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Niemeyeer hipermoderno
Em entrevista ao Mais!, o arquiteto diz que, aos 97 anos, está "mai s variado", com projet os que
vão de mesquita a esc ola de balé, e mais cria tivo do que na época e m que fez Brasília, nos anos 50
MARIO CESAR CARVALHO
SILVIO CIOFFI
ENVIADOS ESPECIAIS AO RIO
Para quem criou uma cidade
como Brasília, marco mundial da arquitetura moderna,
pode parecer que o clímax da
criação é coisa do passado, cume
que jamais será alcançado outra vez.
Não inclua o arquiteto Oscar Niemeyer nesse exercício de saudosismo.
Aos 97 anos, que serão completados
na próxima quarta-feira, ele diz estar
no ápice da criação, mais inventivo
do que na época em que projetou
Brasília. "Agora é mais variado", justifica, em entrevista exclusiva ao
Mais!.
Variado talvez seja um termo inadequado para dar conta do que Niemeyer fez neste ano. Ciclópico talvez
seja a palavra certa. Exagero? Dê
uma olhada na lista dos seus principais projetos de 2004:
1) Criou um novo centro administrativo para o governo de Minas Gerais, um complexo com dois prédios
e um palácio que ocuparão 300 mil
m2, área suficiente para abrigar 42
campos de futebol;
2) Desenhou uma biblioteca e um
centro cultural que completarão os
prédios que ele havia previsto para o
Eixo Monumental de Brasília, mas
permaneceram como idéia por mais
de 45 anos;
3) Finalizou o projeto do auditório
que previra em 1954 para o parque
Ibirapuera, em São Paulo. O prédio
deve ser inaugurado neste mês;
4) Inventou um museu dentro do
mar em Fortaleza;
5) Esboçou uma mesquita para o
Caminho Niemeyer, em Niterói, onde ficarão concentradas mais de
uma dezena de suas obras. Se for
construída, ela formará um triângulo que terá nos outros vértices uma
catedral católica e uma igreja batista;
6) Concebeu uma sede para o balé
Bolshoi em Joinville (SC);
7) Fez uma estação de barcas na
praia de Charitas, que liga Niterói à
praça Quinze, no centro do Rio;
8) Criou uma escultura que deve
ser instalada em Paris, junto da Biblioteca Nacional, no próximo ano;
9) Imaginou uma sede tão impressionante para a hidrelétrica de Itaipu
que o Paraguai também quer que
Niemeyer faça uma espécie de obra
espelho do outro lado da fronteira;
10) Fez o projeto para o centro cultural e a quadra da escola de samba
Unidos de Vila Isabel.
Mesquita, escola de samba, escola
de balé, estação de barcas, escultura
-talvez seja isso que Niemeyer
queira dizer com a frase "agora é
mais variado".
"Trabalho com Niemeyer há 35
anos e nunca tinha visto uma fase
tão criativa. Todo dia ele desenha
formas nunca vistas", afirma Jair
Valera, 55, um dos arquitetos a
quem Niemeyer confia o detalhamento de seus projetos. Valera diz
estar impressionado com sua capacidade de síntese: cada vez usa menos traços para criar um desenho.
As "formas nunca vistas" a que se
refere o arquiteto compõem, junto
com o desafio tecnológico da construção, a dupla obsessão de Niemeyer -e, obviamente, é impossível
separar os desafios das formas.
Laje que flutua
Em tom de piada, Niemeyer conta
que o seu sonho é criar uma laje de
concreto que não precise do apoio
de colunas ou de qualquer outra artifício para se sustentar -que flutue
no ar, em suma. "Para depois cair na
sua cabeça", completa, às gargalhadas, José Carlos Sussekind, 57, o engenheiro calculista das obras de Niemeyer, o homem que faz os desenhos do arquiteto pararem em pé, literalmente, quando são convertidos
em concreto armado.
Sussekind é o parceiro mais freqüente de Niemeyer -trabalham
juntos há 35 anos. A obsessão de
Niemeyer por formas impossíveis
não é nova. O melhor indício dessa
fixação foi ter tirado do anonimato a
função de calculista, com os elogios
que fazia ao engenheiro e poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), com
quem trabalhou nos projetos da
Pampulha e de Brasília.
Com Sussekind, porém, a relação
parece ser mais estreita -é a ele que
Niemeyer mostra os primeiros esboços, é a quem consulta quando tem
dúvidas se deve aceitar um projeto
ou não, é quem envia como representante quando ganha uma
honraria do porte do Prêmio Imperial do Japão (o cineasta iraniano
Abbas Kiarostami, o compositor polonês Krzysztof Penderecki e o artista americano Bruce Neuman foram
condecorados com o brasileiro).
