São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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Herdeiro da Escola dos Annales, Marc Ferro defende, em entrevista à Folha, que a igreja e o Exército ajudaram a promover a igualdade social nas Américas portuguesa e hispânica e diz que geopolítica atual se caracteriza por um colonialismo sem colonos

A cor da infâmia

France Presse
Soldados italianos da Otan treinam na Macedônia


SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Livro Negro do Colonialismo", organizado pelo historiador francês Marc Ferro, tenta abarcar a complexidade do fenômeno do colonialismo, pensado em sua extensão temporal e geográfica. O livro se inicia no século 16 com a colonização ibérica e vai até os dias de hoje, mostrando como mecanismos do antigo colonialismo persistem e se renovam no neocolonialismo, no imperialismo multinacional e na globalização. Dessa forma, Ferro, o único dos representantes da Escola dos Annales que se dedicou à história contemporânea, indaga o passado na longa duração, na mentalidade, nas estruturas econômicas e na esfera das representações para examinar de que forma a colonização se travestiu em colonialismo, sustentada pelo racismo e pela cultura.
Essa operação extensa não é novidade para ele, que já havia feito um empreendimento semelhante em sua "História das Colonizações" (Cia. da Letras), onde a baliza temporal regredia até o século 13 para incluir o território russo, passando ainda pela constituição do Império Árabe, no século 7º, até sua derrocada, com as Cruzadas e o início da reconquista.
Poderíamos reconhecer muito dessa vocação extensiva e comparativa em todos os seus outros trabalhos, quer seja o autor ou o organizador, como é o caso do presente livro ou como foi o caso do polêmico "O Livro Negro do Comunismo" (ed. Bertrand Brasil), em que vários autores se encarregaram de analisar o comunismo enquanto uma idéia libertária, enquanto um sistema político e econômico, enquanto um sistema de repressão e controle nas várias partes do globo onde foi experimentado.
Neste "O Livro Negro do Colonialismo", apesar da visada larga, os vários autores aí reunidos parecem poupar o mundo colonial ibérico -no entender de Ferro, menos cruel do que foram os outros europeus a partir do século 19 na África e na Ásia. O Brasil, aos olhos dos especialistas, em sua maioria franceses, não recebeu muita atenção.
Diante das atrocidades cometidas nas antigas colônias francesas, inglesas ou holandesas e que se desdobram hoje nas condições de vida degradadas dos emigrados, a situação brasileira pode parecer-lhe menos terrível. Persistência de estereótipos? Uma colonização mais branda? É uma questão que fica à espera de uma nova resposta.
Marc Ferro falou à Folha sobre este último trabalho, que acaba de ser traduzido no Brasil. Reabilitando a igreja e o Exército como forças de integração contra o racismo colonial, Ferro nos lembra também que as reparações das injustiças cometidas durante o período colonial contra as populações nativas e africanas estão em curso em todo o mundo. E são indispensáveis para a saúde da história e da cidadania.

Folha - Como surgiu o projeto de "O Livro Negro do Colonialismo"?
Marc Ferro -
Em 2003, fui convidado para organizar este livro e reuni importantes pesquisadores para que pudéssemos refletir sobre essas questões de maneira ampla, visando não só a extensão cronológica -já que o livro se inicia com as grandes navegações ibéricas, chegando até hoje- mas também o espaço, recortando além disso questões de gênero, de representações etc.
O problema central que se colocava -tendo em perspectiva as conclusões de "O Livro Negro do Comunismo"- era saber se o colonialismo pode ser considerado uma forma de totalitarismo. E, efetivamente, foi possível observar que o colonialismo pode ser uma forma de dominação totalitária. Ele tinha uma ideologia própria -agentes de execução que eram os colonos e as metrópoles- e mantinha a maior parte de sua população dominada por meio de argumentos racistas.
Você poderia me contestar dizendo que no comunismo não havia racismo no sentido tradicional do termo, mas, sim, um racismo, na medida em que a ascendência burguesa ou aristocrática era considerada um "handicap" que excluía as pessoas de direitos e da plena cidadania.

Folha - A condição social, então, se tornava um foco de racismo?
Ferro -
No início da Revolução Russa, por exemplo, em torno de 1919, era preciso mostrar as mãos para conseguir um trabalho. Se elas eram bonitas, bem tratadas e atestavam a origem burguesa ou nobre dos candidatos, estes não tinham direito de trabalhar. Isso era, portanto, uma forma de racismo social: não era ligado ao sangue, como ocorre com mais intensidade no colonialismo, mas à condição social.
Entretanto o resultado era o mesmo para aqueles que eram excluídos. O racismo de forma totalitária se exprimiu de duas maneiras diferentes nas colônias: uma primeira considerava que os colonizados eram uma categoria inferior, subalterna, mas que era possível transformar, educar e fazer ascendê-los à condição dos conquistadores, ao nível dos europeus.
Entretanto essa forma de racismo considerava também que existiam povos colonizados que jamais ascenderiam à condição de seres humanos à altura da civilização ocidental. É o caso dos bochimores na África do Sul, das populações aborígines da Austrália ou dos nativos na Nova Caledônia. Essa impossibilidade atribuída pelos colonizadores, oculta, certamente, uma resistência forte desses povos às mudanças culturais que introduzem. Os franceses, por exemplo, isolaram os kanaks em reservas.

