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Herdeiro da Escola dos Annales, Marc Ferro defende, em entrevista à Folha, que
a igreja e o Exército ajudaram a promover a igualdade social nas Américas portuguesa e hispânica e diz que geopolítica atual se caracteriza por um colonialismo sem colonos
A cor da infâmia
France Presse
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Soldados italianos da Otan treinam na Macedônia |
SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Livro Negro do Colonialismo", organizado pelo
historiador francês Marc
Ferro, tenta abarcar a complexidade do fenômeno do colonialismo, pensado em sua extensão
temporal e geográfica. O livro se inicia no século 16 com a colonização
ibérica e vai até os dias de hoje, mostrando como mecanismos do antigo
colonialismo persistem e se renovam no neocolonialismo, no imperialismo multinacional e na globalização. Dessa forma, Ferro, o único
dos representantes da Escola dos
Annales que se dedicou à história
contemporânea, indaga o passado
na longa duração, na mentalidade,
nas estruturas econômicas e na esfera das representações para examinar
de que forma a colonização se travestiu em colonialismo, sustentada
pelo racismo e pela cultura.
Essa operação extensa não é novidade para ele, que já havia feito um
empreendimento semelhante em
sua "História das Colonizações"
(Cia. da Letras), onde a baliza temporal regredia até o século 13 para
incluir o território russo, passando
ainda pela constituição do Império
Árabe, no século 7º, até sua derrocada, com as Cruzadas e o início da reconquista.
Poderíamos reconhecer muito
dessa vocação extensiva e comparativa em todos os seus outros trabalhos, quer seja o autor ou o organizador, como é o caso do presente livro
ou como foi o caso do polêmico "O
Livro Negro do Comunismo" (ed.
Bertrand Brasil), em que vários autores se encarregaram de analisar o
comunismo enquanto uma idéia libertária, enquanto um sistema político e econômico, enquanto um sistema de repressão e controle nas várias partes do globo onde foi experimentado.
Neste "O Livro Negro do Colonialismo", apesar da visada larga, os vários autores aí reunidos parecem
poupar o mundo colonial ibérico
-no entender de Ferro, menos
cruel do que foram os outros europeus a partir do século 19 na África e
na Ásia. O Brasil, aos olhos dos especialistas, em sua maioria franceses,
não recebeu muita atenção.
Diante das atrocidades cometidas
nas antigas colônias francesas, inglesas ou holandesas e que se desdobram hoje nas condições de vida degradadas dos emigrados, a situação
brasileira pode parecer-lhe menos
terrível. Persistência de estereótipos?
Uma colonização mais branda? É
uma questão que fica à espera de
uma nova resposta.
Marc Ferro falou à Folha sobre este último trabalho, que acaba de ser
traduzido no Brasil. Reabilitando a
igreja e o Exército como forças de integração contra o racismo colonial,
Ferro nos lembra também que as reparações das injustiças cometidas
durante o período colonial contra as
populações nativas e africanas estão
em curso em todo o mundo. E são
indispensáveis para a saúde da história e da cidadania.
Folha - Como surgiu o projeto de "O
Livro Negro do Colonialismo"?
Marc Ferro - Em 2003, fui convidado para organizar este livro e reuni
importantes pesquisadores para que
pudéssemos refletir sobre essas
questões de maneira ampla, visando
não só a extensão cronológica -já
que o livro se inicia com as grandes
navegações ibéricas, chegando até
hoje- mas também o espaço, recortando além disso questões de gênero, de representações etc.
O problema central que se colocava -tendo em perspectiva as conclusões de "O Livro Negro do Comunismo"- era saber se o colonialismo pode ser considerado uma
forma de totalitarismo. E, efetivamente, foi possível observar que o
colonialismo pode ser uma forma de
dominação totalitária. Ele tinha uma
ideologia própria -agentes de execução que eram os colonos e as metrópoles- e mantinha a maior parte
de sua população dominada por
meio de argumentos racistas.
Você poderia me contestar dizendo que no comunismo não havia racismo no sentido tradicional do termo, mas, sim, um racismo, na medida em que a ascendência burguesa
ou aristocrática era considerada um
"handicap" que excluía as pessoas
de direitos e da plena cidadania.
Folha - A condição social, então, se
tornava um foco de racismo?
Ferro - No início da Revolução
Russa, por exemplo, em torno de
1919, era preciso mostrar as mãos
para conseguir um trabalho. Se elas
eram bonitas, bem tratadas e atestavam a origem burguesa ou nobre
dos candidatos, estes não tinham direito de trabalhar. Isso era, portanto,
uma forma de racismo social: não
era ligado ao sangue, como ocorre
com mais intensidade no colonialismo, mas à condição social.
Entretanto o resultado era o mesmo para aqueles que eram excluídos. O racismo de forma totalitária
se exprimiu de duas maneiras diferentes nas colônias: uma primeira
considerava que os colonizados
eram uma categoria inferior, subalterna, mas que era possível transformar, educar e fazer ascendê-los à
condição dos conquistadores, ao nível dos europeus.
