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O artesão desmedido
Boris Schnaiderman, primeiro professor de russo da USP, fala da Rússia que conheceu na infância e
do trabalho de traduzir clássicos como Tolstói e Dostoiévski
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos maiores tradutores do país,
Boris Schnaiderman completou 90
anos em 2007, assim como a Revolução Russa
que o rondou de perto desde
muito cedo -ele nasceu na
Ucrânia, antiga república soviética, vindo ao Brasil em
1925.
Schnaiderman foi o primeiro
professor da cadeira de russo
na USP, onde é professor emérito, e conseguiu impedir que o
curso fosse fechado no contexto do regime militar; chegou a
ser preso em sala de aula, como
conta na entrevista a seguir.
Pioneiro na tradução direta
do original para o português de
clássicos como Dostoiévski,
Tchékhov e Tolstói, Schnaiderman rememora sua trajetória
intelectual e fala do ofício do
tradutor, de seus projetos e da
polêmica em torno do possível
plágio que sua tradução de "Os
Irmãos Karamázov" sofreu.
FOLHA - Que lembranças são marcantes de sua infância na Ucrânia?
BORIS SCHNAIDERMAN - Eu nasci
em Uman, na Ucrânia, em maio
de 1917. Quando eu tinha cerca
de um ano, meus pais se transferiram para Odessa, comigo e
com minha irmã, um pouco
mais velha do que eu. Isso ocorreu por causa dos pogroms na
Ucrânia, os massacres de judeus que estavam ocorrendo.
Desde os três, quatro anos tenho impressões muito fortes
daquele período tão conturbado. A primeira casa de que me
lembro ficava em frente ao
quartel-general da Tcheka [Comissão Extraordinária de Toda
a Rússia para o Combate à Contra-Revolução e a Sabotagem]
em Odessa. Era o órgão encarregado da repressão às atividades contra-revolucionárias. E
as pessoas passavam por aquela
calçada de cabeça baixa, encolhidas, com muito medo.
Lembro, por exemplo, de
quando estava num jardim-de-infância e fiquei deslocado porque as crianças ficavam em roda cantando a "Internacional"
[canção socialista do século 19
usada como hino da União Soviética até 1944], e eu não sabia
a letra da "Internacional". E de
quando os habitantes da cidade
receberam a ordem de hospedar militares do Exército Vermelho; minha mãe recebeu
dois oficiais, eu ficava brincando com eles, brincando com o
sabre deles, eles me davam o revólver para eu mexer.
Estava indo bem quando
meus pais resolveram mudar
para o Brasil. Pouco antes disso
eu tive a sorte de ver, sem saber
do que se tratava, a filmagem
do "Encouraçado Potemkin".
FOLHA - Por que o Brasil?
SCHNAIDERMAN - Não havia muita escolha na época, não é que
quisessem vir para o Brasil;
queriam emigrar, e migrava-se
para o país onde se conseguisse
visto de entrada, o que não era
fácil. Meus pais conseguiram e
entraram no Brasil.
Eles faziam questão que eu
tivesse uma profissão prática,
como se dizia naquele tempo.
Tornei-me engenheiro agrônomo, fui agrônomo do Ministério da Agricultura, trabalhei em
Barbacena, em Minas Gerais.
Mas antes disso houve um fato
muito importante: fui para a
guerra, no Exército brasileiro.
FOLHA - Que lembranças o sr. destaca desse episódio?
SCHNAIDERMAN - Eu queria ir
para a guerra, achava indispensável todos lutarem contra o
nazismo. Nesse período eu tinha muita raiva das posições do
governo soviético, por causa do
pacto germano-soviético. Fiz
curso de sargento do Exército e
tinha certeza de que seria convocado, como realmente fui.
Passei mais de um ano na Itália, lutei no front da artilharia,
que não é tão sacrificado como
o da infantaria. Eu conto essa
experiência no livro "Guerra
em Surdina" [ed. Cosac Naify].
Foi minha única experiência
em ficção, embora eu escreva
muitos ensaios, e nos ensaios às
vezes se intercale algo de experiência pessoal, depoimento.
Tive vontade de escrever mais
ficção, mas não consegui.
FOLHA - E, ao voltar da guerra, como foi a transição de engenheiro a
professor e pesquisador?
SCHNAIDERMAN - Eu não estava
muito satisfeito, fui tendo outras ocupações e acabei professor da USP. O curso de russo da
USP foi iniciado em 1960, fui
indicado para ser o primeiro
professor desse curso.
FOLHA - E pouco depois aconteceu
o golpe militar...
