São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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Décio tinha tudo para ser o mais desfavorecido entre seus colegas da "Clima", pois o teatro não parecia capaz de acenar com as promessas do cinema, nem houve um equivalente a Machado que escrevesse para o palco
Resumo do crítico

Arquivo familiar
O crítico Décio de Almeida Prado, que morreu no último dia 4, aos 82 anos, em foto feita pelo cineasta Lima Barreto na década de 40


por Otavio Frias Filho

Ninguém discute que Décio de Almeida Prado (1917-2000) foi o maior crítico teatral brasileiro. Sua atividade, que abarca quase seis décadas, pode ser dividida esquematicamente em duas partes, separadas também pelo prisma cronológico. A primeira, que se estende até o ano decisivo de 1968, é marcada pelas críticas de espetáculos que publicou no jornal "O Estado de S. Paulo". Escritas quase sempre na própria noite de estréia para a edição do dia seguinte, por seu intermédio é possível reconstituir passo a passo a formação do teatro brasileiro contemporâneo, cujos padrões artísticos, cada vez mais exigentes, o crítico ajudava a estabelecer com sobriedade e presciência. A outra parte, grosso modo posterior a 68, é composta pelos ensaios históricos, produto dos longos anos em que o escritor lecionou teatro na Escola de Arte Dramática e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. São ensaios que se concentram na tardia instalação do romantismo em nossos palcos e nas tentativas, sempre frustradas no século passado, de transitar para o realismo. O texto-síntese desses estudos é "História Concisa do Teatro Brasileiro" (1570-1908), publicado pela Edusp no ano passado. Correndo o risco de chover no molhado, vale a pena recordar quais eram as linhas de força do "projeto" de que sua atuação crítica fez parte. Décio de Almeida Prado teve a ventura intelectual de pertencer a um grupo que compartilhava, no âmbito de uma mesma geração, objetivos e métodos bem definidos -e que ainda se deu ao luxo de uma bem-sucedida divisão de trabalho.

Quatro tótens
Da escalação mais ou menos fortuita dos titulares das seções da revista cultural "Clima", criada por esses jovens em 1941, emergiram os quatro tótens da crítica modernista no Brasil: Antonio Candido (literatura), Paulo Emílio Salles Gomes (cinema), Lourival Gomes Machado (artes plásticas) e o nosso autor. Sua mentalidade ainda participava do espírito da geração imediatamente anterior, a que fizera a Semana de Arte Moderna em 22, preocupada em forjar uma consciência estética ao mesmo tempo brasileira e contemporânea. Mas, a esse denominador comum, Décio e seus companheiros vinham acrescentar duas particularidades, ambas inéditas no ambiente local. Alguns dos integrantes da revista "Clima", Candido e Décio entre eles, estavam entre os primeiros formandos da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Instruídos por professores importados da França e da Itália para criar a instituição, seu contato com a cultura européia foi sistemático, em contraste com o diletantismo autodidata da primeira geração modernista. Da formação universitária resultou não apenas o requinte de seus métodos de análise, como o pendor sociológico para considerar as formas de arte como expressão de um conteúdo social que elas ocultam ao mesmo tempo que revelam. Para esses críticos, a transição do social para o estético não se dá de maneira direta ou automática, mas por meio de elaborações intermediárias, verdadeiro tecido da arte, cerne de sua autonomia e objeto da atividade crítica. A outra característica que os distingue, fruto também do treino universitário, é a familiaridade com as correntes de pensamento então em voga na Europa, especialmente o marxismo. A fusão de propósitos artísticos e políticos não era novidade no Brasil, tendo sido a nota marcante da geração de 22. Mas, se antes o anseio de reforma política assumia a feição de um nacionalismo excêntrico ou se limitava a copiar grosseiramente a dicotomia entre comunismo e fascismo, com a geração de Décio ele se viu equipado com um instrumento de análise que se propunha científico, à altura do que havia de melhor nas próprias universidades européias. Candido e Paulo Emílio cedo se converteram ao socialismo, do qual nunca arredaram, e Décio, mantendo-se em posição mais cética, sempre foi uma espécie de social-democrata ou liberal de esquerda.