Entretanto essa forma de racismo
considerava também que existiam
povos colonizados que jamais ascenderiam à condição de seres humanos à altura da civilização ocidental. É o caso dos bochimores na
África do Sul, das populações aborígines da Austrália ou dos nativos na
Nova Caledônia. Essa impossibilidade atribuída pelos colonizadores,
oculta, certamente, uma resistência
forte desses povos às mudanças culturais que introduzem. Os franceses,
por exemplo, isolaram os kanaks em
reservas.
Folha - E como eram vistos os índios
dentro desse quadro?
Ferro - No caso dos índios, ao contrário, a colonização espanhola e
portuguesa de início tratava de
transformá-los em cristãos. Dessa
forma, eles se tornavam "seres humanos" como você e eu e, ainda que
houvesse barreiras sociais, e podiam
aspirar a cargos administrativos -e
hoje no Peru e no Equador são índios que comandam o governo, enquanto que, no tempo dos franceses
na Argélia, não havia árabes na direção das instituições.
Folha - Então a cristianização permitiu uma certa igualdade?
Ferro - Certamente. O cristianismo foi mais igualitário do que se diz.
As duas instituições igualitárias são
a igreja, em primeiro lugar -o que
parece paradoxal, já que na tradição
européia, republicana e democrática
a igreja sempre foi considerada um
obstáculo à promoção social e como
força de resistência. E a outra instituição democrática que não se ousa
reconhecer é o Exército. Foi no Exército que os nativos puderam entrar
como soldados, oficiais.
O racismo árabe não era, em absoluto, religioso; era baseado no sangue, como entre os alemães no século 20
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Um exemplo disso é a Espanha,
onde foram os colonizados que
acompanharam [Francisco] Franco
[1892-1975] em suas campanhas. Na
Rússia, foram os tártaros que entraram com [o general Lavr] Kornilov
[1870-1918] e que se tornaram oficiais e generais. As tropas coloniais
eram uma forma possível de promoção social. O que quero dizer com isso é que há um primeiro racismo
que permite a promoção social, mas
que exclui os resistentes que considera incapazes, conforme meus
exemplos acima.
A segunda forma de racismo é o
que poderíamos chamar de, grosso
modo, hitlerista. Nesse caso, se julga
que o cruzamento entre diferentes
raças não é possível porque há seres
inferiores e superiores, e o cruzamento degrada a descendência. O
mestiço é visto como um pária. Claro que não se diz que os inferiores
são nulos. Os alemães sabiam que
havia grandes sábios e artistas judeus. Mas o que havia era a recusa
do cruzamento racial.
Comportamento semelhante
ocorreu durante a colonização árabe
(séculos 7º-10º) em relação aos negros. O cruzamento entre eles era
proibido. Exemplo disso é que os escravos negros, que eram comuns na
época, eram castrados, criando os
eunucos e dessa forma impedindo a
descendência. Houve milhões de escravos negros no mundo árabe e eles
não existem mais porque foram
mortos e castrados. Enquanto isso,
milhões de escravos negros sobreviveram na América, se reproduziram
e até se misturaram.
Folha - E qual era a base do racismo
árabe?
Ferro - O racismo árabe não era,
em absoluto, religioso. Era baseado
no sangue, como entre os alemães
no século 20. É por isso que é possível dizer que há traços do racismo
que se aproximam do totalitarismo
nazista.
Folha - Por que falar dessas questões
hoje?
Ferro - O colonialismo permeia as
discussões das últimas décadas do
século 20. No Ocidente, nos últimos
30 anos, dominava ainda a ideologia
da nação, do Estado, da pátria, esquematizando o Estado-nação. Ora,
o Estado-nação foi levado ao paroxismo com o nazismo, que pretendia fazer do Estado-nação alemão o
modelo dominante do mundo. O
Estado-nação francês colonizou o
mundo, assim como a Inglaterra, e o
Estado-nação soviético teve a sua
derivação comunista e totalitária.
Assim, é a ideologia do Estado-nação que encontramos em todos os
lugares, já que o regime soviético se
inspirava na Revolução Francesa. O
Estado-nação perdeu a credibilidade em todas as suas formas, seja a totalitária nazista, a totalitária comunista ou a forma democrática republicana franco-inglesa.
Assim, o descrédito do Estado-nação faz com que haja hoje uma rejeição de todos os seus símbolos. Por
exemplo, na França, se tornou ridículo cantar a "Marselhesa" [hino
francês] na escola. Na Alemanha,
por sua vez, há uma rejeição absoluta por conta do passado nazista de
tudo o que simboliza a glória do Estado e da nação: as cerimônias, desfiles e tudo aquilo que foi largamente
cultuado antes.
