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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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Misturando os idiomas

Peter Burke

Ao visitar o Brasil no último Natal, tive a oportunidade de assistir a alguns capítulos da novela "Esperança". O modo como alguns dos personagens misturavam o italiano com o português em palavras e frases me lembrou da importância do que os linguistas chamam de "contato linguístico", "encontros linguísticos" e "idiomas misturados". Na Califórnia hoje, por exemplo, uma mistura semelhante de espanhol com inglês é algo corrente na cultura dos chicanos. Os linguistas têm salientado há muito tempo que todos os idiomas são até certo ponto misturados, assim como todas as culturas são híbridas. A apropriação cultural ocorre o tempo todo. Da mesma forma, alguns idiomas, como o inglês, por exemplo, são mais misturados do que outros (como o islandês), e também ocorrem mais misturas em determinados períodos do que em outros.

Invasão
O processo de globalização está contribuindo para a mistura de idiomas hoje, de forma mais visível ou audível na invasão de tantas línguas, do português ao japonês, por palavras e frases inglesas ou anglo-americanas. No entanto, globalmente, o encontro e a mistura de idiomas teve início há vários séculos como consequência da invasão do resto do mundo pelos europeus, no processo mais conhecido como colonização. O português foi o primeiro idioma a expandir suas fronteiras, seguido por espanhol, francês, holandês e inglês. Por um lado, alguns missionários e administradores tentaram persuadir ou até forçar populações indígenas, ou pelo menos a elite desses povos, a falar línguas européias. Em 1659, no Ceilão [atual Sri Lanka", por exemplo, a administração colonial declarou que ninguém poderia usar chapéu a não ser que falasse holandês. Na Guatemala, houve um decreto semelhante, de que ninguém poderia andar a cavalo a menos que falasse espanhol. Por outro lado, alguns missionários, oficiais e imigrantes que foram ao Novo Mundo aprenderam as línguas locais. O comércio de escravos também contribuiu para a mistura de idiomas. Os mercadores de escravos separavam propositalmente os cativos originários da mesma parte da África precisamente com o objetivo de dificultar a comunicação entre eles. Os escravos aprendiam a falar a língua franca ou "pidgin", que misturava as línguas européias com as africanas. Dessa mistura surgiram várias novas línguas ou "crioulos", com base no francês (no Haiti e na Louisiana, por exemplo), no holandês (na África do Sul), no inglês (na Jamaica) e no português em Málaca, Macau, Goa e São Tomé. Como consequência de todos esses encontros, algumas palavras locais para designar animais, pássaros e plantas que eram desconhecidas no Velho Mundo se espalharam de uma língua européia para outra. Hoje, as palavras em tupi "jaguar", "caju" e "mandioca" são usadas em diversos idiomas bem como as palavras em náuatle "chocolate", "abacate" e "tomate" ou as palavras em quéchua "condor", "puma" e "quinino". De forma semelhante, certas palavras asiáticas para designar instituições ou itens da cultura material ingressaram nas línguas européias nos séculos 16 e 17, geralmente por meio do português; "pagode", por exemplo, e "varanda", ambas palavras indianas; "palanquim" e "cris", do malaio ou javanês. "Mandarim" veio do chinês, e "bonzo", que significa sacerdote budista, do japonês.


A globalização contribui para a mistura de idiomas de forma mais visível na invasão de tantas línguas, do português ao japonês, por palavras inglesas


As línguas africanas contribuíram com centenas de palavras ao português, de orixá a quilombo, e com alguns vocábulos para o inglês e o francês. Os contatos crescentes entre a Europa e o mundo muçulmano e, esperemos, a crescente compreensão de seus costumes se refletiram na quantidade de palavras árabes e turcas que ingressaram nas línguas européias na época, palavras como cadi ("juiz"), aga ("senhor"), bazar, harém, xeique, sultão, paxá, dervis, muezim. Navegadores e comerciantes no Mediterrâneo usavam frequentemente o idioma conhecido como "língua franca", uma mistura de veneziano e árabe, com um pouco de português e outros idiomas.

