São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Obra do mais importante crítico literário brasileiro começa a ser relançada em edições revistas pelo autor

A vida nova de Antonio Candido

Márcio Fernandes - 6.jul.2002/Folha Imagem
O crítico literário Antonio Candido, autor de "Formação da Literatura Brasileira"


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A editora Ouro sobre Azul lança essa semana sete livros do crítico Antonio Candido (1918). O fato por si só tem grande relevância e corrige uma triste ironia: o ensaísta que criou a noção de "sistema literário" sempre teve suas obras dispersas por editoras que não lhe davam o merecido destaque -algumas com distribuição precária.
Os lançamentos compreendem a reedição -revista pelo autor- de cinco coletâneas de ensaios: "Brigada Ligeira" (112 págs., R$ 18), "O Observador Literário" (120 págs., R$ 19,50), "Recortes" (296 págs., R$ 47,50), "Vários Escritos" (272 págs., R$ 43,50) e "O Discurso e a Cidade" (288 págs., R$ 46) -estes dois em co-edição com a Duas Cidades. Incluem ainda "Iniciação à Literatura Brasileira" (136 págs., R$ 21) -que ficara restrito ao meio universitário- e o inédito "O Albatroz e o Chinês" (160 págs., R$ 25,50). "Começamos o processo com os textos que estavam livres de compromisso com outras editoras e viemos vindo de 1945, com "Brigada Ligeira", até "O Albatroz e o Chinês", conjunto inédito em livro, publicado agora pela primeira vez", diz Ana Luisa Escorel, editora da Ouro sobre Azul.
O fato de ser filha do escritor, porém, não facilitou a tarefa de vencer as resistências de um intelectual conhecido por seu temperamento reservado: "Além da responsabilidade de zelar por um texto que já se tornou clássico, há que lidar com uma personalidade que não gosta nada que se ocupem dela. Convencê-lo da adequação da iniciativa levou tempo. De qualquer maneira, se foi preciso um certo latim, depois de sua entrega ao projeto, nenhum editado terá sido mais cordato e disciplinado", diz ela.
A coleção terá, no total, entre dez e 12 volumes, conferindo "nexo inédito ao conjunto da obra ensaística do autor", segundo expressão de Escorel. Nesse cronograma, a edição revista da "Formação da Literatura Brasileira", prevista para o ano que vem, é certamente aquela que gera mais expectativa. Normalmente colocado ao lado dos grandes ensaios de interpretação do Brasil ("Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, e "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr.), esse livro de 1959 mudou a história da crítica brasileira ao fixar dois pontos convergentes.
De um lado, a idéia de que a literatura brasileira só existe enquanto tal a partir do surgimento do já citado sistema literário: um complexo de obras interligadas em escala virtualmente nacional (o que pressupõe um conjunto de produtores e receptores literários), gerando novas obras que criam uma tradição singular e a consciência dessa singularidade. De outro, a constatação (e não a mera suposição teórica) de que esse sistema se constituiu em torno de um projeto civilizatório de emancipação nacional que envolveu correntes esteticamente díspares (como arcadismo e romantismo).
Essa simbiose entre as ordens da história e da estética gerou uma série de controvérsias. A mais célebre foi o livro "O Seqüestro do Barroco na "Formação da Literatura Brasileira'", de Haroldo de Campos. O episódio já foi pisado e repisado, sendo suficiente dizer aqui que a exclusão de Gregório de Matos e do padre Vieira, no livro de Antonio Candido, não significa uma desqualificação desses autores, e sim a evidência de que o "barroco brasileiro" é um capítulo da literatura colonial portuguesa (logo, preexistente à constituição de nosso sistema literário). Pensar o contrário seria incorrer num dos tantos anacronismos da historiografia brasileira que a "Formação" teve por mérito remediar.
O fato, porém, é que a obra de Antonio Candido tampouco se esgota nessa lição de rigor histórico. Pois há em seus livros algo de irredutível a protocolos de leitura e que revela uma acuidade crítica intransferível.
Nos livros agora reeditados, a atenção aos procedimentos poéticos e ficcionais aparece nos arquiconhecidos (e ainda hoje surpreendentes) textos em que o crítico identificou, no calor da hora, o significado de "novos escritores" como Clarice Lispector e Fernando Sabino; ou ainda na crítica severa, embora respeitosa, de "Marco Zero", de Oswald de Andrade -um ícone vivo quando publicou o ensaio "Estouro e Libertação", reproduzido em "Brigada Ligeira" e retomado em "Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade" ("Vários Escritos"). No pólo oposto, um ensaio como "O Portador" ("Observador Literário") cumpriu o importante papel de resgatar Nietzsche, já em 1946, de interpretações protonazistas.
Talvez o melhor exemplo da intersecção entre o "close reading" de Antonio Candido e sua percepção das dinâmicas sociais vazadas na estrutura ficcional sejam os dois grupos de ensaios incluídos em "O Discurso e A Cidade": no conjunto que dá título ao livro, as análises clássicas de Manuel Antônio de Almeida ("Dialética da Malandragem") e Aluísio Azevedo ("De Cortiço a Cortiço") se conjugam a leituras de Zola e Verga; no grupo intitulado "Quatro Esperas", o crítico analisa relatos (Buzzatti, Kafka, Julian Gracq e um poema de Cavafis) em que as coordenadas históricas e geográficas se diluem no vazio e no ilogismo, sendo porém seu avesso alegórico.
A sutilíssima apreensão do vaivém entre mímese e imaginação reaparece no livro inédito.
No ensaio "O Albatroz e o Chinês", a análise de poemas de Baudelaire, Goethe, Mallarmé e de um autor obscuro como Antônio Feijó leva o crítico a discutir o drama da expressão como uma "dialética do espaço aberto e do espaço fechado", que correspondem ao "desejo de representar o mundo" e à "invenção de um mundo autônomo".
Enfim, num livro que discute as repercussões de uma viagem ao Brasil na obra de Ernst Jünger e as variantes interpretativas da poesia de Villon, há também espaço para outros gêneros que atravessam a obra de Antonio Candido: exercícios de admiração (como no comentário sobre Lúcia Miguel Pereira) e textos em que a reflexão é desencadeada por evocações memorialísticas (como nos ensaios dedicados a Eça de Queirós ou Richard Morse).


Texto Anterior: Cronologia
Próximo Texto: Leia trecho de um ensaio do crítico
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.