Niemeyer trabalha de segunda a
sábado num prédio art déco em Copacabana, na zona sul do Rio. Chega-se à cobertura no 9º andar, com
vista para o mar, após atravessar
uma escada em dois lances, com 17
degraus estreitos, com menos de um
metro de largura. A escada apertada
está ali para sinalizar que a cobertura
é de uma outra época, quando o chique era morar em andares baixos e o
último pavimento ficava reservado
para o zelador do prédio.
Niemeyer trabalha numa sala sem
vista, com cerca de 15 m2, de uma
simplicidade espartana. Há só uma
mesa, à frente de uma estante repleta
de livros. O único computador do
escritório é controlado por dona Vera, a secretária. A principal sala do
escritório é também o local onde
Niemeyer, Sussekind e quem aparecer almoçam -da mesa vê-se o mar
e o Forte de Copacabana.
As paredes da sala maior são decoradas com desenhos e frases de Niemeyer. A principal das frases é o seu
mote mais freqüente: "O mais importante não é a arquitetura, mas a
vida, os amigos e este mundo injusto
que devemos modificar". Há, porém, sinais de mudanças.
Uma delas é o gosto de Niemeyer
pelo desenho. No teatro que está em
construção no Caminho Niemeyer,
são deles os traços mínimos que sugerem o corpo de uma mulher nua
na parte externa da obra. No passado, ele era mais comedido -fazia o
projeto do prédio, mas deixava a arte a cargo de amigos como Athos
Bulcão, Franz Weismann e Alfredo
Ceschiatti (1918-89).
Há nos desenhos mais recentes
frases que parecem saídas de um
rapper ou de um pichador. Junto de
um esboço de um homem isolado
no pico de um morro, ele escreveu:
"Fodido não tem vez". Ao mostrar a
frase, gargalha da própria graça.
Meu negócio é o concreto
O novo Niemeyer parece avesso a
mistificações que ele e o arquiteto
Lucio Costa, com quem construiu
Brasília, criaram sobre sua obra. Influência de Aleijadinho sobre seus
projetos? Ele não diz que isso é bobagem, mas dá de ombros e frisa que o
seu negócio é outro, é o concreto armado. "Depois do concreto, você
pode pensar no passado como curiosidade", define.
Não tem a menor paciência para
comentar o que acha dos principais
arquitetos do século 20. Quando é
questionado se existe uma eventual
escola Niemeyer, da qual a arquiteta
iraquiana Zaha Hadid, vencedora do
Pritzker Prize neste ano, seria a representante mais ilustre, nega que
isso possa existir. A sua tese é de que
cada arquiteto é um mundo.
Niemeyer recorre ao passado para
confirmar suas convicções e seu
apreço pelo desafio da forma. Despreza Michelangelo (1475-1564),
Brunelleschi (1377-1446) e os renascentistas em geral porque, segundo
ele, copiavam as proporções, as curvas dos arcos e até as colunas dos
gregos e romanos. Elogia o Palácio
dos Doges, em Veneza, porque ali
havia um arquiteto que antecipa no
século 14 o modernismo do século
20. Trata-se de Filippo Calendario, a
quem são atribuídas as mudanças
que o palácio sofreu por volta de
1350. Como os modernos, Calendario desloca as maiores massas do
prédio para o alto, sustentadas por
pequenas colunas -a causa da surpresa no olhar. No salão monumental, não há colunas a interromper a
vista, o que reforça a noção de amplidão e simplicidade nas formas.
Sua fé no comunismo, no entanto,
permanece inalterada. Niemeyer defende que o belicismo americano é
sinal de crise capitalista. "Vivemos o
momento pior do capitalismo, o capitalismo está acabando e tem de ser
mais cruel, mais violento", afirma.
Dá uma receita simplíssima e debochada para melhorar São Paulo.
Sugere que derrubem dois ou três
quarteirões e deixem aquele espaço
vazio, um respiro numa cidade saturada de concreto. Num texto escrito
para o projeto da sede do governo
mineiro, ele revela que a busca do
vazio proposto é algo bem mais sério: "E o problema dos espaços vazios, das áreas livres e arborizadas,
tão esquecidas e desprezadas por toda parte, cresceu em meu coração e
com tanta força que, acredito, vai influir, se tempo para isso houver, nos
meus trabalhos futuros".
Esse é o novo Niemeyer.
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