São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2000


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O ensaísta Edward Said escreve sobre os desafios atuais colocados aos palestinos para que possam exprimir sua identidade como cidadãos de um país livre
Um lugar dentro da história contemporânea

Edward Said
especial para a Folha

Uma das frases mais citadas de John F. Kennedy é "ich bin ein Berliner", dita por ocasião de sua visita, em 1961, à cidade recém-dividida pelo muro. "Eu sou um berlinense", afirmou para a tumultuosa aclamação do público presente e de todo o mundo. Foi um gesto de solidariedade e talvez também de coragem um homem tão distante das dificuldades de viver numa cidade torturada afirmar que compartilhava a existência dolorosa de seus cidadãos. Ninguém pôs em dúvida seu direito de fazê-lo, nem disse que ele não tinha vivido o suficiente na Alemanha. Do mesmo modo, quando os estudantes rebeldes da Paris de 1968 proclamaram aos gritos "nous sommes tous des juifs" (todos nós somos judeus) para expressar sua solidariedade aos judeus que haviam sido deportados e exterminados pelos nazistas, ninguém, que eu me lembre, negou-lhes o direito de fazê-lo, nem os censurou por tomarem uma identidade alheia com o propósito moral de reconhecer e assumir os sofrimentos de outros seres humanos. O mesmo ocorreu com muitas pessoas de todo o mundo, inclusive dos países árabes, cujos sentimentos de compaixão e solidariedade moral para com as vítimas palestinas de Israel fizeram-nos optar por ser efetivamente palestinos. O falecido Eqbal Ahmad, indiano de nascimento, paquistanês de nacionalidade, sempre se referia a si mesmo como um de "nós", palestino por escolha e não por nascimento. E, no entanto, o discurso público sobre o Oriente Médio tornou-se tão distorcido e repreensível, tão influenciado pelos sionistas ocidentais, que o simples fato de reconhecer-se como palestino de nascimento traz, há tempos, o estigma da delinquência e até da criminalidade.

Camisetas da Intifada
No meu caso particular, recordo perfeitamente que, logo que obtive meu primeiro título na universidade e quando começava a preparar meu doutorado em letras, se me perguntavam minha nacionalidade, eu me identificava, de modo bem consciente, como árabe. Ou seja, evitava propositalmente o problema de explicar que na realidade eu era palestino, de Jerusalém, com tudo o que isso acarretava.
Deve-se reconhecer o mérito perene da OLP, entre 1968 e 1982, cujo surgimento permitiu a todos os palestinos identificar-se como pertencentes a um povo, na realidade a uma nação, ainda que no exílio e despossuída. E durante a Intifada esse orgulho de pertencer a uma identidade que lutava corajosamente por sua sobrevivência, fazendo frente aos esforços por extingui-la ou negá-la, estendeu-se por toda a parte.
Em Praga, a resistência ao governo de partido único era expressa com as camisetas da Intifada vestidas pelos jovens manifestantes. O mesmo aconteceu na África do Sul durante os últimos dias do apartheid, em 90-91. Ser palestino e rebelar-se contra os soldados de ocupação israelenses era, de fato, dar maior profundidade e significado à luta contra a discriminação racial. Por certo, uma das ironias da história é o fato de que o maior inimigo histórico do povo palestino -o movimento sionista e seus ideólogos mais militantes- tenha extraído sua força da mesma idéia: que é possível a cada judeu assumir energicamente sua identidade judaica, em vez de submeter-se em silêncio à assimilação como cidadão polonês, russo, norte-americano ou britânico.
A maioria das histórias do sionismo mostra que o maior problema dos organizadores do movimento era convencer os judeus da diáspora de que sua identidade como judeus de nascimento não bastava: para que suas origens natais se realizassem, tinham também de assumir a identidade nacional de judeus que "regressam" ao Sião. O mesmo ocorreu recentemente com os palestinos que, desde 1948, foram integrando-se (de boa e má vontade) à amálgama de povos do país de residência, até que, em 1970, com vistas à luta política, lhes foi dada a oportunidade de serem palestinos. Isso não contradiz a tese defendida por Rashid Khalidi em seu recente livro sobre a identidade palestina, que afirma a possibilidade de distinguir uma identidade nacional palestina que remonta a muito tempo atrás na história, na cultura, na sociedade civil e na retórica política.
Mas deve-se acrescentar que a identidade por escolha significa um compromisso político de ser palestino, além de um compromisso ativo não apenas com a criação de um Estado independente, mas com a causa, mais importante, de acabar com a injustiça e conquistar a liberdade para os palestinos assumirem uma identidade laica capaz de ocupar seu lugar dentro da história contemporânea.
Atualmente, as pressões contra essa escolha vêm aumentando. Um dos principais objetivos das negociações de Oslo, assumido com grande entusiasmo pelos EUA e por Israel, é paradoxal, pois implicitamente aceita (para depois anular) a idéia de que a identidade palestina possui uma base mais ampla que a meramente nacionalista. Observando a história recente, percebe-se que, durante os anos 70 e 80, ser palestino significava estar na vanguarda de várias lutas de libertação, incluídas aquelas que se travavam muito além do mundo árabe, em lugares como a África do Sul, a América Latina, a Irlanda e em regiões da Europa e da Ásia.
Prova disso é um encontro recente que tive com um intelectual maori da Nova Zelândia que, depois de uma conferência, procurou-me para contar-me em detalhes o quanto a luta pelos direitos palestinos tem significado para o movimento maori há pelos menos três décadas. Encontrei o mesmo entusiasmo em lugares como a Índia, a Coréia e a Irlanda, e não entre os extremistas, mas, ao contrário, nos escritos e na prática daqueles que lutam pelas liberdades civis, de partidários do laicismo e grupos de mulheres, para os quais a idéia mesma de identidade palestina representava muito mais que um simples nacionalismo étnico. Significava atuar contra as forças do obscurantismo religioso, contra a discriminação baseada no sexo, na desigualdade econômica etc. Hoje é evidente que a força dessa identidade palestina motivou a invasão do Líbano por parte de Israel em 1982, e que o objetivo de Ariel Sharon nessa operação dificilmente se limitaria a destruir a insignificante ameaça militar que a OLP representava. Vale lembrar que uma das primeiras coisas que suas tropas fizeram ao entrar em Beirute oeste, em setembro daquele ano, foi roubar os arquivos do Centro de Pesquisas da OLP, um símbolo da força intelectual e moral que, de fato, a identidade palestina adquirira.

