São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2008

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O artesão desmedido

Boris Schnaiderman, primeiro professor de russo da USP, fala da Rússia que conheceu na infância e do trabalho de traduzir clássicos como Tolstói e Dostoiévski

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um dos maiores tradutores do país, Boris Schnaiderman completou 90 anos em 2007, assim como a Revolução Russa que o rondou de perto desde muito cedo -ele nasceu na Ucrânia, antiga república soviética, vindo ao Brasil em 1925. Schnaiderman foi o primeiro professor da cadeira de russo na USP, onde é professor emérito, e conseguiu impedir que o curso fosse fechado no contexto do regime militar; chegou a ser preso em sala de aula, como conta na entrevista a seguir.
Pioneiro na tradução direta do original para o português de clássicos como Dostoiévski, Tchékhov e Tolstói, Schnaiderman rememora sua trajetória intelectual e fala do ofício do tradutor, de seus projetos e da polêmica em torno do possível plágio que sua tradução de "Os Irmãos Karamázov" sofreu.

 

FOLHA - Que lembranças são marcantes de sua infância na Ucrânia?
BORIS SCHNAIDERMAN -
Eu nasci em Uman, na Ucrânia, em maio de 1917. Quando eu tinha cerca de um ano, meus pais se transferiram para Odessa, comigo e com minha irmã, um pouco mais velha do que eu. Isso ocorreu por causa dos pogroms na Ucrânia, os massacres de judeus que estavam ocorrendo. Desde os três, quatro anos tenho impressões muito fortes daquele período tão conturbado. A primeira casa de que me lembro ficava em frente ao quartel-general da Tcheka [Comissão Extraordinária de Toda a Rússia para o Combate à Contra-Revolução e a Sabotagem] em Odessa. Era o órgão encarregado da repressão às atividades contra-revolucionárias. E as pessoas passavam por aquela calçada de cabeça baixa, encolhidas, com muito medo. Lembro, por exemplo, de quando estava num jardim-de-infância e fiquei deslocado porque as crianças ficavam em roda cantando a "Internacional" [canção socialista do século 19 usada como hino da União Soviética até 1944], e eu não sabia a letra da "Internacional". E de quando os habitantes da cidade receberam a ordem de hospedar militares do Exército Vermelho; minha mãe recebeu dois oficiais, eu ficava brincando com eles, brincando com o sabre deles, eles me davam o revólver para eu mexer. Estava indo bem quando meus pais resolveram mudar para o Brasil. Pouco antes disso eu tive a sorte de ver, sem saber do que se tratava, a filmagem do "Encouraçado Potemkin".

FOLHA - Por que o Brasil?
SCHNAIDERMAN -
Não havia muita escolha na época, não é que quisessem vir para o Brasil; queriam emigrar, e migrava-se para o país onde se conseguisse visto de entrada, o que não era fácil. Meus pais conseguiram e entraram no Brasil.
Eles faziam questão que eu tivesse uma profissão prática, como se dizia naquele tempo. Tornei-me engenheiro agrônomo, fui agrônomo do Ministério da Agricultura, trabalhei em Barbacena, em Minas Gerais. Mas antes disso houve um fato muito importante: fui para a guerra, no Exército brasileiro.

FOLHA - Que lembranças o sr. destaca desse episódio?
SCHNAIDERMAN -
Eu queria ir para a guerra, achava indispensável todos lutarem contra o nazismo. Nesse período eu tinha muita raiva das posições do governo soviético, por causa do pacto germano-soviético. Fiz curso de sargento do Exército e tinha certeza de que seria convocado, como realmente fui. Passei mais de um ano na Itália, lutei no front da artilharia, que não é tão sacrificado como o da infantaria. Eu conto essa experiência no livro "Guerra em Surdina" [ed. Cosac Naify].
Foi minha única experiência em ficção, embora eu escreva muitos ensaios, e nos ensaios às vezes se intercale algo de experiência pessoal, depoimento. Tive vontade de escrever mais ficção, mas não consegui.

FOLHA - E, ao voltar da guerra, como foi a transição de engenheiro a professor e pesquisador?
SCHNAIDERMAN -
Eu não estava muito satisfeito, fui tendo outras ocupações e acabei professor da USP. O curso de russo da USP foi iniciado em 1960, fui indicado para ser o primeiro professor desse curso.

