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O Senhor Dostoiévski
Especialista na obra do escritor, Joseph Frank, professor de Princeton e Stanford, fala a Aurora Bernardini sobre a proximidade entre o Brasil e o universo do autor de "Crime e Castigo"
AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Joseph Frank, professor
de literatura comparada
na Universidade de
Princeton e de línguas e
literaturas eslavas e literatura comparada na Universidade Stanford, é considerado
hoje um dos maiores conhecedores de Fiódor Dostoiévski,
ao estudo de cuja obra dedicou
grande parte de sua vida (o professor nasceu em 1918).
É autor de muitos livros, entre os quais se destacam: "Dostoiévski - As Sementes da Revolta (1821-1849)"; "Dostoiévski - Os Anos de Provação (1850-1859)"; "Dostoiévski - Os Efeitos da Libertação (1860-1865)";
"Dostoiévski - Os Anos Milagrosos (1865-1871)"; "Pelo Prisma Russo - Ensaios sobre Literatura e Cultura", todos publicados pela Edusp, que lança
neste mês o último volume da
série sobre o escritor russo:
"Dostoiévski - O Manto do Profeta (1871-1881)".
Joseph Frank teve a complacência de responder prontamente às perguntas desta entrevista, algumas delas intencionalmente "intrigantes"
-como diz o emérito professor-, uma vez que suas respostas, em certos aspectos, discutem convicções de Mikhail
Bakhtin (segundo o qual, por
exemplo, as idéias e as consciências dos personagens de
Dostoiévski são autônomas,
não podendo ser levadas a um
denominador ideológico comum), de filósofos como Luigi
Pareyson, que está convencido
de que em Dostoiévski a experiência fundamental e decisiva
é a experiência do mal, de especialistas como Evel Gasperini
(Universidade de Pádua), de
acordo com o qual, em sua maturidade, Dostoiévski nunca
teria acreditado na natureza
transcendente de Cristo, dando roupagens cristãs a particulares correntes mais antigas
dos povos eslavos, ou ainda de
Pierre Pascal (Universidade de
Paris), que pergunta: "O paraíso na terra, que Dostoiévski
não define, é cristão?"
Leia abaixo a entrevista:
PERGUNTA - Como o sr. sabe, seus
livros sobre Dostoiévski tiveram
uma recepção muito favorável no
Brasil, apesar de a leitura não ser um
dos entretenimentos preferidos no
país. "As Sementes da Revolta", o
primeiro da série, teve sua edição
esgotada logo depois da publicação.
Agora que a Edusp está publicando
o quinto e último volume, poderia
nos dizer qual é, na sua opinião, o
motivo desse sucesso?
JOSEPH FRANK - Uma resposta
possível sobre o sucesso de
meus livros no Brasil talvez seja a fascinação mundial por
Dostoiévski, cujos romances
parecem ganhar importância
com o passar do tempo. Muitas
vezes me surpreende a extensão em que encontramos referências a seu nome e suas obras
até em jornais.
Os problemas que ele dramatiza, especialmente o choque
entre razão e fé e os dilemas
morais que surgem do desejo
de transformar a sociedade como um todo, emergem de seu
próprio entorno, a Rússia de
meados do século 19. Mas ele tinha certeza do que eram os
problemas do mundo moderno
em geral, e a contínua popularidade de seus livros parece provar que tinha razão.
Outro motivo pelo qual os
leitores brasileiros poderiam se
interessar especialmente por
suas obras é porque se concentram no choque entre a cultura
européia ocidental e o que Dostoiévski considerava valores
originais russos, decorrentes
da tradição nativa. Pelo pouco
que sei sobre a cultura brasileira (infelizmente, pouco demais), me ocorre que talvez sua
própria mistura de culturas dê
aos romances de Dostoiévski
uma ressonância especial em
seu país.
Quanto ao sucesso dos meus
livros, talvez seja conseqüência
de meus esforços para situar
suas obras no contexto ideológico russo a que ele reagia. Eles
contêm uma boa medida da
história cultural russa, que,
além de seus romances, tem
um grande interesse por si só.
PERGUNTA - Seria um dos motivos
o interesse de Dostoiévski pelo lado
mais escuro da alma humana?
FRANK - Não tenho certeza se
concordo que Dostoiévski tem
um interesse especial por retratar "o lado mais escuro da alma humana". Seus personagens podem cometer crimes,
mas nenhum deles é um completo vilão cujos atos não demonstrem nenhum sentimento moral ou que aprecie o mal
pelo próprio mal. Pelo contrário, são invariavelmente consumidos pela culpa e pelo remorso por causa de seus erros, mesmo que tentem justificar-se
com argumentos tirados das
idéias de sua época.
PERGUNTA - O sr. interpreta os "romances polifônicos" de Dostoiévski
como o fim do "paternalismo" na literatura -do lado do narrador-,
como afirma Bakhtin (1895-1975)?
FRANK - Eu admiro os textos de
Bakhtin, mas acho que ele exagera a originalidade formal de
Dostoiévski na história do romance. Por "paternalismo", suponho que esteja me perguntando se as teorias de Bakhtin
marcam o fim do autor onisciente, que ele identifica com
Tolstói. Mas há romancistas
anteriores que também entram
na consciência de seus personagens, como Jane Austen, por
exemplo, e Dostoiévski é muito
menos original nesse sentido
do que Bakhtin o pinta. E também a idéia do "romance polifônico", de Bakhtin, que parece
implicar a ausência de um autor controlador, é paradoxal.
