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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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+ cultura

O ESCRITOR LOUIS BEGLEY ANALISA O CONFRONTO NO IRAQUE, ATACA BUSH E O ANTIAMERICANISMO E RELEMBRA SUA FUGA DOS NAZISTAS DURANTE A 2ª GUERRA

A EXPERIÊNCIA DA GUERRA

da Redação

Críticas ao governo Bush, mas também à atual onda de antiamericanismo na Europa. Assim Louis Begley se equilibra entre, de um lado, a gratidão pessoal aos Estados Unidos -seu destino após fugir da perseguição nazista a judeus poloneses como ele- e, de outro, a repulsa aos unilateralismos políticos e aos horrores da guerra. É o que o autor de "Sobre Schmidt" (Cia. das Letras) -romance que deu origem ao filme "As Confissões de Schmidt", em cartaz em SP- mostra na seguinte entrevista, originalmente publicada na revista alemã "Der Spiegel".

A atual situação mundial o inquieta?
Sou um otimista incurável. Acordo de manhã e me sinto bem. Mas neste momento é difícil não ser pessimista sobre a situação política. É quase impossível.

Por quê? A acreditar no governo americano, os ataques estão sendo bem-sucedidos.
Derrotar o Exército iraquiano, acredito, talvez seja o menor dos problemas. Mas depois teremos de reconstruir o Iraque e formar uma sociedade civil. Como isso deverá acontecer sem a ONU? E como se deverá lidar com a Coréia do Norte e o Irã?

O sr. também foi vítima de ataques aéreos quando criança. Isso muda sua percepção da guerra?
Em setembro de 1939, quando meus pais e eu tentamos fugir de minha cidade na Polônia para a Romênia, aviões Messerschmidt alemães metralharam a estrada pela qual nós fugíamos. Mais tarde vivi os ataques aéreos a Varsóvia -primeiramente ataques aéreos britânicos, pouco antes do levante de Varsóvia, e, depois, alemães, após o início da rebelião. É claro que essa experiência direta da guerra tornou o significado das implicações da guerra -destruição, morte e tudo o mais- muito concreto para mim.

E quais as consequências dessa experiência? Guerra nunca mais?
A guerra é puro horror. Isso não significa que eu seja sempre contrário à guerra como instrumento de política de Estado. Não sou um pacifista. Não posso ser. Se os pacifistas tivessem prevalecido em 1939, Hitler teria dominado o mundo. Derrubar Saddam Hussein e desarmar o Iraque não é uma coisa ruim, na minha opinião. Mas o presidente Bush e seu governo não conseguiram o apoio internacional. Em vez disso, temo que eles estejam no processo de danificar todas as estruturas e instituições que, desde a Segunda Guerra Mundial, ajudaram a tornar o mundo um lugar um pouco mais habitável.

George W. Bush compara Saddam Hussein a Hitler. O sr. concorda com essa avaliação?
Não, não há semelhanças. Hitler era mais complexo (risos). Até onde eu sei, Saddam Hussein não tem ambições de dominar o mundo todo.

No entanto, em discurso recente na TV, o presidente Bush também justificou sua política com o fracasso da política de apaziguamento anterior à Segunda Guerra.
Isso é pura demagogia.

Bush acredita no que diz?
Perdoe-me, mas acho impossível me identificar com o presidente Bush ou o vice-presidente Dick Cheney ou qualquer pessoa do círculo do presidente Bush. Simplesmente não consigo imaginar o que eles pensam. Mas acredito que a hipérbole é inimiga do pensamento. Já em 11 de setembro o presidente Bush e seus assessores disseram que estávamos em guerra. Essa linguagem exagerada ajudou a nos colocar no canto em que estamos encurralados agora.

Os acontecimentos das últimas semanas o distanciam de seu país adotivo, os Estados Unidos?
Eu jamais poderia me distanciar deste país. Cheguei aqui como estrangeiro e refugiado, fui bem recebido, sou um cidadão americano há 50 anos e sou apaixonadamente patriótico. Isso nunca mudará. Mas sou muito crítico do governo Bush -e não apenas devido a sua política para o Iraque, mas por muitos outros motivos.

Por exemplo?
Porque o presidente Bush está se apresentando como um unilateralista que não se importa com a opinião da comunidade mundial -quando se refere ao Protocolo de Kyoto (para conter as emissões de gases que produzem o efeito-estufa) ou ao Tribunal Penal Internacional, para dar só dois exemplos óbvios. Também discordo dele quanto à política interna.