Ao contrário disso, é nos EUA hoje
que o Estado-nação ainda tem credibilidade. Mas, com o seu descrédito,
ele foi substituído pela ideologia dos
direitos do homem, e esta condena
praticamente todos os atos do colonialismo e rejeita tudo aquilo que o
Estado-nação julgava positivo na colonização.
Não se pode dizer que a colonização foi completamente colonialista,
embora os colonizados sempre a tenham vivido, até em seus aspectos
positivos, como uma conquista à
qual tiveram que se submeter.
Folha - Qual é a face atual do colonialismo?
Ferro - Ele é diferente. Temos hoje
um colonialismo sem colonos. São
formas de imperialismo que eu chamo multinacional. Ele é a herança
do imperialismo de tipo norte-americano, uma colonização econômica,
real, mas sem bandeiras e sem soldados. Simbolicamente, vimos o retorno do colonialismo clássico, enquanto os norte-americanos nunca
mandavam soldados. Salvo em operações rápidas e pontuais, os americanos não mantinham casernas como os ingleses, os franceses, os russos, os italianos e os alemães.
É por isso que podemos dizer que
a intervenção dos EUA no Iraque é
um neocolonialismo imperialista.
Os norte-americanos não faziam isso, mas agora conseguiram essa regressão ao quadro do colonialismo
europeu do século 19.
Folha - O livro se fecha com um capítulo sobre "quem pede reparações e
por quais crimes".
Ferro - Há hoje uma demanda expressiva por reparação. Ela foi desencadeada pelos judeus, que conseguiram obter reparações e indenizações na Europa. Assim, outros povos também podem pleitear, mas
têm que provar que hoje ainda são
vítimas dos abusos cometidos contra seus ancestrais.
Não se pode pedir reparação por
uma deportação no século 17, mas é
possível pedir indenização a uma
companhia de trens que foi construída por escravos negros e que ainda existe, provando que seus descendentes em situação de pobreza
foram prejudicados pela condição
dos ancestrais escravos.
As reparações visam em primeiro
lugar o aspecto moral e ético: reconhecimento de uma injustiça: Bill
Clinton, por exemplo, pediu desculpas na África, pelo papel dos EUA no
tráfico, embora não tenha se dirigido da mesma forma aos negros norte-americanos. Isso é essencial: enfrentar os erros. Isso feito, o passado
pode ser examinado, liberam-se os
tabus da história, o dever de memória pode ser exercido reconhecendo-se os prejudicados em todos os níveis. Dessa forma, a reconciliação
pode ocorrer de forma efetiva, para
toda a sociedade, em todos os níveis.
Folha - O Brasil aparece pouco em
seu livro.
Ferro - Como se trata de um trabalho sobre os aspectos daninhos do
colonialismo, o Brasil aparece pouco
justamente porque e a colonização
ibérica e a colonização espanhola na
América Central foram menos criminosas do que a francesa, a alemã,
a inglesa ou belga. Certamente isso
não esgota todas as questões, mas
em países como o Brasil há um cruzamento cultural significativo, coisa
que não acontece de forma nenhuma na Argélia ou na África negra. Ali
não houve cruzamentos, assim como na Austrália.
Isso também é válido para a mestiçagem que se desenvolveu largamente no Brasil, mas que não ocorreu de forma significativa nos territórios coloniais das nações européias a partir do século 19.
Folha - A cultura, o esclarecimento e
as tragédias do século 20 não diminuíram o racismo.
Ferro - O racismo não diminuiu.
Ele se desenvolve. Na Índia, por
exemplo, havia muito menos racismo no século 18, havia mais casamentos mistos, por exemplo, do que
no século 19 e 20. O racismo se desenvolve porque a desigualdade no
mundo é muito visível. Está na frente de todos, está nos meios de comunicação. Mesmo os povos mais afastados, que perpetuavam suas formas
de vida tradicional, podem explodir
de cólera vendo como o mundo evolui. Portanto, é normal que o racismo esteja cada vez mais vivo.
E, nesse sentido, o aumento de informações e de conhecimentos não
altera o racismo, que é algo que todos, de algum modo, carregam dentro de si. O discurso anti-racista é fácil porque é fácil ser anti-racista. Entretanto, diante de situações de desigualdade, de concorrência, a primeira reação dos indivíduos é racista.
Folha - Mas, ao mesmo tempo, vivemos hoje num mundo que se constrói
de misturas, da dita globalização, que
junta expressões culturais de povos diferentes na música, na comida, no consumo, enfim. Isso não altera os comportamentos?
Ferro - Isso não corresponde à realidade. Isso é um "wishfull thinking", que, na realidade, não ocorre.
Entretanto na França, por exemplo,
aumenta proporcionalmente o número de casamentos mistos na mídia, nos esportes. Há muita gente
que se sente excluída e que vai em direção a outros excluídos. A sua exclusão é mais importante que a sua
identidade.
Sheila Schvarzman é historiadora do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo), professora visitante do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. Escreveu "Humberto Mauro e as Imagens do Brasil" (Edunesp).
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