PERGUNTA - Se as diferentes consciências dos diversos personagens
pudessem ser resumidas em um denominador comum, qual seria?
FRANK - Eu diria que um denominador comum dos personagens dos maiores romances de
Dostoiévski é a luta entre uma
ideologia que tenta substituir a
existente, baseada na civilização judaico-cristã, e uma consciência moral moldada nos valores dessa tradição.
PERGUNTA - No prefácio ao segundo livro da série, "Os Anos de Provação (1850 a 1859)", que recebeu o
National Book Critics Award de biografia em 1984, o sr. diz que o método que escolheu foi o de "fundir biografia, crítica literária e história cultural social". Acha que, com essa
abordagem, o que o sr. tão bem descreveu como ideologia de Dostoiévski pode às vezes ser confundido com a interpretação que fez de
alguns personagens?
FRANK - Só posso esperar que
esse tipo de confusão mencionado não seja o caso. Uma boa
parte do gênio de Dostoiévski,
na minha opinião, é sua capacidade de mostrar a fusão entre
ideologia e personagem, a maneira como as idéias que um
personagem aceita influenciam o nível mais profundo de
seus sentimentos e seu comportamento.
Por isso retratei o efeito dessas idéias nos atos dos personagens, mas também tentei esboçar a ideologia da época, independentemente da maneira como Dostoiévski a usou em seus
romances.
PERGUNTA - A diferença que Dostoiévski fazia entre o "socialismo
utópico", que admirava, e o "niilismo russo", que desprezava, aparece
em "Crime e Castigo"?
FRANK - Sim, creio que a diferença entre socialismo utópico
e niilismo russo aparece em
"Crime e Castigo". O personagem Lebeziátnikov, como digo
em meu livro, "profere os clichês socialistas utópicos do início dos anos 1860", e Raskólnikov representa as últimas conseqüências do niilismo russo
como Dostoiévski as concebia.
PERGUNTA - Por que, na sua opinião, Dostoiévski se dedicava muito
mais a pintar o mal do que o bem?
FRANK - O objeto principal de
Dostoiévski, no início dos anos
1860, era combater o que considerava os efeitos desintegradores das doutrinas do niilismo
russo. Para tanto precisava
mostrar todas as suas conseqüências malignas. Em certo
sentido, do seu ponto de vista,
ele mostrava o bem, pois continuava mostrando a luta interna
dos personagens contra suas
próprias idéias.
Também se deve ter em
mente que, na única declaração
de próprio punho que temos
sobre suas convicções religiosas, redigida enquanto ele velava o corpo de sua primeira mulher, escreveu que "amar ao homem como a si mesmo, segundo o mandamento de Cristo, é
impossível. A lei da personalidade na terra não o permite. O
ego atrapalha". Era a luta contra esse ego que constituía "o
bem" para Dostoiévski.
PERGUNTA - Qual era o tipo de cristianismo de Dostoiévski? Qual é o
significado do sofrimento na existência humana, segundo ele?
FRANK - Não tenho certeza de o
que significa perguntar "qual
era o tipo de cristianismo de
Dostoiévski?". Ele se considerava um membro fiel da Igreja
Ortodoxa Russa, cujos dogmas,
deve-se lembrar, são muito
mais fluidos que os da Igreja
Católica Apostólica Romana.
Quanto ao significado do sofrimento na existência humana, é importante lembrar que
Dostoiévski falava em "sofrimento moral", decorrente do
fracasso em cumprir a lei de
Cristo. Não se referia ao "sofrimento" causado pela privação
material. No documento citado, ele escreveu que "o homem
luta na terra por um ideal oposto à sua natureza", e esse ideal
exige que sacrifique seu ego às
pessoas ou a outra pessoa. Quando deixa de fazê-lo,
"sofre e chama isso de pecado". Mas ele acreditava que
esse sofrimento era "compensado pela alegria celestial de cumprir a lei, isto é,
pelo sacrifício".
PERGUNTA - No quinto volume
da série, "O Manto do Profeta",
o sr. descreve o "Diário" de Dostoiévski, entre outros livros. Em
setembro de 1837, Dostoiévski
publicou em seu "Diário" um
texto chamado "Uma Mentira é
Salva por Outra Mentira", em
que acrescentou um episódio
inexistente ao "Dom Quixote",
de Cervantes. Quixote comenta
com Sancho por que criaturas como eles (os chamados "cavalieri
erranti") são capazes de aniquilar exércitos inteiros: é porque a
primeira mentira é salva por
uma segunda mentira. Isso significa que Dostoiévski não estava absolutamente certo de suas
crenças, que, não obstante, tinham de ser mantidas vivas?
FRANK - Esta é a pergunta
mais intrigante desta entrevista, e não há possibilidade
de uma resposta inequívoca.
Dostoiévski acreditava incondicionalmente em suas
próprias idéias?
Tudo o que podemos dizer é que certamente conseguiu apresentar aquilo que
se opunha a elas com uma
força artística impressionante. Mas devemos ter em
mente que o poder da convicção emocional sempre foi
mais importante para Dostoiévski que a razão ou a racionalidade, e talvez estivesse defendendo essas convicções nesse artigo notável.
Certa vez ele disse que, se
alguém o convencesse de
que Cristo era contrário à
"verdade", preferiria ficar
com Cristo a ficar com "a
verdade" (o que supostamente significa a verdade da
razão). Seu artigo foi escrito,
devemos lembrar, quando
os russos sofriam perdas
terríveis durante a Guerra
Russo-Turca.
AURORA F. BERNARDINI leciona teoria literária e literatura comparada na USP.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves .
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