Folha - E como eram vistos os índios dentro desse quadro?
Ferro -
No caso dos índios, ao contrário, a colonização espanhola e portuguesa de início tratava de transformá-los em cristãos. Dessa forma, eles se tornavam "seres humanos" como você e eu e, ainda que houvesse barreiras sociais, e podiam aspirar a cargos administrativos -e hoje no Peru e no Equador são índios que comandam o governo, enquanto que, no tempo dos franceses na Argélia, não havia árabes na direção das instituições.

Folha - Então a cristianização permitiu uma certa igualdade?
Ferro -
Certamente. O cristianismo foi mais igualitário do que se diz. As duas instituições igualitárias são a igreja, em primeiro lugar -o que parece paradoxal, já que na tradição européia, republicana e democrática a igreja sempre foi considerada um obstáculo à promoção social e como força de resistência. E a outra instituição democrática que não se ousa reconhecer é o Exército. Foi no Exército que os nativos puderam entrar como soldados, oficiais.


O racismo árabe não era, em absoluto, religioso; era baseado no sangue, como entre os alemães no século 20


Um exemplo disso é a Espanha, onde foram os colonizados que acompanharam [Francisco] Franco [1892-1975] em suas campanhas. Na Rússia, foram os tártaros que entraram com [o general Lavr] Kornilov [1870-1918] e que se tornaram oficiais e generais. As tropas coloniais eram uma forma possível de promoção social. O que quero dizer com isso é que há um primeiro racismo que permite a promoção social, mas que exclui os resistentes que considera incapazes, conforme meus exemplos acima.
A segunda forma de racismo é o que poderíamos chamar de, grosso modo, hitlerista. Nesse caso, se julga que o cruzamento entre diferentes raças não é possível porque há seres inferiores e superiores, e o cruzamento degrada a descendência. O mestiço é visto como um pária. Claro que não se diz que os inferiores são nulos. Os alemães sabiam que havia grandes sábios e artistas judeus. Mas o que havia era a recusa do cruzamento racial.
Comportamento semelhante ocorreu durante a colonização árabe (séculos 7º-10º) em relação aos negros. O cruzamento entre eles era proibido. Exemplo disso é que os escravos negros, que eram comuns na época, eram castrados, criando os eunucos e dessa forma impedindo a descendência. Houve milhões de escravos negros no mundo árabe e eles não existem mais porque foram mortos e castrados. Enquanto isso, milhões de escravos negros sobreviveram na América, se reproduziram e até se misturaram.

Folha - E qual era a base do racismo árabe?
Ferro -
O racismo árabe não era, em absoluto, religioso. Era baseado no sangue, como entre os alemães no século 20. É por isso que é possível dizer que há traços do racismo que se aproximam do totalitarismo nazista.

Folha - Por que falar dessas questões hoje?
Ferro -
O colonialismo permeia as discussões das últimas décadas do século 20. No Ocidente, nos últimos 30 anos, dominava ainda a ideologia da nação, do Estado, da pátria, esquematizando o Estado-nação. Ora, o Estado-nação foi levado ao paroxismo com o nazismo, que pretendia fazer do Estado-nação alemão o modelo dominante do mundo. O Estado-nação francês colonizou o mundo, assim como a Inglaterra, e o Estado-nação soviético teve a sua derivação comunista e totalitária.
Assim, é a ideologia do Estado-nação que encontramos em todos os lugares, já que o regime soviético se inspirava na Revolução Francesa. O Estado-nação perdeu a credibilidade em todas as suas formas, seja a totalitária nazista, a totalitária comunista ou a forma democrática republicana franco-inglesa.
Assim, o descrédito do Estado-nação faz com que haja hoje uma rejeição de todos os seus símbolos. Por exemplo, na França, se tornou ridículo cantar a "Marselhesa" [hino francês] na escola. Na Alemanha, por sua vez, há uma rejeição absoluta por conta do passado nazista de tudo o que simboliza a glória do Estado e da nação: as cerimônias, desfiles e tudo aquilo que foi largamente cultuado antes.
Ao contrário disso, é nos EUA hoje que o Estado-nação ainda tem credibilidade. Mas, com o seu descrédito, ele foi substituído pela ideologia dos direitos do homem, e esta condena praticamente todos os atos do colonialismo e rejeita tudo aquilo que o Estado-nação julgava positivo na colonização.
Não se pode dizer que a colonização foi completamente colonialista, embora os colonizados sempre a tenham vivido, até em seus aspectos positivos, como uma conquista à qual tiveram que se submeter.

