só conspicuamente rico.
Seja como for, as Américas são o continente dos novos-ricos e dos novos-elegantes. Não foi justamente para enriquecer que muitos vieram para cá? A aspiração de subir na vida aqui não é vulgar. O Brasil, com toda razão, inovou nesse campo, substituindo o pejorativo "novo-rico", cheio de desdenho aristocrático decadente, pelo dinâmico "emergente".
Conciliando essas pequenas diferenças entre Norte e Sul, as Américas, mercado livre da vulgaridade, segundo os europeus, poderiam ser assim representadas por uma figura que inexplicavelmente falta em minha edição do "Liber Monstrorum" de Ambroise Paré: o casamento de Donald Trump com Vera Loyola.
Como a "Vênus" de Botticelli, o casal Loyola-Trump sairia das águas no horizonte ocidental do Atlântico: triunfo do conspícuo como destino da modernidade, símbolo de uma época na qual "Fortune", "Caras" e "People" enfim substituem os poeirentos repertórios da nobreza. Essa imagem não é símbolo só das Américas, mas do mundo, Europa incluída. Nesse mundo que nos espreita, o juízo de vulgaridade aos poucos desaparecerá, na progressiva aceitação do sucesso da riqueza e da elegância ostentadas em assegurar um lugar social. Talvez reste apenas a necessária dissonância dos estilos marginais dos artistas, tipo Basquiat de gravata e pés descalços numa página de "Vogue". Olho para esse mundo sem muita simpatia. Mas tendo a pensar que essa ostentação invasiva de riquezas e elegâncias é a regra da modernidade -até que inventemos outras divisões sociais, torcendo para que não sejam piores. Essa é, em suma, a vulgaridade banal.

Cordialidade e vulgaridade Ora, nesse mar de vulgaridade, o Brasil está em destaque. Viajo muito, demais. De novo, é nos aeroportos que me aparece hoje uma vulgaridade brasileira diferente. Não é a vulgaridade dos sacoleiros de Miami falando alto. Ainda menos a do povo que serve, cuida e atende. É algo que brilha e se destaca nas salas VIP. É uma vulgaridade especial, de elite. Para entender por que ela seria bem nacional, voltemos a nossos recém-casados. Donald Trump provavelmente não será candidato à Presidência dos EUA por ser proverbialmente fóbico. Como ele mesmo relatou várias vezes, não gosta de apertar mãos que nunca se sabe onde estiveram pouco antes. Impossível levar adiante uma campanha eleitoral nessas condições: a política ainda mantém a ficção arcaica de uma relação humana, fraterna, entre votantes e eleito. De fato, as relações sociais americanas são abstratas, jurídicas e mediadas pelo dinheiro como equivalente geral. Trump, com sua fobia, é perfeitamente adequado ao mundo de hoje. A política eleitoral é que se encontra atrasada. Comparada a Trump, Vera Loyola deve ser uma pessoa cordial, pois os brasileiros são cordiais. Por isso, talvez o casamento não desse certo. Trump é ostentatório e fóbico. Ou seja, ele se afirma, ostentando, neste mundo moderno, povoado por pessoas abstratas (que, portanto, não precisa tocar) e no qual a mobilidade social é o princípio. Ele é banalmente vulgar. A elite brasileira também é ostentatória, mas em um mundo que não é bem moderno, em que os direitos abstratos não são garantidos e no qual a mobilidade social não é a regra. Ou seja, em um mundo cordial. Já se pensou, como lembrava Sérgio Buarque de Holanda, que a cordialidade fosse a contribuição brasileira à civilização. Mesmo sem chegar a tanto, a cordialidade é um charme nacional bem conhecido. Cuidado: ainda valem todas as precauções que Sérgio Buarque tomava ao introduzir o feliz adjetivo: cordial aqui não significa gentil, bem-humorado ou disposto -e ainda menos polido. Significa uma maneira de se relacionar que se opõe e eventualmente desmente as relações abstratas próprias ao mundo moderno. Ou seja, que contrasta com um mundo que, desde o fim do século 18, quer que, acima dos corpos e dos afetos "do coração", estejam o sujeito de direito e a equivalência de trabalho