São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000 |
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Décio tinha tudo para ser o mais desfavorecido entre seus colegas da "Clima", pois o teatro não parecia capaz de acenar com as promessas do cinema, nem houve um equivalente a Machado que escrevesse para o palco Resumo do crítico
por Otavio Frias Filho
Ninguém discute que Décio de Almeida Prado
(1917-2000) foi o maior crítico teatral brasileiro. Sua atividade, que abarca quase seis décadas, pode ser dividida esquematicamente em
duas partes, separadas também pelo prisma cronológico. A primeira, que se estende até o ano decisivo de
1968, é marcada pelas críticas de espetáculos que publicou no jornal "O Estado de S. Paulo". Escritas quase
sempre na própria noite de estréia para a edição do dia
seguinte, por seu intermédio é possível reconstituir passo a passo a formação do teatro brasileiro contemporâneo, cujos padrões artísticos, cada vez mais exigentes, o
crítico ajudava a estabelecer com sobriedade e presciência.
A outra parte, grosso modo posterior a 68, é composta
pelos ensaios históricos, produto dos longos anos em
que o escritor lecionou teatro na Escola de Arte Dramática e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
USP. São ensaios que se concentram na tardia instalação do romantismo em nossos palcos e nas tentativas,
sempre frustradas no século passado, de transitar para
o realismo. O texto-síntese desses estudos é "História
Concisa do Teatro Brasileiro" (1570-1908), publicado
pela Edusp no ano passado.
Correndo o risco de chover no molhado, vale a pena
recordar quais eram as linhas de força do "projeto" de
que sua atuação crítica fez parte. Décio de Almeida Prado teve a ventura intelectual de pertencer a um grupo
que compartilhava, no âmbito de uma mesma geração,
objetivos e métodos bem definidos -e que ainda se
deu ao luxo de uma bem-sucedida divisão de trabalho.
Terá sido implacável unicamente em relação ao ator Procópio Ferreira, que dominava os palcos na fase pré-TBC e cujo êxito comercial servia de entrave à modernização. Calcadas em textos de sucesso garantido e no magnetismo de seu carisma, as performances de Procópio Ferreira dispensavam ensaios, diretor e todo o arsenal de recursos técnicos aportado pelos encenadores italianos que viriam desempenhar, no teatro, função análoga à dos professores estrangeiros que haviam dado impulso à USP. Estava em curso um processo de "substituição de importações" também na esfera artístico-intelectual, em tudo semelhante àquele que se verificava na economia. Boa parte da reputação de nosso crítico proveio da forma certeira com que soube identificar as inovações interessantes que surgiam, a exemplo da dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri ou do desempenho de Cacilda Becker, considerada a maior atriz brasileira, cuja carreira ele estimulou desde a mais remota origem. As tendências mais promissoras mereceram seu apoio decidido: a incorporação de conflitos sociais ao domínio do palco, o advento de assuntos ligados à sexualidade, a montagem de autores "problemáticos" tais como Brecht e Tennessee Williams, o apreço pelo diálogo coloquial e pelo experimentalismo das formas -ao menos enquanto este último não se dissolveu em delírio coletivo, no estilo das atuações do Living Theatre, que deixou um rastro de imitadores após sua conturbada passagem pelo país. Os dois Andrade Para iluminar esse ponto, vale lembrar que a primeira geração do modernismo paulista não demorou a se cindir em duas vertentes, ligadas respectivamente às figuras dos dois Andrade, Mário e Oswald, numa separação que o rompimento pessoal entre ambos veio reforçar. É evidente que essas atribuições são duvidosas, não faltando, na biografia e na obra desses escritores, elementos capazes de desdizê-las, mas a tradição consagrou a idéia que associa uma corrente mais conteudística, sociológica e "séria" ao autor de "Macunaíma", cabendo a Oswald de Andrade a inspiração do que seria o ramo formalista, radical e irônico do movimento. Mário de Andrade, autor de pesquisas importantes em etnografia, é julgado uma espécie de precursor da USP, sendo natural que se tomassem os jovens do grupo "Clima" como seus discípulos, ainda que a convivência deles tenha sido maior com Oswald, que os batizou inesquecivelmente, entretanto, de "chato-boys". Duas décadas mais tarde, o auge da experimentação formal no teatro, do qual Décio manteve desgostosa distância pouco antes de se afastar em definitivo da crítica jornalística, foi conduzido por José Celso e seu Teatro Oficina sob invocação do exemplo deixado por Oswald de Andrade. Assim, em meio a incidentes pessoais e caminhos cruzados, é possível discernir duas linhas no modernismo paulista, que evoluem em paralelo ao longo de pelo menos 60 anos, num contraponto cujos ecos ressoam ainda hoje. Seria errado, porém, imaginar que para Décio e seus amigos o aspecto formal da obra de arte estivesse subordinado ao conteúdo. O foco, para eles, estava na imbricação -dialética, digamos- entre os dois componentes. Modéstia excessiva Que sirva de exemplo dessa atitude o apurado nível estilístico de sua prosa, outro traço em comum com os demais integrantes do grupo. Herança, talvez, da influência francesa sob a qual sua geração foi a última a se formar no Brasil, a linguagem do crítico é cristalina, equilibrada e elegante, exata sem incidir em preciosismos, despojada sem que nem por isso se reduzam sua capacidade expressiva e suas possibilidades plásticas. Do confronto entre a superioridade da cultura européia que esses críticos, mercê do estudo com os mestres estrangeiros, conheciam por assim dizer de dentro e a relativa fraqueza da tradição nativa resultou uma prosa desambiciosa nas aparências, tingida de uma modéstia quem sabe excessiva, se levarmos em conta as dimensões da tarefa a que eles se propuseram -o estabelecimento de uma crítica moderna entre nós- e o perfeccionismo com que dela se desincumbiram. Para quem não se interessa muito por teatro, recomenda-se a leitura de seu livro "Seres, Coisas, Lugares" (Companhia das Letras, 1997). Tecendo o caminho entre reminiscências, falando de suas "verdadeiras" paixões, a ópera e o futebol, Décio se concede nesses ensaios deliciosos uma liberdade que não se permitia nos estudos históricos. São os textos que mais aproximam o leitor de seu admirável poder de observação e memória, de seu humor amistoso, de sua aptidão para "contar casos", de sua personalidade encantadora. Texto Anterior: + 3 questões Sobre Décio de Almeida Prado Próximo Texto: As obras Índice |
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