São Paulo, Domingo, 12 de Dezembro de 1999


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+ literatura
O ensaísta Davi Arrigucci Jr. discute a postura crítica necessária para estabelecer o valor do autor de " O Aleph" em relação aos grandes mestres do século 20
Borges e a experiência histórica

Davi Arrigucci Jr.

especial para a Folha

A final, quem foi Borges? Como situá-lo enquanto escritor, neste fim de século, a cem anos de seu nascimento? Qual o seu lugar de fato na literatura contemporânea? Os indivíduos são inefáveis, como ele próprio gostava de repetir, mas e o autor? Qual a situação precisa do demiurgo, comentador dos livros e do universo, o "fazedor" que formulou tantas questões sobre a identidade, desdobrada ao infinito nos espelhos do eu e do outro? Como fica o poeta que recolheu a memória das coisas inumeráveis que podem tocar uma pessoa ao longo da vida e naturalmente desaparecer sem a voz que as reitere no verso? Ou então, o narrador que se multiplicou em mil narradores, refazendo com palavras o recorrente labirinto como imagem do mundo e de nossa perplexidade? A figura de Borges, projeção virtual de sua obra, sugere uma universalidade desprendida de toda circunstância particular e da história, pairando em sua abstração generalizadora como um mito literário, à maneira de Homero ou Shakespeare, a quem se referiu tantas vezes como modelos.

Restrições críticas Contudo será Borges alguém comparável a Proust, Joyce ou Kafka? Ou a Guimarães Rosa, que nossa língua e a fala rosiana do sertão segregam do mundo? Descontado o grau de arbítrio inerente a esse tipo de comparação, há muitos críticos importantes que, sem deixar de reconhecer-lhe o valor e o prazer que sempre nos dá a sua leitura, parecem ter restrições a vê-lo pairar tão alto. Estaríamos apenas diante de um grande mestre menor, um imitador engenhoso de Kafka, construtor de objetos verbais para quem as conjeturas e os elegantes paradoxos dão forma tão-somente a dúvidas conhecidas, derivadas das categorias da metafísica e da epistemologia, e não a perplexidades reais, fundadas na experiência humana. Robert Alter e Harold Bloom tendem a avaliá-lo assim, reduzindo-lhe a complexidade do enigma à engenhosidade do paradoxo lógico (como muitas vezes foi lido Kafka). Apenas lhe concedem as graças do estilo, decerto não poucas nem pequenas, mas, no final das contas, restritas à qualidade ímpar da linguagem. Na verdade, esses juízos são indícios do modo como Borges vem sendo lido por grande parte da crítica já faz bastante tempo. Agora é preciso lê-lo noutra direção mais inclusiva e difícil, mas quem sabe mais justa para com o escritor: a que seja capaz de buscar a unidade orgânica entre a articulação interna de sua obra com o conteúdo de verdade humana que ela envolve e que é, até o cerne da matéria, histórico. A qualidade do todo depende da sedimentação formal de uma experiência histórica configurada em obra de arte. As implicações disto são muitas. Antes de tudo, é necessário contextualizar a obra, o que não significa demonstrar apenas como ela reconstrói, eventualmente, os fatos e a crônica histórica e política da Argentina ou do mundo atual. Entre tantas coisas, Borges discute muitas vezes, por exemplo, versões contrapostas da realidade do país, remontando às lutas intestinas que se seguiram à independência e ao próprio projeto de nação; outras vezes, retrata ainda as imagens históricas de Buenos Aires, desde a fundação mítica da cidade até sua presença ubíqua e inarredável, inscrita na sensibilidade, no imaginário, na alma dos argentinos. Quer dizer: não basta apenas reconhecer os conteúdos históricos ostensivos ou latentes a que a sua obra efetivamente remete ou alude. Obviamente são inumeráveis as referências ao passado da humanidade e à história contemporânea, a exemplo dos episódios marcantes da Segunda Guerra Mundial, aos quais o escritor foi tão sensível, ou das questões específicas de ideologia e política, como a crítica direta ao peronismo que várias vezes ele fustigou e de que teve que se defender. A própria recepção interna da obra na Argentina dependeu muito disso. É o que se nota pela reação negativa que sempre despertou a constante e aguda crítica de Borges ao nacionalismo argentino, até que seu reconhecimento planetário, a partir sobretudo dos anos 60, relegasse a grita ao silêncio. Tudo isso tem grande importância para o entendimento da obra, mas não basta. Também não é o caso apenas de se mapear nela o tema da memória, de resto decisivo num autor para quem a dimensão histórico-social da memória é muito mais do que só um motivo literário relevante, como têm demonstrado estudos recentes sob esse aspecto. Não se trata, portanto, de ver a história na obra somente enquanto referência, documento, sinal ou símbolo, mas de analisar e compreender a história imanente à forma literária, o que não é nada simples e constitui um verdadeiro programa crítico, porque supõe a leitura interna dos textos integrada ao conhecimento do contexto.

Críticos despistados A arte de Borges em despistar seus críticos não é inferior à que ostenta ao armar labirintos verbais. Talvez isso explique como tantos repetem sobre sua obra o que ele mesmo disse dela. Em compensação, muitas vezes sugeriu também como podem ser secretos os signos, a exemplo de certas datas difíceis de precisar que aludem ao processo profundo em que estamos imersos, e não à aparência enganosa do que fica no registro da crônica histórica. No prefácio à edição francesa da Pléiade, cujo primeiro volume saiu pouco depois de sua morte, ocorrida em junho de 1986, se declara o menos histórico dos homens; linhas abaixo, reconhece, porém, com a graça irônica da contradição, a necessidade de se contextualizar sempre uma obra que se queira realmente compreender.
Não é outra coisa o que nos pedem seus textos. Para isso, entretanto, é preciso penetrar neles a fundo, nas verdadeiras dobras de uma obra em cuja interioridade as contraditórias versões que a consciência de um homem deu da realidade podem ter permanecido na iminência de uma revelação de todo impossível, mas, sem dúvida, se objetivaram, com toda a complexidade de sua verdade histórica, em forma artística.
Como toda grande obra de arte, a de Borges pode aspirar à totalidade do real, mas não paira nas nuvens; como as outras, tem os pés radicados na terra dos homens. Nosso patrimônio latino-americano, enquanto herdeiros da tradição européia frente à qual reafirmamos o desejo de ser outros, pode ser de fato o universo, como ele próprio escreveu num famoso ensaio sobre o escritor argentino e a tradição. Mas penetrar na articulação particular que sustenta essa vasta construção universal em correlação com o processo histórico que de algum modo a condiciona é necessidade básica de toda consciência crítica que queira compreender adequadamente, dos pilares ao topo, o lance, a envergadura e a significação da nova torre de Babel. A porta de Deus, inscrita no nome Babel e feita da mesma matéria de que são feitos os sonhos, pode ser reinventada a cada passo do homem, mas parte do chão histórico específico onde, feliz ou infelizmente, nos toca viver.


Davi Arrigucci Jr. é ensaísta e professor de literatura na USP, autor, entre outros, de "O Escorpião Encalacrado" (Companhia das Letras).
O texto acima será publicado na revista "Cuadernos de Recienvenido".


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