Realismo crítico
O grupo da revista "Clima" tinha em mente submeter o passado e o presente da produção artística nacional a um escrutínio severo, ainda quando encorajador. O resultado é um duro diagnóstico. Caudatário da cultura dos países centrais, cujos movimentos de idéias são absorvidos aqui com atraso e de modo artificial, apenas por força do prestígio dos modismos europeus, nosso panorama artístico é quase desértico. Era isso o que também achavam os modernistas de 22, mas seu entusiasmo pela liberdade criativa, que supunham capaz de compensar o atraso de séculos de colonização (a "Semana" seria nosso 7 de Setembro cultural), é substituído na geração de Décio por um realismo crítico que às vezes beira a amargura, quando não se esquiva pela ironia. É como se o grupo "Clima", prensado entre os elevados parâmetros de sua formação intelectual e a mediocridade de seu objeto de estudo, fosse acometido de um sentimento que não saberíamos definir exceto por situá-lo em algum lugar entre a sobranceria e o comedimento, entre o decoro (modernista, claro) e a nostalgia pela animação perdida. O resultado foram as manobras críticas, realizadas com elegância e virtuosismo, para tornar mais proeminentes as elevações promissoras que assomavam, aqui e ali, em paisagem tão plana. Ao mesmo tempo, o rarefeito da produção passada era a contrapartida das maravilhas que talvez ainda estivessem por vir, quando as amarras do subdesenvolvimento fossem enfim desatadas pela reforma social: daí o entusiasmo de Antonio Candido, que o teria levado às lágrimas, ao ler as primeiras páginas de "Grande Sertão: Veredas"; daí a confiança de Paulo Emílio no futuro do cinema brasileiro. O problema se colocava de forma mais difícil para Décio de Almeida Prado, dado o panorama desolador da nossa arte teatral. É quase comovedora a resignação com que o autor examina os experimentos -de Gonçalves Dias, de Martins Pena, de José de Alencar- nos quais o teatro brasileiro parecia prestes a se firmar como realização artística, não fossem a indiferença do público (já na época galvanizado pela diversão mais fácil que encontraria, nas comédias musicais de Arthur Azevedo, seu ápice) e a própria debilidade dos autores, consequência da inautenticidade de sua produção.

Modernização acelerada
Décio tinha tudo para ser o mais desfavorecido entre seus colegas, pois o teatro não parecia, quando iniciaram sua carreira de críticos, capaz de acenar com as promessas do cinema, nem houve um equivalente a Machado de Assis que escrevesse para o palco. (Nelson Rodrigues, prejudicado pelos excessos melodramáticos e pela atmosfera de intenso mau gosto, estava longe de ser o consenso em que se converteu hoje em dia.) Entre os dois extremos, porém, o crítico testemunhou e influenciou a época de ouro da nossa arte dramática, seu momento de máxima efervescência cultural e densidade política, um tempo -que vai do surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia até a destruição do Oficina, no final dos 60- em que os palcos pareciam pegar fogo.
Em meio às conflagrações dessa modernização acelerada, Almeida Prado manteve-se em atitude eclética, defendendo menos os pontos de vista desta ou daquela escola do que os da profissionalização e da excelência artística onde quer que vicejassem. Discreto por temperamento (jamais frequentou ensaios e camarins), contido por formação, Décio examinava os espetáculos a partir de um enfoque descritivo e em tom sereno, que nunca resvala seja para a apologia, seja para o libelo.

Seria errado imaginar que, para Décio e seus amigos, o aspecto formal da obra de arte estivesse subordinado ao conteúdo; o foco, para eles, estava na imbricação -dialética, digamos- entre os dois componentes


