São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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+ cultura

O historiador Pierre Vidal-Naquet disseca a apropriação do mito da Atlântida, da Antigüidade ao nazismo

O continente fantasma

MAURICE SARTRE

Quando Platão lançou, nos anos 350 a.C., "como se lança um projétil sem saber onde cairá", o mito da Atlântida esboçado em "Timeu" e retomado em "Crítias", certamente não imaginava que sua trajetória seria tão longa e que uma ciência duvidosa se apoderaria de seu relato para transformar a fábula filosófica e política em realidade histórica ou mesmo arqueológica. Pois aí está toda a ambigüidade de Atlântida -ter sido tão rapidamente esvaziada de seu caráter puramente literário e filosófico para ser confrontada com uma certa realidade fantástica.
É a partir dessa constatação -sempre válida- que Pierre Vidal-Naquet ["L'Atlantide - Petite Histoire d'un Mythe Platonicien (A Atlântida - Pequena História de um Mito Platônico, Les Belles Lettres, 216 págs., 18 euros -R$ 63) se interessou pela apropriação do mito por uma multidão de literatos, eruditos, historiadores, às vezes iluminados, e pelo uso que lhe deram.


E a América não seria um pedaço da ilha submersa?


Vidal-Naquet segue os vestígios, da Antigüidade até nossos dias, da utilização do mito, pois desde a Antigüidade surgem interpretações "realistas" (Fílon, Amiano Marcelino), mesmo que seja às vezes com uma ponta de ceticismo (Plínio), quando se perde de fato a capacidade de analisar o processo narrativo do texto para guardar apenas seu conteúdo bruto.
Depois de uma longa interrupção medieval, a Atlântida dispara com força na tradução de "Crítias" por Marsilio Ficino em 1485. A questão não é mais saber se a Atlântida existiu, mas onde! E a América não seria um pedaço milagrosamente preservado do continente submerso?, sugerem os espanhóis. Como ele deveria originalmente caber à Espanha, isso não justificaria os direitos do rei católico sobre o Novo Mundo?
Mas não há um só grande espírito que não aborde a questão da Atlântida, de Montaigne e Joost Lips a Francis Bacon e Olof Rudbeck, uma das figuras principais da pesquisa. Se muitos hesitam sobre a localização, Rudbeck a encontrou: só pode ser a Suécia, onde Atlas, filho de Jafé, gerou descendência. Apesar da repercussão considerável de sua demonstração, outras opiniões subsistem, encontrando nas Canárias o resíduo de um continente que muitos continuam situando um pouco a oeste das colunas de Hércules, isto é, do estreito de Gibraltar.

Mito nacionalista

O mais notável é a capacidade dos eruditos para integrar o mito platônico à história bíblica, erigida como história universal. Mas, como salienta Vidal-Naquet, Platão fazia seu relato remontar a mais de 9.000 anos, muito além do tempo admitido para a criação.
Com as Luzes, o fantástico está em toda parte, apesar das advertências de raros espíritos lúcidos como Nicolas Fréret ("é preciso ver tudo isso apenas como uma ficção filosófica"). Nada adianta, e o curso errante da Atlântida recomeça: o astrônomo Bailly (o primeiro prefeito de Paris) a situa no Spitzberg, o teósofo Fabre d'Olivet a faz voltar à América e enriquece o mito com tal luxo de detalhes e de personagens que "constrói um mundo monstruoso que se desenrola em uma história totalmente fictícia". Ao mesmo tempo, o mito vem em socorro dos nacionalismos, tanto na Itália como na Irlanda, onde tradição bíblica, mito céltico e Atlântida se fundem.
A Atlântida torna-se também um tema romanesco enquanto os sábios passam a atacar a lenda. Sem grande sucesso, deve-se admitir, porque observamos ao contrário uma volta reforçada de obras delirantes sobre a Atlântida, notadamente na Alemanha depois da derrota de 1918. Veja-se, por exemplo, o ideólogo de Hitler, Alfred Rosenberg, que faz dos atlantes os ancestrais dos germânicos, enquanto o pastor nazista Jurgen Spanuth chega a encontrar sua capital na minúscula ilha de Heligoland, ao largo de Cuxhaven!

O futuro de uma ilusão

A pesquisa de Vidal-Naquet conduz o leitor por vários caminhos cativantes, porque falam da irracionalidade do espírito humano diante do poder evocativo da invenção platônica. Diante de tantas especulações, é inútil introduzir o racional, e sobre esse ponto o autor não alimenta nenhuma ilusão; a história do mito que ele destrincha tão bem ainda tem belos dias pela frente, pois a entrada da Atlântida entre os temas favoritos do ocultismo e da teosofia, ocorrida no final do século 18 com Fabre d'Olivet, reforçada pelo americano Ignatius Loyola Donnelly no último terço do século 19, hoje faz o mito escapar de suas origens para promovê-lo no âmbito privilegiado de uma reflexão sobre as origens da civilização.
Maurice Sartre é historiador francês. Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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