São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2004

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Niemeyeer hipermoderno

Em entrevista ao Mais!, o arquiteto diz que, aos 97 anos, está "mai s variado", com projet os que vão de mesquita a esc ola de balé, e mais cria tivo do que na época e m que fez Brasília, nos anos 50

MARIO CESAR CARVALHO
SILVIO CIOFFI
ENVIADOS ESPECIAIS AO RIO

Para quem criou uma cidade como Brasília, marco mundial da arquitetura moderna, pode parecer que o clímax da criação é coisa do passado, cume que jamais será alcançado outra vez. Não inclua o arquiteto Oscar Niemeyer nesse exercício de saudosismo. Aos 97 anos, que serão completados na próxima quarta-feira, ele diz estar no ápice da criação, mais inventivo do que na época em que projetou Brasília. "Agora é mais variado", justifica, em entrevista exclusiva ao Mais!.
Variado talvez seja um termo inadequado para dar conta do que Niemeyer fez neste ano. Ciclópico talvez seja a palavra certa. Exagero? Dê uma olhada na lista dos seus principais projetos de 2004:
1) Criou um novo centro administrativo para o governo de Minas Gerais, um complexo com dois prédios e um palácio que ocuparão 300 mil m2, área suficiente para abrigar 42 campos de futebol;
2) Desenhou uma biblioteca e um centro cultural que completarão os prédios que ele havia previsto para o Eixo Monumental de Brasília, mas permaneceram como idéia por mais de 45 anos;
3) Finalizou o projeto do auditório que previra em 1954 para o parque Ibirapuera, em São Paulo. O prédio deve ser inaugurado neste mês;
4) Inventou um museu dentro do mar em Fortaleza;
5) Esboçou uma mesquita para o Caminho Niemeyer, em Niterói, onde ficarão concentradas mais de uma dezena de suas obras. Se for construída, ela formará um triângulo que terá nos outros vértices uma catedral católica e uma igreja batista;
6) Concebeu uma sede para o balé Bolshoi em Joinville (SC);
7) Fez uma estação de barcas na praia de Charitas, que liga Niterói à praça Quinze, no centro do Rio;
8) Criou uma escultura que deve ser instalada em Paris, junto da Biblioteca Nacional, no próximo ano;
9) Imaginou uma sede tão impressionante para a hidrelétrica de Itaipu que o Paraguai também quer que Niemeyer faça uma espécie de obra espelho do outro lado da fronteira;
10) Fez o projeto para o centro cultural e a quadra da escola de samba Unidos de Vila Isabel.
Mesquita, escola de samba, escola de balé, estação de barcas, escultura -talvez seja isso que Niemeyer queira dizer com a frase "agora é mais variado".
"Trabalho com Niemeyer há 35 anos e nunca tinha visto uma fase tão criativa. Todo dia ele desenha formas nunca vistas", afirma Jair Valera, 55, um dos arquitetos a quem Niemeyer confia o detalhamento de seus projetos. Valera diz estar impressionado com sua capacidade de síntese: cada vez usa menos traços para criar um desenho.
As "formas nunca vistas" a que se refere o arquiteto compõem, junto com o desafio tecnológico da construção, a dupla obsessão de Niemeyer -e, obviamente, é impossível separar os desafios das formas.