Direito à repatriação
De certo modo, as conversações de Oslo visavam debilitar o cerne dessa idéia de identidade mais ampla, fazendo com que os palestinos voltassem às suas cidades, aldeias e clãs de Gaza e da Cisjordânia, onde Israel e os Estados Unidos, por um lado, e, mais lamentavelmente, sua própria autoridade nacional, por outro, pudessem cercá-los, confiná-los e reduzi-los.
Esse esforço e esse aspecto de Oslo tiveram êxito, mas o centro da atenção voltou-se agora para os 4,5 milhões de palestinos que ainda se encontram no exílio, cuja persistente obstinação em expressar sua identidade por escolha é simbolizada pelo direito ao regresso que continuam a reivindicar.
Não se trata apenas de um desejo ou de uma exigência geográfica. Esse direito tem, no mínimo, mais cinco significados. É o direito de ter um lugar próprio. É o direito de permanecer nele. É o direito à repatriação. É o direito à compensação e à restituição. É o direito coletivo de associação (queremos ser palestinos onde quer que seja) e de residência. É o direito de coexistir em pé de igualdade com os judeus israelenses.
A Autoridade Palestina simboliza bem claramente a derrota e a privação da maioria desses direitos. O que cabe ao resto de nós -e aqui não falo apenas dos palestinos de nascimento- é resistir à tentativa de nos reduzirem, a nós e às nossas idéias, a uma mera questão de nascimento e de residência física, cujo árbitro final é Israel. É por isso que os atuais planos "internacionais" de reassentamento da ampla maioria dos refugiados prevêem o envio a lugares como o Iraque, o Canadá, os Estados Unidos e até a Jordânia, além da pressão sobre os países com grandes comunidades palestinas (como, por exemplo, o Líbano) para que lhes concedam a cidadania e a residência.
Por mais que a retórica oficial palestina insista hoje no direito ao regresso, as atitudes passadas da Autoridade Palestina não constituem um bom precedente. Além disso, a postura de Israel desde sua fundação, em 1948, foi a de negar por completo aos palestinos qualquer coisa que se parecesse com o direito de regressar, ao mesmo tempo em que insistia no direito absoluto de qualquer judeu, de qualquer lugar, ao "regresso" e à incondicional cidadania israelense.
Nesta situação, portanto, escolher a identidade palestina significa, de fato, resistir àquilo que os acordos de Oslo deverão oferecer para a condição final. Não é uma postura negativa. Significa insistir nos nossos direitos nacionais e políticos como povo, que nos foram negados, primeiro, pelos britânicos (não se deve esquecer que a Declaração de Balfour, de 1917, concedeu aos judeus direitos políticos como nação, enquanto aos palestinos prometeu apenas direitos religiosos e civis) e, depois, por Israel e pelos Estados Unidos (e, aparentemente, pela maioria dos países árabes). Significa também que nos mantemos firmes na questão da identidade como algo mais significativo e politicamente democrático que a mera residência e a submissão cega àquilo que Israel nos ofereça.
O que pedimos como palestinos é o direito de sermos cidadãos, e não apenas peças no jogo de Oslo, perdido de antemão. Vale a pena assinalar, ainda, que os israelenses também acabarão perdendo se aceitarem a definição estreita e mesquinha dos palestinos como um povo subjugado e confinado a uma "pátria" manipulada por seu governo. Dentro de uma década haverá igualdade demográfica entre judeus e árabes na Palestina histórica. Será melhor aceitarmos logo uns aos outros como membros plenos de um Estado binacional e laico do que continuar lutando na que já foi depreciativamente chamada "guerra de pastores de tribos rivais". Escolher essa identidade é fazer história. Não escolhê-la é desaparecer.


Edward W. Said é ensaísta palestino, professor da Universidade Columbia (Nova York) e autor, entre outros, de "Orientalismo" e "Cultura e Imperialismo".
Tradução de Sergio Molina.


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