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Ao sugerir que os dicionários atuais são "indecentes", Cláudio Weber Abramo desrespeita o trabalho de eminentes conhecedores da língua portuguesa
O horror da crítica e o valor dos dicionários
Marina Baird Ferreira
Margarida dos Anjos
especial para a Folha
Em recente artigo publicado no Mais!
(23/1/2000), o sr. Cláudio Weber
Abramo teceu comentários a respeito de
dois dicionários atualmente disponíveis
no Brasil: o "Aurélio" e o "Michaelis"
(versão eletrônica).
A forma e o conteúdo do referido artigo são tais que, a nosso ver, não ajudam a
elevar o nível do necessário e saudável
debate intelectual e induzem a uma série
de equívocos a respeito de noções básicas de lexicografia e dos critérios que
norteiam a confecção dos dicionários.
Como observação geral, registre-se
apenas o sofisma em que se baseia toda
sua afetação crítica. Ele atribui aos dicionários existentes ares de "pedra filosofal"
e "tábua de lei". É uma concepção inteiramente errônea do espírito de um dicionário. Um dicionário não impõe usos;
apenas os registra, filtrando-os segundo
critérios que respeitem a "norma culta".
Evolução da língua
Os dicionários
não pretendem ser seguidos às cegas;
eles é que seguem (com critérios e olhos
bem abertos) a evolução da língua. O autor, os lexicógrafos continuadores de sua
obra e os editores do "Aurélio" não pretendem ter realizado um dicionário que
esteja acima de críticas, mas que seja útil
e perfectível em todos os atributos que
busca preencher: abrangência, precisão,
acuidade, clareza, concisão etc., aliadas a
fatores como tamanho (e, portanto, preço), praticidade e as reais necessidades
do público a que se destina.
Ao sugerir, por vias tortuosas, que os
dicionários atuais são "indecentes", o sr.
Cláudio W. Abramo desrespeita a obra e
o trabalho acumulado de eminentes conhecedores da língua, como Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, que dedicou toda uma vida ao estudo do nosso
idioma e que foi, na opinião insuspeita
de Antônio Houaiss, "a figura mais importante da lexicografia da língua portuguesa nos últimos 150 anos". Mais grave
ainda, a agressividade delirante do articulista, aliada à falta de embasamento
técnico que demonstra, é um insulto à
seriedade inerente ao trabalho dos lexicógrafos mortos ou vivos.
Sendo assim, tratando apenas do inevitável e em respeito aos leitores, ignorando os insultos e leviandades do articulista, vimos apresentar algumas considerações pontuais, para que a desinformação
não predomine nesse campo. A seguir,
comentamos algumas críticas descabidas que se desfiam ao longo do texto.
A afirmação de que o "Aurélio" não
traz sinônimos é inteiramente despropositada; não só os traz como os alinha
dentro da acepção correspondente e não
misturados, de cambulhada, ao final do
verbete. A informação editorial da soma
de verbetes, locuções e definições no
"Aurélio" nada tem de "publicidade propositalmente dúbia". A quantidade de
verbetes não é, por si, parâmetro para
avaliar o equilíbrio e a abrangência de
um dicionário. Em vez de multiplicá-los
a esmo, o "Aurélio" prefere ampliar as
informações neles contidas. É um modo
legítimo de aproveitar o espaço gráfico e
de atender às necessidades do leitor.
Nem sempre os dicionários mais copiosos contêm maior número de informações, ou informações mais relevantes.
O registro de palavras dos Palops (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), ou vocábulos usados por falantes
lusitanos, não obedece a propósitos mercadológicos, como afirma o articulista, e
sim a critérios lexicográficos. Quando o
"Aurélio" consigna, por exemplo, as formas "fenómeno" (lusitanismo) e "fenômeno", não está recorrendo a nenhum
artifício, e sim respeitando o mesmo critério pelo qual averba variantes prosódicas distinguidas quanto à abertura da vogal tônica: é o caso, por exemplo, de
"ipé" e "ipê", "afoxé" e "afoxê", "sapé" e
"sapê".
A inclusão de palavras de informática
não é "inconsistente e desorganizada".
Ela é feita ponderadamente, caso a caso,
levando-se em conta diversos aspectos
de relevância variável: difusão dos conceitos; campo de uso (programação, uso
de computadores pessoais e de redes de
computadores); existência de correspondentes em português etc. (por exemplo, uma palavra como "downgrade", de
emprego restritíssimo em informática,
não deve ser incluída só por ser o simétrico de "upgrade", muito mais usada).
Ausências conspícuas
Os reparos
semânticos feitos pelo articulista a respeito de palavras como "provável" e
"evidência" não levam em conta nem a
etimologia das palavras nem os princípios de estruturação de verbetes. Quanto
às "ausências conspícuas", algumas das
palavras sugeridas foram devidamente
anotadas para, talvez, futura inclusão.
Grande parte da lista arrolada pelo articulista, no entanto, é formada por palavras cuja inclusão, em um dicionário de
volume único, tem interesse muito restrito (veja-se, a esse respeito, o que se diz
no item 2 sobre a multiplicação não criteriosa de verbetes). Palavras por prefixação em "des-", "in-", "ir-", "hiper-",
"hipo-" etc. figuram no "Aurélio" apenas
quando muito usadas ou quando empregadas no texto do dicionário ou por
autores consagrados. A averbação de
cognatos é analogamente restringida,
nesses casos.
No quadro "É assim que se escreve",
esclarecemos as questões ortográficas
mencionadas no artigo. E muitas outras
considerações caberiam, que apontassem a imprecisão dos argumentos levantados e a incorreção dos fatos. Porém,
uma vez que a exiguidade do espaço impede que se contestem todas as afirmações errôneas e grosseiras que foram feitas, colocamo-nos à disposição dos leitores desta Folha para esclarecer sobre os
demais pontos, desde que num debate
saudável sobre língua portuguesa e critérios para formação de um dicionário.
Marina Baird Ferreira e Margarida dos Anjos são
coordenadoras do "Dicionário Aurélio Século 21" (Ed.
Nova Fronteira).
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