Laje que flutua
Em tom de piada, Niemeyer conta que o seu sonho é criar uma laje de concreto que não precise do apoio de colunas ou de qualquer outra artifício para se sustentar -que flutue no ar, em suma. "Para depois cair na sua cabeça", completa, às gargalhadas, José Carlos Sussekind, 57, o engenheiro calculista das obras de Niemeyer, o homem que faz os desenhos do arquiteto pararem em pé, literalmente, quando são convertidos em concreto armado.
Sussekind é o parceiro mais freqüente de Niemeyer -trabalham juntos há 35 anos. A obsessão de Niemeyer por formas impossíveis não é nova. O melhor indício dessa fixação foi ter tirado do anonimato a função de calculista, com os elogios que fazia ao engenheiro e poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), com quem trabalhou nos projetos da Pampulha e de Brasília.
Com Sussekind, porém, a relação parece ser mais estreita -é a ele que Niemeyer mostra os primeiros esboços, é a quem consulta quando tem dúvidas se deve aceitar um projeto ou não, é quem envia como representante quando ganha uma honraria do porte do Prêmio Imperial do Japão (o cineasta iraniano Abbas Kiarostami, o compositor polonês Krzysztof Penderecki e o artista americano Bruce Neuman foram condecorados com o brasileiro).
Niemeyer trabalha de segunda a sábado num prédio art déco em Copacabana, na zona sul do Rio. Chega-se à cobertura no 9º andar, com vista para o mar, após atravessar uma escada em dois lances, com 17 degraus estreitos, com menos de um metro de largura. A escada apertada está ali para sinalizar que a cobertura é de uma outra época, quando o chique era morar em andares baixos e o último pavimento ficava reservado para o zelador do prédio.
Niemeyer trabalha numa sala sem vista, com cerca de 15 m2, de uma simplicidade espartana. Há só uma mesa, à frente de uma estante repleta de livros. O único computador do escritório é controlado por dona Vera, a secretária. A principal sala do escritório é também o local onde Niemeyer, Sussekind e quem aparecer almoçam -da mesa vê-se o mar e o Forte de Copacabana.
As paredes da sala maior são decoradas com desenhos e frases de Niemeyer. A principal das frases é o seu mote mais freqüente: "O mais importante não é a arquitetura, mas a vida, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar". Há, porém, sinais de mudanças.
Uma delas é o gosto de Niemeyer pelo desenho. No teatro que está em construção no Caminho Niemeyer, são deles os traços mínimos que sugerem o corpo de uma mulher nua na parte externa da obra. No passado, ele era mais comedido -fazia o projeto do prédio, mas deixava a arte a cargo de amigos como Athos Bulcão, Franz Weismann e Alfredo Ceschiatti (1918-89).
Há nos desenhos mais recentes frases que parecem saídas de um rapper ou de um pichador. Junto de um esboço de um homem isolado no pico de um morro, ele escreveu: "Fodido não tem vez". Ao mostrar a frase, gargalha da própria graça.

Meu negócio é o concreto
O novo Niemeyer parece avesso a mistificações que ele e o arquiteto Lucio Costa, com quem construiu Brasília, criaram sobre sua obra. Influência de Aleijadinho sobre seus projetos? Ele não diz que isso é bobagem, mas dá de ombros e frisa que o seu negócio é outro, é o concreto armado. "Depois do concreto, você pode pensar no passado como curiosidade", define.
Não tem a menor paciência para comentar o que acha dos principais arquitetos do século 20. Quando é questionado se existe uma eventual escola Niemeyer, da qual a arquiteta iraquiana Zaha Hadid, vencedora do Pritzker Prize neste ano, seria a representante mais ilustre, nega que isso possa existir. A sua tese é de que cada arquiteto é um mundo.
Niemeyer recorre ao passado para confirmar suas convicções e seu apreço pelo desafio da forma. Despreza Michelangelo (1475-1564), Brunelleschi (1377-1446) e os renascentistas em geral porque, segundo ele, copiavam as proporções, as curvas dos arcos e até as colunas dos gregos e romanos. Elogia o Palácio dos Doges, em Veneza, porque ali havia um arquiteto que antecipa no século 14 o modernismo do século 20. Trata-se de Filippo Calendario, a quem são atribuídas as mudanças que o palácio sofreu por volta de 1350. Como os modernos, Calendario desloca as maiores massas do prédio para o alto, sustentadas por pequenas colunas -a causa da surpresa no olhar. No salão monumental, não há colunas a interromper a vista, o que reforça a noção de amplidão e simplicidade nas formas.
Sua fé no comunismo, no entanto, permanece inalterada. Niemeyer defende que o belicismo americano é sinal de crise capitalista. "Vivemos o momento pior do capitalismo, o capitalismo está acabando e tem de ser mais cruel, mais violento", afirma.
Dá uma receita simplíssima e debochada para melhorar São Paulo. Sugere que derrubem dois ou três quarteirões e deixem aquele espaço vazio, um respiro numa cidade saturada de concreto. Num texto escrito para o projeto da sede do governo mineiro, ele revela que a busca do vazio proposto é algo bem mais sério: "E o problema dos espaços vazios, das áreas livres e arborizadas, tão esquecidas e desprezadas por toda parte, cresceu em meu coração e com tanta força que, acredito, vai influir, se tempo para isso houver, nos meus trabalhos futuros".
Esse é o novo Niemeyer.


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