e dinheiro. No Brasil, somos cordiais, lemos e praticamos os vínculos jurídicos como laços afetivos. Seguimos confundindo subordinação com submissão e, contra qualquer sistema abstrato de trocas e obrigações, preferimos a concretude complexa dos favores. Ora, essa cordialidade -consolação da vida cotidiana brasileira- é solidária a uma vulgaridade das elites que bate no olho. À primeira vista, a vulgaridade brasileira de hoje parece simplesmente participar da vulgaridade global do mundo moderno. Mas, neste país, a ostentação de riqueza e elegância tem um caráter de vulgaridade especial. A peculiaridade aqui é o excesso de distância social -o qual, por sua vez, é efeito de uma falsa modernização que não endossa a mobilidade social. É misterioso para mim que a ostentação do consumo, banal nos EUA ou na Europa, não se torne no Brasil fonte de vergonha. As elites competem aos olhos de uma massa que está a uma distância estratosférica da riqueza que elas ostentam. Ora, no mundo moderno, a divisão social pela ostentação de riqueza e elegância serve para produzir uma mobilização produtiva da sociedade a partir de uma inveja generalizada. Esse plano pressupõe uma rápida expansão das classes médias, para que todos (ou quase) possam invejar com alguma chance.

Ostentando, te esmago Acontece que aqui as diferenças sociais ficam além do limite da esperança. Ou seja, para a maioria da população não há condição nem de sonhar com o acesso aos bens que são corriqueiros para as elites. Poder sonhar, aliás, é já fazer parte das elites, como manifesta o fato surpreendente de que, no Brasil, ter um cartão de crédito dê acesso à sala VIP. Nessas condições, configura-se aqui algo bem diferente do que uma simples variante quantitativa do caso americano ou europeu. Pois uma distância econômica à prova de sonho é de fato uma diferença qualitativa que prolonga um tipo arcaico de divisão social fundada em critérios objetivos, de nobreza ou de casta.
O Brasil não é uma sociedade de alta mobilidade social motivada pela inveja, na qual, portanto, a diferença social poderia ser organizada pela ostentação.
Desse quadro moderno, as elites só gostaram e adotaram a ostentação, que, por consequência, deixa de ser uma forma de divisão social e de incentivo econômico e se torna uma forma direta de domínio. A ostentação no Brasil é a imposição de um privilégio. Nós não nos diferenciamos comparando o que ostentamos. Aqui vale: "Ostentando, te esmago". Também a ostentação brasileira não é uma competição entre elites modernas que aconteceria por acidente sob os olhos de um povo miserável e arcaico, excluído do torneio. Se assim fosse, haveria embaraço e modéstia, pois a ostentação moderna se inibe fora do contexto de uma mobilidade social generalizada. Se a festa continua, é porque as elites gozam dela: a ostentação se dirige primordialmente ao povo, que não tem nenhuma condição de competir. Assim, elegância e riqueza conspícuas são, nestes trópicos, verdadeiras idéias fora do lugar, segundo a expressão consagrada de Roberto Schwarz. Graças a elas, aparentando se integrar na modernidade, as elites nacionais de fato transformam um princípio moderno de divisão social em um instrumento arcaico de domínio. Elas inventam assim uma forma original de vulgaridade, bem acima da vulgaridade banal: a ostentação sem modernidade. Tudo isso foi exemplificado recentemente na festa que Vera Loyola organizou para o aniversário de sua cadela Pepezinha. Adoro cachorros e, embora não me lembre de ter alguma vez celebrado o aniversário de meus fidos, posso até me imaginar oferecendo no dia certo um filé malpassado para meu amigo canino. Mas, nesse caso, a celebração foi tornada pública pelo convite feito à imprensa escrita e televisiva. A ostentação não era feita para estimular inveja e impressionar os vizinhos na pirâmide social. A mensagem era endereçada ao povo. O propósito só podia ser consternar.