FOLHA - E pouco depois aconteceu o golpe militar...
SCHNAIDERMAN -
Fiquei muito revoltado com o golpe de 1964, e mais revoltado ainda à medida que os militares iam apertando o parafuso. E protestei; sempre que podia eu protestava. O resultado disso é que sofri conseqüências -não posso dizer que tenha sofrido muito, colegas meus sofreram muito mais-; fui detido umas cinco vezes, cheguei a ser preso em sala de aula: chegaram policiais exigindo documentos dos alunos, eu protestei e fui preso.

FOLHA - Qual foi o impacto desse cenário para o curso de russo?
SCHNAIDERMAN -
O curso sofreu muito, era difícil importar livros da Rússia. Os militares tinham uma atitude dúbia, assim como a União Soviética em relação à ditadura do Brasil. Eles se toleravam, mas por muito tempo todos os livros tinham de passar por uma censura prévia, brutal, de gente ignorante. Mas consegui fazer com que o curso sobrevivesse, o único [de russo] que sobreviveu.
Houve vários cursos fundados pouco antes do golpe de 64, houve um entusiasmo muito grande com as viagens de exploração do espaço pelos russos. Não era tanto pelo comunismo, o Partido Comunista então já estava enfraquecido.

FOLHA - Esse ambiente de repressão teve repercussão negativa para a difusão da cultura russa -por exemplo, atraso na tradução?
SCHNAIDERMAN -
Os clássicos até estão traduzidos com freqüência. Mas a literatura russa é riquíssima, há muita coisa para traduzir. No século 19, Tolstói e Dostoiévski abafaram os demais escritores para o público estrangeiro. A Rússia teve grandes escritores que não estão traduzidos, ou muito pouco, e que são também de um valor universal, como Nicolau Lieskóv. Púchkin também está pouco traduzido -atualmente mais, mas não o suficiente-, e é o iniciador da literatura russa moderna.

FOLHA - O sr. vê um interesse crescente pelo russo no Brasil?
SCHNAIDERMAN -
Existe um interesse grande pelo estudo do russo, basta ver a procura que tem o curso de russo da USP. Há certas tendências no desenvolvimento da Rússia e no do Brasil que têm algumas analogias. Por exemplo, o fato de serem culturas que se desenvolveram fora dos que eram considerados os centros mais importantes. Não se podem fazer transposições muito diretas, mas há uma certa tendência.
Em um conto como "O Crocodilo", de Dostoiévski, temos a impressão de que se trata do Brasil, dos problemas da burocracia e tudo. Há certas situações de semelhança, como a penetração de um capitalismo muito violento, predatório, na Rússia e no Brasil.

FOLHA - Como foi a experiência de traduzir com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos? Como a idéia de "transcriação" o influencia?
SCHNAIDERMAN -
Eu acho que o tradutor realmente tem que estar sempre criando na língua em que escreve. Essa noção de transcriação para mim é fundamental. Eu tinha uma certa desconfiança em relação ao concretismo quando apareceu. Eu tinha uma formação muito tradicional. Mas fiquei muito interessado pela obra do Maiakóvski, eles também, e isso acarretou uma aproximação. Eles me visitaram em 1961, e passei a trabalhar com Haroldo e Augusto. Acabamos amigos.

FOLHA - Quais são os projetos que o sr. tem em vista no momento?
SCHNAIDERMAN -
Acabo de entregar ao editor um livro que fiz com minha mulher, Jerusa Pires Ferreira, sobre o poeta russo-tchuvache moderno Guenádi Aigui [1935 -2006]. Eu era muito ligado a ele; o localizei em Moscou em 1965, nos correspondemos, depois tivemos encontros. O livro é sobre ele e com tradução de textos seus. Estou concluindo também "Tradução - Ato Desmedido".

FOLHA - Por que "ato desmedido"?
SCHNAIDERMAN -
Geralmente se pensa que a tradução é uma profissão como outra qualquer, basta a gente traduzir honestamente, como artesão, o que está no original, em bom português etc. Mas a tradução é uma obra criativa.
É um ato desmedido. Traduzir é uma exorbitância: quem sou eu para traduzir Dostoiévski? E no entanto eu tenho que traduzir Dostoiévski. Tradução tem que ser um ato ousado, corajoso, o tradutor tem de ser artista, tem de fazer violência com a linguagem. É uma profissão a princípio impossível. Mas o homem só cria algo de fato grande quando trabalha no campo do impossível, como formulou Ortega y Gasset.

FOLHA - O sr. tem acompanhado as denúncias, publicadas pela Folha, de plágio por editoras como a Martin Claret, inclusive envolvendo uma antiga tradução sua de "Os Irmãos Karamázov"? O sr. cogita entrar com processo?
SCHNAIDERMAN -
Eu acho lamentável. Acredito que alguns editores farão algo.


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