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+ literatura
O ensaísta Davi Arrigucci Jr. discute a postura crítica necessária para estabelecer o valor do autor de " O Aleph" em relação aos grandes mestres do século 20
Borges e a experiência histórica
Davi Arrigucci Jr.
especial para a Folha
A
final, quem foi Borges? Como situá-lo enquanto escritor, neste fim de
século, a cem anos de seu nascimento?
Qual o seu lugar de fato na literatura contemporânea?
Os indivíduos são inefáveis, como ele
próprio gostava de repetir, mas e o autor? Qual a situação precisa do demiurgo, comentador dos livros e do universo,
o "fazedor" que formulou tantas questões sobre a identidade, desdobrada ao
infinito nos espelhos do eu e do outro?
Como fica o poeta que recolheu a memória das coisas inumeráveis que podem
tocar uma pessoa ao longo da vida e naturalmente desaparecer sem a voz que as
reitere no verso? Ou então, o narrador
que se multiplicou em mil narradores,
refazendo com palavras o recorrente labirinto como imagem do mundo e de
nossa perplexidade? A figura de Borges,
projeção virtual de sua obra, sugere uma
universalidade desprendida de toda circunstância particular e da história, pairando em sua abstração generalizadora
como um mito literário, à maneira de
Homero ou Shakespeare, a quem se referiu tantas vezes como modelos.
Restrições críticas
Contudo será
Borges alguém comparável a Proust,
Joyce ou Kafka? Ou a Guimarães Rosa,
que nossa língua e a fala rosiana do sertão segregam do mundo? Descontado o
grau de arbítrio inerente a esse tipo de
comparação, há muitos críticos importantes que, sem deixar de reconhecer-lhe
o valor e o prazer que sempre nos dá a
sua leitura, parecem ter restrições a vê-lo
pairar tão alto. Estaríamos apenas diante
de um grande mestre menor, um imitador engenhoso de Kafka, construtor de
objetos verbais para quem as conjeturas
e os elegantes paradoxos dão forma tão-somente a dúvidas conhecidas, derivadas das categorias da metafísica e da
epistemologia, e não a perplexidades
reais, fundadas na experiência humana.
Robert Alter e Harold Bloom tendem a
avaliá-lo assim, reduzindo-lhe a complexidade do enigma à engenhosidade do
paradoxo lógico (como muitas vezes foi
lido Kafka). Apenas lhe concedem as
graças do estilo, decerto não poucas nem
pequenas, mas, no final das contas, restritas à qualidade ímpar da linguagem.
Na verdade, esses juízos são indícios do
modo como Borges vem sendo lido por
grande parte da crítica já faz bastante
tempo. Agora é preciso lê-lo noutra direção mais inclusiva e difícil, mas quem sabe mais justa para com o escritor: a que
seja capaz de buscar a unidade orgânica
entre a articulação interna de sua obra
com o conteúdo de verdade humana que
ela envolve e que é, até o cerne da matéria, histórico. A qualidade do todo depende da sedimentação formal de uma
experiência histórica configurada em
obra de arte. As implicações disto são
muitas.
Antes de tudo, é necessário contextualizar a obra, o que não significa demonstrar apenas como ela reconstrói, eventualmente, os fatos e a crônica histórica e
política da Argentina ou do mundo
atual. Entre tantas coisas, Borges discute
muitas vezes, por exemplo, versões contrapostas da realidade do país, remontando às lutas intestinas que se seguiram
à independência e ao próprio projeto de
nação; outras vezes, retrata ainda as imagens históricas de Buenos Aires, desde a
fundação mítica da cidade até sua presença ubíqua e inarredável, inscrita na
sensibilidade, no imaginário, na alma
dos argentinos. Quer dizer: não basta
apenas reconhecer os conteúdos históricos ostensivos ou latentes a que a sua
obra efetivamente remete ou alude.
Obviamente são inumeráveis as referências ao passado da humanidade e à
história contemporânea, a exemplo dos
episódios marcantes da Segunda Guerra
Mundial, aos quais o escritor foi tão sensível, ou das questões específicas de ideologia e política, como a crítica direta ao
peronismo que várias vezes ele fustigou e
de que teve que se defender. A própria
recepção interna da obra na Argentina
dependeu muito disso. É o que se nota
pela reação negativa que sempre despertou a constante e aguda crítica de Borges
ao nacionalismo argentino, até que seu
reconhecimento planetário, a partir sobretudo dos anos 60, relegasse a grita ao
silêncio.
Tudo isso tem grande importância para o entendimento da obra, mas não basta. Também não é o caso apenas de se
mapear nela o tema da memória, de resto decisivo num autor para quem a dimensão histórico-social da memória é
muito mais do que só um motivo literário relevante, como têm demonstrado
estudos recentes sob esse aspecto. Não se
trata, portanto, de ver a história na obra
somente enquanto referência, documento, sinal ou símbolo, mas de analisar e
compreender a história imanente à forma literária, o que não é nada simples e
constitui um verdadeiro programa crítico, porque supõe a leitura interna dos
textos integrada ao conhecimento do
contexto.
Críticos despistados
A arte de Borges em despistar seus críticos não é inferior à que ostenta ao armar labirintos
verbais. Talvez isso explique como tantos repetem sobre sua obra o que ele
mesmo disse dela. Em compensação,
muitas vezes sugeriu também como podem ser secretos os signos, a exemplo de
certas datas difíceis de precisar que aludem ao processo profundo em que estamos imersos, e não à aparência enganosa
do que fica no registro da crônica histórica. No prefácio à edição francesa da
Pléiade, cujo primeiro volume saiu pouco depois de sua morte, ocorrida em junho de 1986, se declara o menos histórico
dos homens; linhas abaixo, reconhece,
porém, com a graça irônica da contradição, a necessidade de se contextualizar
sempre uma obra que se queira realmente compreender.
Não é outra coisa o que nos pedem
seus textos. Para isso, entretanto, é preciso penetrar neles a fundo, nas verdadeiras dobras de uma obra em cuja interioridade as contraditórias versões que a
consciência de um homem deu da realidade podem ter permanecido na iminência de uma revelação de todo impossível, mas, sem dúvida, se objetivaram,
com toda a complexidade de sua verdade
histórica, em forma artística.
Como toda grande obra de arte, a de
Borges pode aspirar à totalidade do real,
mas não paira nas nuvens; como as outras, tem os pés radicados na terra dos
homens. Nosso patrimônio latino-americano, enquanto herdeiros da tradição
européia frente à qual reafirmamos o desejo de ser outros, pode ser de fato o universo, como ele próprio escreveu num
famoso ensaio sobre o escritor argentino
e a tradição. Mas penetrar na articulação
particular que sustenta essa vasta construção universal em correlação com o
processo histórico que de algum modo a
condiciona é necessidade básica de toda
consciência crítica que queira compreender adequadamente, dos pilares ao
topo, o lance, a envergadura e a significação da nova torre de Babel. A porta de
Deus, inscrita no nome Babel e feita da
mesma matéria de que são feitos os sonhos, pode ser reinventada a cada passo
do homem, mas parte do chão histórico
específico onde, feliz ou infelizmente,
nos toca viver.
Davi Arrigucci Jr. é ensaísta e professor de literatura
na USP, autor, entre outros, de "O Escorpião Encalacrado" (Companhia das Letras).
O texto acima será publicado na revista "Cuadernos de
Recienvenido".
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