Folha - Qual é a face atual do colonialismo?
Ferro -
Ele é diferente. Temos hoje um colonialismo sem colonos. São formas de imperialismo que eu chamo multinacional. Ele é a herança do imperialismo de tipo norte-americano, uma colonização econômica, real, mas sem bandeiras e sem soldados. Simbolicamente, vimos o retorno do colonialismo clássico, enquanto os norte-americanos nunca mandavam soldados. Salvo em operações rápidas e pontuais, os americanos não mantinham casernas como os ingleses, os franceses, os russos, os italianos e os alemães.
É por isso que podemos dizer que a intervenção dos EUA no Iraque é um neocolonialismo imperialista. Os norte-americanos não faziam isso, mas agora conseguiram essa regressão ao quadro do colonialismo europeu do século 19.

Folha - O livro se fecha com um capítulo sobre "quem pede reparações e por quais crimes".
Ferro -
Há hoje uma demanda expressiva por reparação. Ela foi desencadeada pelos judeus, que conseguiram obter reparações e indenizações na Europa. Assim, outros povos também podem pleitear, mas têm que provar que hoje ainda são vítimas dos abusos cometidos contra seus ancestrais.
Não se pode pedir reparação por uma deportação no século 17, mas é possível pedir indenização a uma companhia de trens que foi construída por escravos negros e que ainda existe, provando que seus descendentes em situação de pobreza foram prejudicados pela condição dos ancestrais escravos.
As reparações visam em primeiro lugar o aspecto moral e ético: reconhecimento de uma injustiça: Bill Clinton, por exemplo, pediu desculpas na África, pelo papel dos EUA no tráfico, embora não tenha se dirigido da mesma forma aos negros norte-americanos. Isso é essencial: enfrentar os erros. Isso feito, o passado pode ser examinado, liberam-se os tabus da história, o dever de memória pode ser exercido reconhecendo-se os prejudicados em todos os níveis. Dessa forma, a reconciliação pode ocorrer de forma efetiva, para toda a sociedade, em todos os níveis.

Folha - O Brasil aparece pouco em seu livro.
Ferro -
Como se trata de um trabalho sobre os aspectos daninhos do colonialismo, o Brasil aparece pouco justamente porque e a colonização ibérica e a colonização espanhola na América Central foram menos criminosas do que a francesa, a alemã, a inglesa ou belga. Certamente isso não esgota todas as questões, mas em países como o Brasil há um cruzamento cultural significativo, coisa que não acontece de forma nenhuma na Argélia ou na África negra. Ali não houve cruzamentos, assim como na Austrália.
Isso também é válido para a mestiçagem que se desenvolveu largamente no Brasil, mas que não ocorreu de forma significativa nos territórios coloniais das nações européias a partir do século 19.

Folha - A cultura, o esclarecimento e as tragédias do século 20 não diminuíram o racismo.
Ferro -
O racismo não diminuiu. Ele se desenvolve. Na Índia, por exemplo, havia muito menos racismo no século 18, havia mais casamentos mistos, por exemplo, do que no século 19 e 20. O racismo se desenvolve porque a desigualdade no mundo é muito visível. Está na frente de todos, está nos meios de comunicação. Mesmo os povos mais afastados, que perpetuavam suas formas de vida tradicional, podem explodir de cólera vendo como o mundo evolui. Portanto, é normal que o racismo esteja cada vez mais vivo.
E, nesse sentido, o aumento de informações e de conhecimentos não altera o racismo, que é algo que todos, de algum modo, carregam dentro de si. O discurso anti-racista é fácil porque é fácil ser anti-racista. Entretanto, diante de situações de desigualdade, de concorrência, a primeira reação dos indivíduos é racista.

Folha - Mas, ao mesmo tempo, vivemos hoje num mundo que se constrói de misturas, da dita globalização, que junta expressões culturais de povos diferentes na música, na comida, no consumo, enfim. Isso não altera os comportamentos?
Ferro -
Isso não corresponde à realidade. Isso é um "wishfull thinking", que, na realidade, não ocorre. Entretanto na França, por exemplo, aumenta proporcionalmente o número de casamentos mistos na mídia, nos esportes. Há muita gente que se sente excluída e que vai em direção a outros excluídos. A sua exclusão é mais importante que a sua identidade.


Sheila Schvarzman é historiadora do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), professora visitante do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Escreveu "Humberto Mauro e as Imagens do Brasil" (Edunesp).

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