A voz do dono Alguém, na massa de espectadores, ouviu e reagiu -poder-se-ia dizer- adequadamente: uma semana depois, Paulo César dos Santos assaltou um banco, tomou reféns e, no decorrer das negociações, explicou o motivo de seu gesto. Parecia intolerável, disse, que alguém fizesse festa de aniversário e desse presente para cachorro quando ele não tinha nem sequer como alimentar satisfatoriamente o seu filho. Em suma, sentia-se tratado pior do que cachorro, com toda a razão. Só que, assim dizendo, pedia para ele mesmo e para os seus o tratamento que a emergente reserva a sua cadela. Tratamento ótimo, com efeito, mas incluindo entre os presentes de aniversário não sei bem se uma coleirinha ou só um pingente de ouro para a mesma. De qualquer forma, não se escapa da coleirinha. Entenda quem quiser a declaração de cordialidade: aqueles que fazem parte da família -cachorros ou servos- comem biscoitos. E, para integrar a família, nada de relações abstratas de trabalho ou coisas que o valham: só precisa ficar de coleira, mas esta será levinha e dourada. Quem está lá fora, no frio, não pertence ao campo que a cordialidade delimita. Ora, a Paulo César só sobra reclamar para voltar a integrar o espaço no qual a cordialidade do dono se exerce -querer o lugar de Pepezinha. Pois, fora desse espaço, a modernidade no Brasil não oferece nenhum de seus outros mais confortáveis presentes, só a ostentação (fora do lugar). Paulo César também é cordial. De novo: não é gentil, nada disso, mas cordial. Ele não se contenta em roubar o necessário para sustentar a si e a sua família, não se contenta com uma transação abstrata, ele acaba -embora, ao que parece, sem premeditação- tomando reféns. Em suma, ele lida com o corpo de suas vítimas. Entre a emergente e o excluído, a ostentação produziu o contrário de uma relação abstrata: um "cordial" corpo-a-corpo, com um cachorro interposto. Vera, ostentando, coloca coleirinha, e Paulo César toma reféns. Explica-se assim um dos traços enigmáticos da criminalidade brasileira: seu excesso de violência, que parece desnecessário ao simples furto -inútil, se o propósito fosse só a transferência de fundos. De fato, o crime brasileiro é cordial: ele não guarda as distâncias, prefere passar pelo corpo. Nada do anonimato de furtar carro estacionado: o negócio é olho no olho. Corpo a corpo. Cordialmente, um e outro seguem se respondendo -um com "ostentando eu te esmago", e outro com "eu te mato quando posso". As classes trancadas e intransitivas perpetuam assim um jogo regido por gozos antigos. Se não há vergonha em ostentar, é porque há gozo em consternar. Se há mais violência do que a necessária para roubar, é porque há gozo em violentar corpos.

Fábrica de eufemismos Em nossos trópicos, a ostentação de riqueza e elegância, separada de sua função social moderna, se torna assim mais do que vulgar: obscena. Em vez de abrir e alimentar a mobilidade social, ela cristaliza as distâncias.
A cordialidade é a expressão e o pano de fundo do universo social do favor, em que dependências, exclusões e inclusões são vividas ao ritmo do coração. Ela é, portanto, a alma de um sistema de diferenças sociais qualitativas, quase de casta, longe da garantia de mobilidade oferecida pelo caráter abstrato da sociedade moderna. Em outras palavras, "se tenho direitos porque estou no teu coração, nossa relação é cordial, mas minha dependência é sem salvação e minha mobilidade está em tuas mãos".
