São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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Ao sugerir que os dicionários atuais são "indecentes", Cláudio Weber Abramo desrespeita o trabalho de eminentes conhecedores da língua portuguesa
O horror da crítica e o valor dos dicionários

Marina Baird Ferreira
Margarida dos Anjos

especial para a Folha

Em recente artigo publicado no Mais! (23/1/2000), o sr. Cláudio Weber Abramo teceu comentários a respeito de dois dicionários atualmente disponíveis no Brasil: o "Aurélio" e o "Michaelis" (versão eletrônica). A forma e o conteúdo do referido artigo são tais que, a nosso ver, não ajudam a elevar o nível do necessário e saudável debate intelectual e induzem a uma série de equívocos a respeito de noções básicas de lexicografia e dos critérios que norteiam a confecção dos dicionários. Como observação geral, registre-se apenas o sofisma em que se baseia toda sua afetação crítica. Ele atribui aos dicionários existentes ares de "pedra filosofal" e "tábua de lei". É uma concepção inteiramente errônea do espírito de um dicionário. Um dicionário não impõe usos; apenas os registra, filtrando-os segundo critérios que respeitem a "norma culta".

Evolução da língua
Os dicionários não pretendem ser seguidos às cegas; eles é que seguem (com critérios e olhos bem abertos) a evolução da língua. O autor, os lexicógrafos continuadores de sua obra e os editores do "Aurélio" não pretendem ter realizado um dicionário que esteja acima de críticas, mas que seja útil e perfectível em todos os atributos que busca preencher: abrangência, precisão, acuidade, clareza, concisão etc., aliadas a fatores como tamanho (e, portanto, preço), praticidade e as reais necessidades do público a que se destina. Ao sugerir, por vias tortuosas, que os dicionários atuais são "indecentes", o sr. Cláudio W. Abramo desrespeita a obra e o trabalho acumulado de eminentes conhecedores da língua, como Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, que dedicou toda uma vida ao estudo do nosso idioma e que foi, na opinião insuspeita de Antônio Houaiss, "a figura mais importante da lexicografia da língua portuguesa nos últimos 150 anos". Mais grave ainda, a agressividade delirante do articulista, aliada à falta de embasamento técnico que demonstra, é um insulto à seriedade inerente ao trabalho dos lexicógrafos mortos ou vivos. Sendo assim, tratando apenas do inevitável e em respeito aos leitores, ignorando os insultos e leviandades do articulista, vimos apresentar algumas considerações pontuais, para que a desinformação não predomine nesse campo. A seguir, comentamos algumas críticas descabidas que se desfiam ao longo do texto. A afirmação de que o "Aurélio" não traz sinônimos é inteiramente despropositada; não só os traz como os alinha dentro da acepção correspondente e não misturados, de cambulhada, ao final do verbete. A informação editorial da soma de verbetes, locuções e definições no "Aurélio" nada tem de "publicidade propositalmente dúbia". A quantidade de verbetes não é, por si, parâmetro para avaliar o equilíbrio e a abrangência de um dicionário. Em vez de multiplicá-los a esmo, o "Aurélio" prefere ampliar as informações neles contidas. É um modo legítimo de aproveitar o espaço gráfico e de atender às necessidades do leitor. Nem sempre os dicionários mais copiosos contêm maior número de informações, ou informações mais relevantes. O registro de palavras dos Palops (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), ou vocábulos usados por falantes lusitanos, não obedece a propósitos mercadológicos, como afirma o articulista, e sim a critérios lexicográficos. Quando o "Aurélio" consigna, por exemplo, as formas "fenómeno" (lusitanismo) e "fenômeno", não está recorrendo a nenhum artifício, e sim respeitando o mesmo critério pelo qual averba variantes prosódicas distinguidas quanto à abertura da vogal tônica: é o caso, por exemplo, de "ipé" e "ipê", "afoxé" e "afoxê", "sapé" e "sapê". A inclusão de palavras de informática não é "inconsistente e desorganizada". Ela é feita ponderadamente, caso a caso, levando-se em conta diversos aspectos de relevância variável: difusão dos conceitos; campo de uso (programação, uso de computadores pessoais e de redes de computadores); existência de correspondentes em português etc. (por exemplo, uma palavra como "downgrade", de emprego restritíssimo em informática, não deve ser incluída só por ser o simétrico de "upgrade", muito mais usada).

Ausências conspícuas
Os reparos semânticos feitos pelo articulista a respeito de palavras como "provável" e "evidência" não levam em conta nem a etimologia das palavras nem os princípios de estruturação de verbetes. Quanto às "ausências conspícuas", algumas das palavras sugeridas foram devidamente anotadas para, talvez, futura inclusão. Grande parte da lista arrolada pelo articulista, no entanto, é formada por palavras cuja inclusão, em um dicionário de volume único, tem interesse muito restrito (veja-se, a esse respeito, o que se diz no item 2 sobre a multiplicação não criteriosa de verbetes). Palavras por prefixação em "des-", "in-", "ir-", "hiper-", "hipo-" etc. figuram no "Aurélio" apenas quando muito usadas ou quando empregadas no texto do dicionário ou por autores consagrados. A averbação de cognatos é analogamente restringida, nesses casos.
No quadro "É assim que se escreve", esclarecemos as questões ortográficas mencionadas no artigo. E muitas outras considerações caberiam, que apontassem a imprecisão dos argumentos levantados e a incorreção dos fatos. Porém, uma vez que a exiguidade do espaço impede que se contestem todas as afirmações errôneas e grosseiras que foram feitas, colocamo-nos à disposição dos leitores desta Folha para esclarecer sobre os demais pontos, desde que num debate saudável sobre língua portuguesa e critérios para formação de um dicionário.


Marina Baird Ferreira e Margarida dos Anjos são coordenadoras do "Dicionário Aurélio Século 21" (Ed. Nova Fronteira).


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