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Ponto de fuga
To pulp or not to pulp
Jorge Coli
especial para a Folha
A moça foi estuprada. Cortaram-lhe as mãos e a língua. Seu pai também foi obrigado a decepar, ele próprio, uma de suas mãos, que a jovem
tem de carregar entre os dentes. Cena do pior filme B, sanguinolento?
Lixo "gore"? Não, uma passagem de
"Titus Andronicus", terrível peça de
William Shakespeare. Há outras do
mesmo teor nessa tragédia em que
os corpos se espedaçam, em que a
rainha Tamora devora uma torta recheada com a carne de seus dois filhos (como é que a última Bienal de
São Paulo, antropofágica, não pensou numa montagem desse texto?).
Os excessos violentos são contados
em versos cujas palavras são jóias
verdadeiras, elevando os personagens.
Julie Taymor decidiu filmá-la. É
melhor não se conter: miss Taymor
é um gênio. Era uma diretora de teatro de vanguarda não muito conhecida até que Disney decidiu convidá-la para montar "The Lion King", o
único musical da Broadway que, de
fato, vale a pena ver. "Titus", o filme,
veio depois. A crítica fez boca fina,
lembrando as referências a Fellini,
Pasolini ou Ken Russell, evidentes,
abundantes. Tomá-las como imitação fácil é injusto, porém. Julie Taymor as renova, numa criação própria. Distingue-se do sentimentalismo esmerado, tão comum nas chamadas produções "independentes".
Consegue uma junção assombrosa
entre cinema e teatro, entre humor
irônico e profunda nobreza, voltando-se para o onirismo histórico e visual dos anos 70, não muito na moda hoje em dia.
Urro - "The Lion King" começa
por uma apoteose, acumulando invenções que não param, concentradas sobretudo na primeira hora.
Demonstra um sentido do espetáculo que nada tem do ilusionismo
habitual nos musicais do gênero. O
espaço simbólico se faz verídico. Os
bichos apresentam uma dualidade,
humana e animal, construída com
acessórios delirantes, muitos derivados das formas teatrais da Indonésia. O enredo não vale nada, as músicas de Elton John são meio chochas.
Toda energia vem de Julie Taymor,
de sua África irreal povoada por feras espantosas.
Palmadas - No começo, nada parece engrenar de verdade. O tom fica
um pouco abaixo do esperado. Há
também a inevitável comparação
com Kathryn Grayson ou, ainda
mais, com Howard Keel, cuja voz
encorpada se exprime entre a elegância e o deboche no filme insubstituível que Georges Stevens realizou
em 1953. Mas "Kiss Me, Kate" é uma
tal obra-prima, e o elenco da atual
produção em NY, tão eficaz, que logo a platéia é seduzida.
A história, mistura maluca de teatro no teatro e gângsteres que cantam "Brush up Your Shakespeare",
sugere um ponto de partida para os
"Tiros na Broadway", de Woody
Allen. Ela é excelente, a história.
Conta uma certa montagem de "A
Megera Domada", em forma de musical. Passa, sem cessar, dos bastidores para a cena, a vida "real" dos atores se misturando com a ação "fictícia".
O motor é a música de Cole Porter,
brotando, natural e leve: Porter foi o
Mozart da Broadway. Diante dos espetáculos que valem pelos milhões
da produção, em que o público vai
ver um lustre se esborrachar, a retomada de "Kiss Me, Kate" traz de volta um teatro centrado apenas em
torno do talento.
Ruas - Os ingleses falam a língua
de Shakespeare e os americanos, a
do Pato Donald. Sons nasais, agudos, desossados; onde há multidão
indo e vindo, nos metrôs, nos supermercados, ouve-se sempre:
"esnsnsnskkks-uuuunnnnnzzz-iiiiinnnn", ou seja "excuse me", com
licença. Porém, do mesmo modo
que a forma se perdeu, o significado
também se foi. Quer dizer apenas:
"Saia da frente, seu palerma, não está vendo que eu quero passar?". Deixou de ser uma palavra para virar
uma buzina.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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