Terá sido implacável unicamente em relação ao ator Procópio Ferreira, que dominava os palcos na fase pré-TBC e cujo êxito comercial servia de entrave à modernização. Calcadas em textos de sucesso garantido e no magnetismo de seu carisma, as performances de Procópio Ferreira dispensavam ensaios, diretor e todo o arsenal de recursos técnicos aportado pelos encenadores italianos que viriam desempenhar, no teatro, função análoga à dos professores estrangeiros que haviam dado impulso à USP. Estava em curso um processo de "substituição de importações" também na esfera artístico-intelectual, em tudo semelhante àquele que se verificava na economia. Boa parte da reputação de nosso crítico proveio da forma certeira com que soube identificar as inovações interessantes que surgiam, a exemplo da dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri ou do desempenho de Cacilda Becker, considerada a maior atriz brasileira, cuja carreira ele estimulou desde a mais remota origem. As tendências mais promissoras mereceram seu apoio decidido: a incorporação de conflitos sociais ao domínio do palco, o advento de assuntos ligados à sexualidade, a montagem de autores "problemáticos" tais como Brecht e Tennessee Williams, o apreço pelo diálogo coloquial e pelo experimentalismo das formas -ao menos enquanto este último não se dissolveu em delírio coletivo, no estilo das atuações do Living Theatre, que deixou um rastro de imitadores após sua conturbada passagem pelo país.

Os dois Andrade
Para iluminar esse ponto, vale lembrar que a primeira geração do modernismo paulista não demorou a se cindir em duas vertentes, ligadas respectivamente às figuras dos dois Andrade, Mário e Oswald, numa separação que o rompimento pessoal entre ambos veio reforçar. É evidente que essas atribuições são duvidosas, não faltando, na biografia e na obra desses escritores, elementos capazes de desdizê-las, mas a tradição consagrou a idéia que associa uma corrente mais conteudística, sociológica e "séria" ao autor de "Macunaíma", cabendo a Oswald de Andrade a inspiração do que seria o ramo formalista, radical e irônico do movimento. Mário de Andrade, autor de pesquisas importantes em etnografia, é julgado uma espécie de precursor da USP, sendo natural que se tomassem os jovens do grupo "Clima" como seus discípulos, ainda que a convivência deles tenha sido maior com Oswald, que os batizou inesquecivelmente, entretanto, de "chato-boys". Duas décadas mais tarde, o auge da experimentação formal no teatro, do qual Décio manteve desgostosa distância pouco antes de se afastar em definitivo da crítica jornalística, foi conduzido por José Celso e seu Teatro Oficina sob invocação do exemplo deixado por Oswald de Andrade. Assim, em meio a incidentes pessoais e caminhos cruzados, é possível discernir duas linhas no modernismo paulista, que evoluem em paralelo ao longo de pelo menos 60 anos, num contraponto cujos ecos ressoam ainda hoje. Seria errado, porém, imaginar que para Décio e seus amigos o aspecto formal da obra de arte estivesse subordinado ao conteúdo. O foco, para eles, estava na imbricação -dialética, digamos- entre os dois componentes.

Modéstia excessiva
Que sirva de exemplo dessa atitude o apurado nível estilístico de sua prosa, outro traço em comum com os demais integrantes do grupo. Herança, talvez, da influência francesa sob a qual sua geração foi a última a se formar no Brasil, a linguagem do crítico é cristalina, equilibrada e elegante, exata sem incidir em preciosismos, despojada sem que nem por isso se reduzam sua capacidade expressiva e suas possibilidades plásticas.
Do confronto entre a superioridade da cultura européia que esses críticos, mercê do estudo com os mestres estrangeiros, conheciam por assim dizer de dentro e a relativa fraqueza da tradição nativa resultou uma prosa desambiciosa nas aparências, tingida de uma modéstia quem sabe excessiva, se levarmos em conta as dimensões da tarefa a que eles se propuseram -o estabelecimento de uma crítica moderna entre nós- e o perfeccionismo com que dela se desincumbiram.
Para quem não se interessa muito por teatro, recomenda-se a leitura de seu livro "Seres, Coisas, Lugares" (Companhia das Letras, 1997). Tecendo o caminho entre reminiscências, falando de suas "verdadeiras" paixões, a ópera e o futebol, Décio se concede nesses ensaios deliciosos uma liberdade que não se permitia nos estudos históricos. São os textos que mais aproximam o leitor de seu admirável poder de observação e memória, de seu humor amistoso, de sua aptidão para "contar casos", de sua personalidade encantadora.


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