São Paulo, Domingo, 12 de Dezembro de 1999


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Reunião da Organização Mundial do Comércio em Seattle marca o fortalecimento das reivindicações sociais
O fim das missas ultraliberais

Alain Touraine

P or iniciativa do governo britânico, foram promovidas reuniões para criar uma terceira via, nem liberal nem social-democrata, que seria seguida pela maioria dos países do mundo ocidental. O principal resultado desses encontros, primeiro em Nova York e, mais recentemente, em Florença, foi deixar claro até que ponto é vazia e indefinida a idéia da terceira via. É raro que uma cúpula informal como a de Florença termine com declarações contendo divergências tão claras quanto as de Fernando Henrique Cardoso e Lionel Jospin (provavelmente apoiadas pelo português Guterres, novo secretário geral da Internacional Socialista, que estava na sala) com Tony Blair, Bill Clinton e mesmo Gerhard Schroeder -se bem que o último esteja tão desorientado que não se sabe mais onde situá-lo, senão à direita de seu adversário Lafontaine. Não se trata, aqui, de nuanças ou diferenças de caráter pessoal ou entre situações nacionais. No Brasil, Fernando Henrique forjou alianças à direita que não o impediram de apresentar um discurso de esquerda. Na Alemanha, Schroeder é submetido a forte pressão sindical, o que não o impede de atuar como arauto do novo centro. O que separa esses dirigentes políticos é o fato de que precisam responder a duas perguntas ao mesmo tempo -e que alguns priorizam uma delas, e outros, a outra. O primeiro problema é aceitar a globalização econômica, e aqueles que a apoiam com mais firmeza são os países que se sentem ou querem ser mais centrais: Estados Unidos, Reino Unido e Japão, apesar de sua crise financeira. O outro problema é restabelecer no novo sistema econômico uma capacidade de regulamentação e de intervenção política que impeça a eclosão de graves crises sociais. É esse, evidentemente, o caso do Brasil, onde as desigualdades e a exclusão são muito grandes. É também o caso da França, onde a demora na destruição da economia administrada tem sido ao mesmo tempo consequência e causa da manutenção de uma velha esquerda cujo elemento principal, o partido comunista, faz parte do próprio governo. Seria preciso incluir no mesmo lado a Itália, onde as dificuldades eram tão grandes, mas onde Romano Prodi, homem de centro-direita, promoveu uma política nitidamente de centro-esquerda, com a ajuda dos sindicatos, enquanto D'Alema -que, na condição do anfitrião do encontro, se mostrou prudente- hoje depende mais da direita do que da esquerda para manter o PSD (Partido da Esquerda Democrática) no poder. Se admitirmos esse raciocínio, poderemos prever que, quanto mais se confirmar a globalização da economia, mais se intensificarão as críticas de esquerda, já que os adversários "arcaicos" dessa globalização são cada vez mais substituídos por outros, bem mais modernos e que lutam menos para salvar um protecionismo nacional do que contra a hegemonia norte-americana nas indústrias culturais e contra o crescimento das desigualdades sociais.

O caso brasileiro Analisemos por um instante o caso brasileiro. O Brasil, assim como a França, resistiu por muito tempo à abertura de sua economia e, quando a aceitou, o fez adotando métodos muito criticáveis. Por conseguinte, a luta contra os adversários arcaicos e corporativistas da abertura da economia continua sendo uma das principais tarefas do governo, qualquer que seja. É por esse motivo que o governo de Fernando Henrique é visto como sendo de direita e frequentemente é condenado por isso. Mas o Brasil é também um dos países cujo presidente defendeu mais firmemente a regulamentação nacional da economia e condenou os movimentos bruscos, irresponsáveis e perigosos dos capitais internacionais que rejeitam qualquer compromisso de longo prazo. É assim que se explica o fato de que um presidente visto em seu próprio país como sendo de direita tenha tido um discurso de esquerda em nível internacional, enquanto Tony Blair, visto em seu país como de esquerda, tenha um discurso constantemente de direita e não tome nenhuma medida social que possa ser considerada de esquerda. Os mais pessimistas entre nós pensamos que o futuro da esquerda está à direita, já que, em vista da ausência de um programa coerente de esquerda -ausência reforçada pelas declarações tão veementes quanto inutilizáveis de uma extrema esquerda ainda dividida-, o que ela pode fazer de melhor é demolir as barreiras e os privilégios do passado. Mas já estamos deixando para trás essa idéia que correspondeu a uma década dominada ao mesmo tempo pelo crescimento americano muito grande, a estagnação européia e as crises do Japão, da Coréia, da Rússia, do México e do Brasil. Ao final desta década, o crescimento americano, felizmente, não está perdendo força, e a recuperação da economia mundial é visível. Nenhuma das crises regionais dos últimos anos ainda ameaça o conjunto dos sistemas econômicos. É por isso que o discurso de centro-esquerda volta a ser ouvido e é por isso que fracassou a tentativa de Schroeder de sair de uma Internacional Socialista da qual a França é parte, criando um novo conjunto político com os Estados Unidos. Podemos até mesmo levar o otimismo ao ponto de pensarmos que a reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio) em Seattle começa num clima mais de dúvida do que de triunfo, já que não foi proposta aos participantes nenhuma pauta de discussões, fato que evidencia a ausência ou o enfraquecimento de uma vontade hegemônica. A Europa falou pela voz de Pascal Lamy, antigo braço direito de Jacques Delors e de orientação nitidamente de centro-esquerda -e, ao mesmo tempo, partidário convicto da necessária abertura da economia mundial. O tempo das grandes missas ultraliberais já acabou, e a oposição não mais acredita que a competitividade internacional das economias seja incompatível com a manutenção da proteção social e a luta contra as desigualdades. Pouco a pouco as preocupações sociais vão se fazendo ouvir melhor, e os governos são chamados a priorizá-las, à medida que perdem terreno os antigos corporativismos. Talvez seja preciso moderar esse otimismo, que pode parecer paradoxal no momento em que tão solenemente se proclama o credo liberal. Mas não há paradoxo algum em anunciar a recuperação das políticas sociais ao mesmo tempo em que desaparecem os protecionismos e os corporativismos. Críticas e preocupações já se fazem ouvir, tanto em Florença quanto em Seattle. Mas evidentemente se trata do fortalecimento da reivindicação e da contestação sociais, o despertar da chamada sociedade civil, que apenas uma política de centro-esquerda poderia deixar nascer, na medida em que a esquerda, enquanto tal, sempre se definiu por seu papel de representação das reivindicações da maioria.

Sono liberal As rupturas de 1989 foram tão exultantes, e o fim do sistema comunista, tão libertador, que é compreensível que o mundo tenha passado uma década adormecido num sono liberal. Mas dez anos já bastam, e como não existe mais nenhuma ameaça proveniente de uma ex-União Soviética em crise profunda e duradoura, os países democráticos podem expressar em voz mais alta sua crítica a uma globalização que tem muitos efeitos econômicos positivos, sem dúvida, mas que também provocou uma grave crise de vontade social e de intervenção política, crise que tem efeitos cada vez mais desastrosos e que já se tornam insuportáveis.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (Vozes).
Tradução de Clara Allain.


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