Perseguições
Ao mesmo tempo, os encontros entre as diferentes línguas da Europa também aumentavam, incentivados pelo comércio, pelo surgimento de grandes cidades e por importantes movimentos de imigração, geralmente para fugir de perseguições religiosas. No século 16, os judeus da Espanha, por exemplo, rumaram para a Itália e mais tarde para a Holanda, e no século 17 os protestantes franceses migraram para Holanda e Inglaterra. Os portos eram particular e tradicionalmente locais poliglotas e, naquela época, se ampliavam com a expansão do comércio. Veneza tinha bairros gregos, judeus e eslavos, Antuérpia tinha italianos, franceses, espanhóis e ingleses, e Amsterdã, alemães, escandinavos, judeus e franceses. Nessas condições, a interação ou "interferência" entre línguas aumentava naturalmente e também se tornava mais visível. De qualquer forma, mais pessoas notavam e comentavam o processo, que frequentemente descreviam de forma vívida, metafórica e reprovadora, como sendo um "macaquear" ou um "remendar", por exemplo, ou como sendo uma língua "quebrada", um "ensopado" ou "pudim" linguístico mais apropriado para a cozinha do que para o salão. Esse tipo de desaprovação era muitas vezes uma reação defensiva à invasão de palavras de um país que exercia alguma forma de hegemonia cultural na Europa, primeiro palavras em italiano, depois em espanhol, mais tarde em francês e finalmente em inglês. Na França do século 16, por exemplo, a corte da italiana Catarina de Médici lançou a moda de palavras e frases em francês. Por volta de 1600, as palavras em espanhol foram introduzidas em algumas línguas européias, especialmente palavras relativas à guerra (armada, por exemplo, camarada, parada ou retirada) ou ao bom comportamento (cumprimento, etiqueta, sossego). No final do século 17, alemães e holandeses com pretensões sociais frequentemente escreviam e falavam em francês, assim como a nobreza russa ainda fazia na época de Napoleão. Algumas pessoas que não sabiam falar francês chegavam a inserir palavras e frases daquele idioma, como "à la mode", em suas línguas nativas, fossem elas o alemão, o inglês ou o italiano. Em uma época em que as aulas na universidade eram normalmente dadas em latim, como aconteceu na Europa até o final do século 18, muitas palavras e frases daquela língua entraram nos vernáculos e lá permaneceram desde então, tanto que pessoas que nunca estudaram latim na escola ou na universidade acabam usando termos como "pari passu" ou "et cetera".

Poluição
Esse influxo de palavras estrangeiras em uma determinada língua quase sempre foi considerado uma forma de poluição ou contaminação da pureza daquela língua, e as academias de linguística foram algumas vezes fundadas para deter ou pelo menos retardar o processo, tratando as palavras estrangeiras como imigrantes que precisam ser assimilados. Há algo a ser dito a favor dessa reação, pelo menos quando ocorre de forma moderada. Se um estrangeiro pode se dar o direito de expressar uma opinião a esse respeito, acho que a quantidade de palavras inglesas ou anglo-americanas comumente usadas no português do Brasil hoje é um tanto excessiva, já que algumas dessas palavras possuem equivalentes locais perfeitamente adequados.
Por outro lado, muitas palavras e frases emprestadas enriquecem um idioma, permitindo que o mesmo passe a expressar um universo mais amplo de idéias ou sentimentos. Shakespeare viveu e escreveu em uma época em que mais palavras ingressaram na língua inglesa do que em qualquer outra geração antes ou desde então. Teria ele sido tão criativo caso tivesse vivido em uma época em que a língua na qual escrevia fosse relativamente estática ou fechada à imigração?

Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social" (ed. Unesp) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Leslie Benzakein.


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