Contudo, a cordialidade é também a invenção de uma maneira gostosa de viver e se relacionar. É uma espécie de generosidade do coração que, no leque inteiro das paixões, permite reconhecer no outro um ser concreto, por mais que ele esteja distante de nós.
Agora, quando a elite se moderniza e começa a dominar, esmagando pela ostentação, a significação dessa cordialidade gostosa desaparece -pois, de fato, ninguém mais está no coração dessa elite. Ela é arcaica demais para reconhecer que suas vítimas são sujeitos de direito e moderna demais para proteger e favorecer (prefere ostentar).
Sua aparente cordialidade gostosa é, assim, vazia: uma fábrica de eufemismos coletivos que ocultam a violência da divisão social e nos induzem a crer na existência de uma grande família nacional.
Somos todos "amigões" ("amigão, cuida do carro para a gente"), todos "irmãos" ("corta este coco para nós, irmão") e "tios" para todas as crianças, sobretudo se forem de rua. Se a miscigenação não tivesse acontecido, teríamos que inventá-la para poder seguir acreditando que somos todos herdeiros de uma suruba inicial e, portanto, todos parentes próximos. A familiaridade é hoje uma mentira, uma máscara ou, como já observou Teresa Sales, um fetiche, ou seja, a ilusão de uma unidade que oculta nossa divisão inconciliável. O amigão pobre está muito longe do rico que solicita sua ajuda. O irmão não faz parte da família. Essa charmosa amabilidade serve para impor um regime de dependência. Os doces apelativos "amigo" e "irmão" cooptam seus destinatários. Eles dizem: "Você não é trabalhador assalariado coisa nenhuma, em meu coração você é muito mais: é família, ou seja, fâmulo". A cordialidade das elites aparece assim como uma sedução exercida a partir de um poder irresistível: uma espécie de "social harassement" (assédio social). "Como recusar ser amigo e irmão do patrão?" é apenas uma outra versão de "como recusar encontrá-lo à noite na senzala?". É uma cordialidade feita de pura melifluidade e prepotência, pois é separada de sua significação social: o carinho não promete proteção nenhuma, o fâmulo vai ser posto na rua como um empregado moderno.

Restos da cordialidade
A vulgaridade de nossas elites hoje é dupla. E duplamente sucessora da cordialidade perdida. Por procurar os prazeres da ostentação sem abolir as diferenças qualitativas do mundo cordial, nossas elites exaltam a vulgaridade moderna. Desprovida de função social, a ostentação só vale pelo prazer de esmagar que ela proporciona.
A sociedade é mantida em uma impiedosa divisão. Mas as elites que mantêm esse arcaísmo se querem modernas. Portanto elas também recusam o compromisso com seus sujeitos -que o regime do favor implicava e pedia. Foi-se a proteção pessoal arcaica, mas não por isso vem uma sociedade moderna.
O papo cordial e paternalista mente ao sugerir que ainda valeriam os compromissos afetivos do passado. O que sobra dessa cordialidade das elites torna-se intoleravelmente vulgar por ser uma descarada gozação.
Está difícil ser elite no Brasil sem ser vulgar. E, quanto mais aparentemente cordial (dessa cordialidade falsa e esmagadora), tanto mais vulgar.
E o povo? Será que ele ainda é cordial?
Para os Paulo César, a cordialidade se transformou em violência. Como se nesta sociedade só fosse possível reconhecer a presença concreta dos outros à ponta de faca. Aqueles que não tomam o caminho de Paulo César estão preservando como podem o que sobrou desse patrimônio nacional. Tomara que aguentem e que inventem um jeito de seguir cordiais, hoje e no dia em que o Brasil for mesmo empurrado para a modernidade.
Tomara. Pois, sem eles, dá mesmo para constatar que o homem cordial se foi e chegou a hora do homem vulgar.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática). Ele assina, nas quintas-feiras, uma coluna na Ilustrada, da Folha.
E-mail: ccalligari@uol.com.br


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