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Reunião da Organização Mundial do Comércio em Seattle marca o fortalecimento das reivindicações sociais
O fim das missas ultraliberais
Alain Touraine
P
or iniciativa do governo britânico, foram promovidas
reuniões para criar uma terceira via, nem liberal nem social-democrata, que seria seguida
pela maioria dos países do mundo
ocidental. O principal resultado desses encontros, primeiro em Nova
York e, mais recentemente, em Florença, foi deixar claro até que ponto
é vazia e indefinida a idéia da terceira via. É raro que uma cúpula informal como a de Florença termine com
declarações contendo divergências
tão claras quanto as de Fernando
Henrique Cardoso e Lionel Jospin
(provavelmente apoiadas pelo português Guterres, novo secretário geral da Internacional Socialista, que
estava na sala) com Tony Blair, Bill
Clinton e mesmo Gerhard Schroeder
-se bem que o último esteja tão desorientado que não se sabe mais onde situá-lo, senão à direita de seu adversário Lafontaine.
Não se trata, aqui, de nuanças ou diferenças de caráter pessoal ou entre situações nacionais. No Brasil, Fernando
Henrique forjou alianças à direita que
não o impediram de apresentar um discurso de esquerda. Na Alemanha,
Schroeder é submetido a forte pressão
sindical, o que não o impede de atuar como arauto do novo centro. O que separa
esses dirigentes políticos é o fato de que
precisam responder a duas perguntas ao
mesmo tempo -e que alguns priorizam
uma delas, e outros, a outra.
O primeiro problema é aceitar a globalização econômica, e aqueles que a
apoiam com mais firmeza são os países
que se sentem ou querem ser mais centrais: Estados Unidos, Reino Unido e Japão, apesar de sua crise financeira. O outro problema é restabelecer no novo sistema econômico uma capacidade de regulamentação e de intervenção política
que impeça a eclosão de graves crises sociais. É esse, evidentemente, o caso do
Brasil, onde as desigualdades e a exclusão são muito grandes. É também o caso
da França, onde a demora na destruição
da economia administrada tem sido ao
mesmo tempo consequência e causa da
manutenção de uma velha esquerda cujo
elemento principal, o partido comunista,
faz parte do próprio governo.
Seria preciso incluir no mesmo lado a
Itália, onde as dificuldades eram tão
grandes, mas onde Romano Prodi, homem de centro-direita, promoveu uma
política nitidamente de centro-esquerda,
com a ajuda dos sindicatos, enquanto
D'Alema -que, na condição do anfitrião do encontro, se mostrou prudente- hoje depende mais da direita do que
da esquerda para manter o PSD (Partido
da Esquerda Democrática) no poder.
Se admitirmos esse raciocínio, poderemos prever que, quanto mais se confirmar a globalização da economia, mais se
intensificarão as críticas de esquerda, já
que os adversários "arcaicos" dessa globalização são cada vez mais substituídos
por outros, bem mais modernos e que
lutam menos para salvar um protecionismo nacional do que contra a hegemonia norte-americana nas indústrias culturais e contra o crescimento das desigualdades sociais.
O caso brasileiro
Analisemos por
um instante o caso brasileiro. O Brasil,
assim como a França, resistiu por muito
tempo à abertura de sua economia e,
quando a aceitou, o fez adotando métodos muito criticáveis. Por conseguinte, a
luta contra os adversários arcaicos e corporativistas da abertura da economia
continua sendo uma das principais tarefas do governo, qualquer que seja. É por
esse motivo que o governo de Fernando
Henrique é visto como sendo de direita e
frequentemente é condenado por isso.
Mas o Brasil é também um dos países cujo presidente defendeu mais firmemente
a regulamentação nacional da economia
e condenou os movimentos bruscos, irresponsáveis e perigosos dos capitais internacionais que rejeitam qualquer compromisso de longo prazo.
É assim que se explica o fato de que um
presidente visto em seu próprio país como sendo de direita tenha tido um discurso de esquerda em nível internacional, enquanto Tony Blair, visto em seu
país como de esquerda, tenha um discurso constantemente de direita e não tome
nenhuma medida social que possa ser
considerada de esquerda.
Os mais pessimistas entre nós pensamos que o futuro da esquerda está à direita, já que, em vista da ausência de um
programa coerente de esquerda -ausência reforçada pelas declarações tão
veementes quanto inutilizáveis de uma
extrema esquerda ainda dividida-, o
que ela pode fazer de melhor é demolir as
barreiras e os privilégios do passado.
Mas já estamos deixando para trás essa
idéia que correspondeu a uma década
dominada ao mesmo tempo pelo crescimento americano muito grande, a estagnação européia e as crises do Japão, da
Coréia, da Rússia, do México e do Brasil.
Ao final desta década, o crescimento
americano, felizmente, não está perdendo força, e a recuperação da economia
mundial é visível. Nenhuma das crises
regionais dos últimos anos ainda ameaça
o conjunto dos sistemas econômicos. É
por isso que o discurso de centro-esquerda volta a ser ouvido e é por isso que fracassou a tentativa de Schroeder de sair de
uma Internacional Socialista da qual a
França é parte, criando um novo conjunto político com os Estados Unidos.
Podemos até mesmo levar o otimismo
ao ponto de pensarmos que a reunião da
OMC (Organização Mundial do Comércio) em Seattle começa num clima mais
de dúvida do que de triunfo, já que não
foi proposta aos participantes nenhuma
pauta de discussões, fato que evidencia a
ausência ou o enfraquecimento de uma
vontade hegemônica. A Europa falou pela voz de Pascal Lamy, antigo braço direito de Jacques Delors e de orientação nitidamente de centro-esquerda -e, ao
mesmo tempo, partidário convicto da
necessária abertura da economia mundial. O tempo das grandes missas ultraliberais já acabou, e a oposição não mais
acredita que a competitividade internacional das economias seja incompatível
com a manutenção da proteção social e a
luta contra as desigualdades. Pouco a
pouco as preocupações sociais vão se fazendo ouvir melhor, e os governos são
chamados a priorizá-las, à medida que
perdem terreno os antigos corporativismos.
Talvez seja preciso moderar esse otimismo, que pode parecer paradoxal no
momento em que tão solenemente se
proclama o credo liberal. Mas não há paradoxo algum em anunciar a recuperação das políticas sociais ao mesmo tempo em que desaparecem os protecionismos e os corporativismos. Críticas e
preocupações já se fazem ouvir, tanto em
Florença quanto em Seattle. Mas evidentemente se trata do fortalecimento da
reivindicação e da contestação sociais, o
despertar da chamada sociedade civil,
que apenas uma política de centro-esquerda poderia deixar nascer, na medida
em que a esquerda, enquanto tal, sempre
se definiu por seu papel de representação
das reivindicações da maioria.
Sono liberal
As rupturas de 1989 foram tão exultantes, e o fim do sistema comunista, tão libertador, que é compreensível que o mundo tenha passado uma
década adormecido num sono liberal.
Mas dez anos já bastam, e como não
existe mais nenhuma ameaça proveniente de uma ex-União Soviética em
crise profunda e duradoura, os países democráticos podem expressar em voz
mais alta sua crítica a uma globalização
que tem muitos efeitos econômicos positivos, sem dúvida, mas que também provocou uma grave crise de vontade social
e de intervenção política, crise que tem
efeitos cada vez mais desastrosos e que já
se tornam insuportáveis.
Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor de, entre
outros, "A Crítica da Modernidade" (Vozes).
Tradução de Clara Allain.
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