SCHNAIDERMAN - Fiquei muito
revoltado com o golpe de 1964,
e mais revoltado ainda à medida que os militares iam apertando o parafuso. E protestei;
sempre que podia eu protestava. O resultado disso é que sofri
conseqüências -não posso dizer que tenha sofrido muito,
colegas meus sofreram muito
mais-; fui detido umas cinco
vezes, cheguei a ser preso em
sala de aula: chegaram policiais
exigindo documentos dos alunos, eu protestei e fui preso.
FOLHA - Qual foi o impacto desse
cenário para o curso de russo?
SCHNAIDERMAN - O curso sofreu
muito, era difícil importar livros da Rússia. Os militares tinham uma atitude dúbia, assim
como a União Soviética em relação à ditadura do Brasil. Eles
se toleravam, mas por muito
tempo todos os livros tinham
de passar por uma censura prévia, brutal, de gente ignorante.
Mas consegui fazer com que
o curso sobrevivesse, o único
[de russo] que sobreviveu.
Houve vários cursos fundados
pouco antes do golpe de 64,
houve um entusiasmo muito
grande com as viagens de exploração do espaço pelos russos. Não era tanto pelo comunismo, o Partido Comunista
então já estava enfraquecido.
FOLHA - Esse ambiente de repressão teve repercussão negativa para
a difusão da cultura russa -por
exemplo, atraso na tradução?
SCHNAIDERMAN - Os clássicos
até estão traduzidos com freqüência. Mas a literatura russa
é riquíssima, há muita coisa para traduzir. No século 19, Tolstói e Dostoiévski abafaram os
demais escritores para o público estrangeiro.
A Rússia teve grandes escritores que não estão traduzidos,
ou muito pouco, e que são também de um valor universal, como Nicolau Lieskóv. Púchkin
também está pouco traduzido
-atualmente mais, mas não o
suficiente-, e é o iniciador da
literatura russa moderna.
FOLHA - O sr. vê um interesse crescente pelo russo no Brasil?
SCHNAIDERMAN - Existe um interesse grande pelo estudo do
russo, basta ver a procura que
tem o curso de russo da USP.
Há certas tendências no desenvolvimento da Rússia e no do
Brasil que têm algumas analogias. Por exemplo, o fato de serem culturas que se desenvolveram fora dos que eram considerados os centros mais importantes. Não se podem fazer
transposições muito diretas,
mas há uma certa tendência.
Em um conto como "O Crocodilo", de Dostoiévski, temos a
impressão de que se trata do
Brasil, dos problemas da burocracia e tudo. Há certas situações de semelhança, como a penetração de um capitalismo
muito violento, predatório, na
Rússia e no Brasil.
FOLHA - Como foi a experiência de
traduzir com os irmãos Haroldo e
Augusto de Campos? Como a idéia
de "transcriação" o influencia?
SCHNAIDERMAN - Eu acho que o
tradutor realmente tem que estar sempre criando na língua
em que escreve. Essa noção de
transcriação para mim é fundamental. Eu tinha uma certa
desconfiança em relação ao
concretismo quando apareceu.
Eu tinha uma formação muito
tradicional.
Mas fiquei muito interessado
pela obra do Maiakóvski, eles
também, e isso acarretou uma
aproximação. Eles me visitaram em 1961, e passei a trabalhar com Haroldo e Augusto.
Acabamos amigos.
FOLHA - Quais são os projetos que
o sr. tem em vista no momento?
SCHNAIDERMAN - Acabo de entregar ao editor um livro que fiz
com minha mulher, Jerusa Pires Ferreira, sobre o poeta russo-tchuvache moderno Guenádi Aigui [1935 -2006]. Eu era
muito ligado a ele; o localizei
em Moscou em 1965, nos correspondemos, depois tivemos
encontros. O livro é sobre ele e
com tradução de textos seus.
Estou concluindo também
"Tradução - Ato Desmedido".
FOLHA - Por que "ato desmedido"?
SCHNAIDERMAN - Geralmente se
pensa que a tradução é uma
profissão como outra qualquer,
basta a gente traduzir honestamente, como artesão, o que está no original, em bom português etc. Mas a tradução é uma
obra criativa.
É um ato desmedido. Traduzir é uma exorbitância: quem
sou eu para traduzir Dostoiévski? E no entanto eu tenho que
traduzir Dostoiévski. Tradução
tem que ser um ato ousado, corajoso, o tradutor tem de ser artista, tem de fazer violência
com a linguagem. É uma profissão a princípio impossível. Mas
o homem só cria algo de fato
grande quando trabalha no
campo do impossível, como
formulou Ortega y Gasset.
FOLHA - O sr. tem acompanhado as
denúncias, publicadas pela Folha, de
plágio por editoras como a Martin
Claret, inclusive envolvendo uma
antiga tradução sua de "Os Irmãos
Karamázov"? O sr. cogita entrar
com processo?
SCHNAIDERMAN - Eu acho lamentável. Acredito que alguns
editores farão algo.
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