Bush despreza o mundo fora das fronteiras americanas?
Desprezo talvez seja uma palavra muito forte. Talvez seja indiferença. Muitos americanos desconfiam do Velho Mundo. Isso é possivelmente o que o presidente Bush sente.

...somente 15% de todos os cidadãos americanos já estiveram no exterior...
...mas eu acho extraordinário que alguém como o presidente Bush, um filho do establishment -ou da classe alta, se você quiser-, nunca tenha ido à Europa antes de se tornar presidente.

Poderia ser esse o motivo pelo qual no momento as relações entre americanos e europeus estão na pior situação desde 1945? Como alguém nascido na Europa...
...como um americano renascido...

...essas tensões transatlânticas devem preocupá-lo profundamente.
Não dou atenção ao antiamericanismo europeu. Ele é endêmico na Europa há 200 anos, assim como o é para os americanos caçoar dos "sapos" [franceses] e dos "krauts" [alemães]. Não tem muita importância. Mas a falta de respeito mútuo e de disposição para escutar-se reciprocamente, que hoje se pode observar no nível das relações governamentais, isso pode ser perigoso.

O sr. serviu no Exército americano -em 1955 esteve em Göppingen, Baden-Würtemberg, como soldado de infantaria. O sr. gostou de ficar na Alemanha?
Foi uma experiência fascinante. O uniforme era uma cobertura protetora maravilhosa. Eu achava que ele me tornava invulnerável. Ele estabelecia minha identidade como um soldado americano em um país derrotado. Uma experiência muito diferente para mim em relação aos alemães!

E a guerra tinha terminado havia muito tempo.
Mas ainda estava muito presente. Göppingen não foi danificada, mas em Stuttgart ou Ulm bairros inteiros estavam em ruínas. Devo admitir que me enchia de satisfação ver a destruição.

E as pessoas?
Os alemães eram um povo muito humilhado. Mas não devo ser tão vingativo, porque fiz amizade com alguns alemães. Havia um professor, por exemplo, que leu comigo "Fausto" no original. Na época meu alemão era muito melhor do que hoje.


Nunca deixei de ter medo da violência, de outros homens; não consigo entender pessoas que viveram a guerra em circunstâncias como a minha e não perderam a coragem


O sr. contou a esses amigos que era judeu e quase foi morto pelos alemães?
Não, nunca.

Isso quer dizer que foi na condição de soldado americano que o sr. fez amizade com os alemães -e não como o sr. mesmo?
Não, era eu sim, mas nunca achei que tivesse a obrigação de me revelar.

E antes? O sr. contou aos americanos sobre seu passado, depois que foi para os EUA com seus pais?
Sim, sempre que me perguntavam, o que se tornou cada vez menos frequente. Em geral eu tentava ser um americano e me comportar como americano, tanto quanto possível.

O que isso quer dizer?
Falar inglês o melhor possível, aprender como as coisas funcionam aqui. Eu queria pensar, agir e ser como um americano. Esse é um dos motivos pelos quais evitei ficar preso a outros imigrantes, incluindo o meio polonês -judeus e não-judeus. Eu queria viver entre os americanos.

E garantir que não seria lembrado por sua infância?
De modo nenhum. As pessoas não ficavam me lembrando da minha infância. Os americanos, é claro, tinham ouvido falar dos campos de concentração e das outras maneiras como os alemães mataram os judeus. Mas, ao contrário de hoje, quando as crianças de jardim-de-infância sabem sobre o Holocausto, na época -estou falando do final dos anos 40 e início dos 50- esse capítulo da história estava em grande parte escondido atrás de um muro de silêncio. Muitos assuntos pareciam ser tabu. Eu via uma notável falta de curiosidade da parte de meus colegas estudantes, no colegial e na faculdade.

O sr. conversava com seus pais sobre o passado?
É claro que sim, mas era um assunto doloroso e eu não tinha muita vontade de abordá-lo. Lembre-se de que fui para Harvard com 16 anos. A faculdade significou uma grande liberdade para mim. Em grande medida significava poder viver no presente e para o futuro, e não no passado.

Seu passado foi um problema na faculdade?
É claro que era evidente que eu não vinha de uma família padrão de Harvard: uma família branca, rica e não-judia. Mas isso não foi um problema, no sentido de interferir no fato de eu ter uma vida muito feliz em Harvard ou uma carreira estudantil de sucesso.

O anti-semitismo não era raro nos Estados Unidos nos anos 50. Isso o incomodava?
Sem dúvida, havia uma espécie de anti-semitismo social que era muito claro em Harvard. Como ele se expressava? Principalmente em coisas menores. Na época era impensável que estudantes judeus, mesmo de famílias distintas e ricas, fossem eleitos para um dos bons clubes de estudantes. Mas também era igualmente impensável que um não-judeu de classe baixa fosse eleito. Então você poderia dizer que os judeus elegantes sofriam uma degradação social pelo fato de serem judeus.

