São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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Ponto de fuga

To pulp or not to pulp

Jorge Coli
especial para a Folha

A moça foi estuprada. Cortaram-lhe as mãos e a língua. Seu pai também foi obrigado a decepar, ele próprio, uma de suas mãos, que a jovem tem de carregar entre os dentes. Cena do pior filme B, sanguinolento? Lixo "gore"? Não, uma passagem de "Titus Andronicus", terrível peça de William Shakespeare. Há outras do mesmo teor nessa tragédia em que os corpos se espedaçam, em que a rainha Tamora devora uma torta recheada com a carne de seus dois filhos (como é que a última Bienal de São Paulo, antropofágica, não pensou numa montagem desse texto?). Os excessos violentos são contados em versos cujas palavras são jóias verdadeiras, elevando os personagens.
Julie Taymor decidiu filmá-la. É melhor não se conter: miss Taymor é um gênio. Era uma diretora de teatro de vanguarda não muito conhecida até que Disney decidiu convidá-la para montar "The Lion King", o único musical da Broadway que, de fato, vale a pena ver. "Titus", o filme, veio depois. A crítica fez boca fina, lembrando as referências a Fellini, Pasolini ou Ken Russell, evidentes, abundantes. Tomá-las como imitação fácil é injusto, porém. Julie Taymor as renova, numa criação própria. Distingue-se do sentimentalismo esmerado, tão comum nas chamadas produções "independentes". Consegue uma junção assombrosa entre cinema e teatro, entre humor irônico e profunda nobreza, voltando-se para o onirismo histórico e visual dos anos 70, não muito na moda hoje em dia.
Urro - "The Lion King" começa por uma apoteose, acumulando invenções que não param, concentradas sobretudo na primeira hora.
Demonstra um sentido do espetáculo que nada tem do ilusionismo habitual nos musicais do gênero. O espaço simbólico se faz verídico. Os bichos apresentam uma dualidade, humana e animal, construída com acessórios delirantes, muitos derivados das formas teatrais da Indonésia. O enredo não vale nada, as músicas de Elton John são meio chochas. Toda energia vem de Julie Taymor, de sua África irreal povoada por feras espantosas.
Palmadas - No começo, nada parece engrenar de verdade. O tom fica um pouco abaixo do esperado. Há também a inevitável comparação com Kathryn Grayson ou, ainda mais, com Howard Keel, cuja voz encorpada se exprime entre a elegância e o deboche no filme insubstituível que Georges Stevens realizou em 1953. Mas "Kiss Me, Kate" é uma tal obra-prima, e o elenco da atual produção em NY, tão eficaz, que logo a platéia é seduzida.
A história, mistura maluca de teatro no teatro e gângsteres que cantam "Brush up Your Shakespeare", sugere um ponto de partida para os "Tiros na Broadway", de Woody Allen. Ela é excelente, a história. Conta uma certa montagem de "A Megera Domada", em forma de musical. Passa, sem cessar, dos bastidores para a cena, a vida "real" dos atores se misturando com a ação "fictícia".
O motor é a música de Cole Porter, brotando, natural e leve: Porter foi o Mozart da Broadway. Diante dos espetáculos que valem pelos milhões da produção, em que o público vai ver um lustre se esborrachar, a retomada de "Kiss Me, Kate" traz de volta um teatro centrado apenas em torno do talento.
Ruas - Os ingleses falam a língua de Shakespeare e os americanos, a do Pato Donald. Sons nasais, agudos, desossados; onde há multidão indo e vindo, nos metrôs, nos supermercados, ouve-se sempre: "esnsnsnskkks-uuuunnnnnzzz-iiiiinnnn", ou seja "excuse me", com licença. Porém, do mesmo modo que a forma se perdeu, o significado também se foi. Quer dizer apenas: "Saia da frente, seu palerma, não está vendo que eu quero passar?". Deixou de ser uma palavra para virar uma buzina.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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