Depois de estudar literatura, o sr. foi para a faculdade de direito para entender melhor o mundo?
Gostaria de poder dizer isso. Na verdade eu só sabia que precisava ganhar a vida. Não fazia idéia da atuação dos advogados. Só sabia que direito é uma profissão liberal, e meus preconceitos europeus me diziam que, já que precisava trabalhar, era melhor ser membro de uma profissão liberal.

Poderíamos dizer que o fato de ser advogado lhe deu a oportunidade de manter uma distância profissional entre o sr. e outras pessoas?
Suponho que sim. Não sou gregário, mas sempre sou muito curioso sobre as pessoas. Isso não significa que eu tenha necessariamente de falar com elas. Acho as conversas miúdas muito cansativas, embora acredite que poderia conversar com uma parede, se necessário. A prática do direito nos dá a oportunidade de observar à distância. Acho isso muito confortável. É claro que o direito me deu uma oportunidade única de aprender o funcionamento de nossa complexa sociedade -como o capital é utilizado e como se ganha e se perde dinheiro.

Supostamente o sr. representou com maior frequência os vencedores.
Não necessariamente. Ser advogado corresponde a uma coisa profundamente arraigada em mim: prefiro ser o defensor dos interesses de outras pessoas que dos meus próprios. Sou muito bom em barganhar em benefício de outras pessoas, mas não para mim mesmo.

Após 30 anos como advogado, o sr. tirou quatro meses de folga e escreveu "Infância de Mentira" [Cia. das Letras], um romance sobre sua infância. Começar a escrever aos 56 anos é impressionante. Por que esperou tanto?
Eu já tinha percebido no colégio que escrevia bastante bem. Mas achava que não tinha um tema, que não conhecia meu novo ambiente o suficiente para escrever sobre ele. É claro que isso era burrice, porque você pode escrever sobre o fato de não compreender o mundo em que vive. Mas isso não me ocorreu como uma saída.

E mais tarde?
Mais tarde eu simplesmente não tinha tempo para pensar em escrever ficção. Eu tinha -e ainda tenho- uma profissão absorvente. Também havia as exigências de minha família, especialmente quando as crianças eram pequenas. Felizmente minha mulher, Anka, me incentivou a tirar uma folga. Eu hesitava muito sobre isso, porque tinha certa esperança de escrever um livro, mas não tinha certeza se seria capaz. Acontece que comecei a escrever "Infância de Mentira" imediatamente e continuei até terminar, em quatro meses.

Já tinha a história na cabeça?
Sim, eu pensava nela esporadicamente. Mas conscientemente não fiz nenhuma pesquisa. Para mim estava claro que queria escrever um romance, e não uma autobiografia. De certa maneira queria escrever um romance que tivesse o distanciamento de um conto de fadas. Um conto de fadas em que infelizmente tudo é verdadeiro. Não há nada em "Infância de Mentira" que eu não tenha vivido pessoalmente ou não me tenha sido contado na época por outros que viveram isso.

Escrever o acalma?
Eu já era calmo antes.

O sr. ainda é perseguido por suas memórias?
As memórias da guerra? Certamente. Acho que não há uma noite em que eu não tenha pesadelos sobre o tempo da guerra. É muito estranho, porque não tive as piores experiências na época -não estive no gueto, não estive em um campo de concentração, nunca fui espancado ou agredido fisicamente. Parece ter sido suficiente termos vivido sob o medo constante da violência e da morte, em circunstâncias humilhantes e realmente desumanas.

O medo muda tudo, diz o avô para o neto em "Infância de Mentira"...
Sim. Nunca deixei de ter medo da violência, medo de outros homens. Não consigo entender as pessoas que viveram durante a guerra em circunstâncias como a minha e não perderam a coragem.

O sr. disse antes que tentou ser um americano na juventude. Alguma vez parou de tentar?
Sim, se você quer dizer que parei de tentar abafar meu lado europeu, o lado que foi moldado por minhas experiências de guerra. Demorou muito tempo. Minha mulher contribuiu muito para esse processo. É a pessoa mais equilibrada que conheço. Aprendi com ela que não é necessário superar a lacuna entre o que eu era e o conceito do que eu poderia ter sido se fosse um americano com um passado diferente -o que foi uma tremenda libertação. Finalmente pude dizer a mim mesmo: estou aqui e sou quem eu sou.

Copyright: "Der Spiegel".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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