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Meia vida
AUTOR DE "O EMBRIÃO É UM SER VIVO?", FRANCIS KAPLAN AFIRMA QUE O EMBRIÃO AINDA NÃO POSSUI FUNÇÕES VITAIS E DEPENDE INTEIRAMENTE DA MÃE; PARA ELE, É PRECISO CRIAR UM NOVO CONCEITO DE EXISTÊNCIA
Podemos afirmar que o embrião é vivo assim como meu olho, porque enxerga, é vivo em oposição a um olho cego, que podemos considerar um olho morto
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DA REDAÇÃO
Diretor do departamento de filosofia
da Universidade de Tours, Francis Kaplan lançou em janeiro, na França, "L'Embryon
Est-Il un Être Vivant ?" (O Embrião É um Ser Vivo?, ed. Le
Félin, 112 págs., 16,90, R$ 45),
em que responde negativamente à questão. Na entrevista
abaixo, concedida a Lucette Finas e publicada originalmente
na "Quinzaine Littéraire", discute desde a abordagem religiosa à questão até a possibilidade de afirmar que um feto pode ser "mais ou menos vivo".
PERGUNTA - A primeira coisa que
me surpreendeu ao ler seu livro "O
Embrião É um Ser Vivo?" é que, contrariamente à opinião generalizada,
a afirmação feita pela Igreja Católica
de que o embrião é um ser vivo desde a concepção não resulta da fé -o
que implicaria que nenhuma discussão do assunto seria possível porque, por definição, a fé não pode ser
objeto de discussões.
FRANCIS KAPLAN - O fato, que
costuma ser ignorado, é que,
até meados do século 19, a igreja considerou, explícita e oficialmente, que o embrião não
se torna um ser vivo até o 40º
dia após a concepção -80º, no
caso das meninas- e que, portanto, o aborto apenas é homicídio a partir desse momento.
É o que diz Tomás de Aquino
[cerca de 1225-74], o teólogo
que possui a maior autoridade
na Igreja Católica, é o que repetem Sixto 5º e Gregório 14 e é o
que ensina o catecismo romano
de Pio 4º e Pio 5º.
E, se desde então a Igreja Católica mudou de opinião, não
foi por razões teológicas, mas,
como diz Bento 16, em razão do
que ela acredita que a ciência
moderna afirma.
Portanto, uma discussão é
possível -evidentemente, somente nos terrenos científico e
epistemológico. Vale notar que
80 dias correspondem praticamente ao período durante o
qual o aborto é legalmente autorizado na França.
PERGUNTA - Como a ciência -e a
epistemologia- podem demonstrar que o embrião não é um ser vivo
desde a concepção ?
KAPLAN - Para isso, é preciso
distinguir entre "estar vivo" e
"ser um ser vivo".
Podemos afirmar que o embrião é vivo do mesmo modo
que podemos dizer que meu
olho, porque enxerga, é vivo em
oposição a um olho cego, que
podemos considerar como um
olho morto; que minha mão,
porque sabe segurar, é uma
mão viva, em oposição a uma
mão paralisada, que podemos
considerar uma mão morta no
mesmo sentido em que falamos
em folhas mortas, tecidos mortos, células mortas.
Mas nem meu olho nem minha mão são seres vivos. Um
ser vivo é um ser que tem funções ditas precisamente vitais,
de tal modo que formam um
sistema -ou seja, que mantêm
vivo o ser vivo e que, se uma delas deixa de funcionar, nenhuma outra consegue funcionar, o
que faz com que o ser se decomponha. Minha mão, meu olho,
embora tenham uma função
(segurar, enxergar), não têm
funções que os mantêm em vida; logo, não são seres vivos.
Eles não são mantidos vivos
senão pelo ser vivo ao qual pertencem -no caso, eu, que sou
um ser vivo. São, como diz Buffon, "partes orgânicas vivas".
Quanto ao embrião, ele não
possui praticamente nenhuma
função vital; as funções vitais
das quais precisa para estar vivo são as da mãe.
É graças à função digestiva da
mãe que ele recebe o alimento
digerido do qual tem necessidade e do qual não poderia fazer uso se não tivesse sido previamente digerido pela mãe; é
graças à função glicogênica do
fígado da mãe que ele recebe a
glicose da qual precisa; é graças
à função respiratória da mãe
que os glóbulos vermelhos de
seu sangue recebem o oxigênio
de que necessitam; é graças à
função excretória da mãe que
ele expulsa materiais prejudiciais, dejetos que, de outro modo, o envenenariam.
PERGUNTA - Isso significaria que o
embrião é uma parte da mãe, assim
como o olho é uma parte do ser vivo
ao qual pertence. Mas o embrião
provém também do pai, e como é
possível que seja ao mesmo tempo
parte de um ser vivo -a mãe- e
parte de outro ser vivo -o pai? Não
devemos deduzir disso que ele é um
novo ser vivo, independente tanto
da mãe como do pai?
KAPLAN - Mas como pode ser
um ser vivo, se não possui as
funções vitais que o mantêm
em vida? De qualquer maneira,
não é uma parte do pai, porque
não é o pai que o mantém vivo.
Contrariamente ao que aparenta geralmente ser o caso, é
essencial para um ser vivo ter
uma mãe, mas não lhe é essencial ter um pai. Certos animais
nascem por partenogênese.
Um biólogo sul-coreano obteve -por sinal, inadvertidamente- um início de partenogênese humana. Se ainda não foi clonado um ser humano, o
fato de que seja proibido realizar essa clonagem prova que
ela é vista como possível.
E, se o óvulo cujo núcleo é retirado, o núcleo introduzido
nele e o útero no qual é implantado pertencerem à mesma
mulher, isso será, de fato, uma
verdadeira partenogênese.
E, se um embrião obtido em
tais condições -logo, um embrião sem pai- se desenvolver
normalmente, sem distinguir-se essencialmente de um embrião com pai, a razão que a sra.
me apresenta para dizer que ele
é um ser vivo não existirá mais,
e restariam válidas apenas as
razões para se afirmar que ele
não o é.
Por que, então, diferenciar
um embrião com pai desse embrião sem pai, dizendo que o
primeiro é um ser vivo?
De fato, aquilo que chamamos de "a parte do pai" no embrião é uma parte de seus cromossomos, e aquilo que chamamos de concepção corresponde, praticamente, a um enxerto desses cromossomos no
óvulo da mãe. E um enxerto
nunca levou ao surgimento de
um novo ser.
PERGUNTA - Não se pode afirmar
pelo menos que um embrião é um
ser vivo em potencial, e que destruir
um ser vivo em potencial é quase
tão grave quanto matar um ser vivo
"concretizado", já que um ser vivo
em potencial, se não o destruirmos,
irá necessariamente, excetuando algum acidente de percurso, converter-se num ser vivo "concretizado"?
KAPLAN - Necessariamente, como a sra. diz, que dizer em particular por ele mesmo, ou seja,
que essa passagem do ser vivo
potencial ao estado de ser vivo
"concretizado" se explica unicamente por fatores internos.
Uma folha de papel não se
torna um desenho senão pela
intervenção de um fator externo ao papel -o desenhista-, e
ninguém dirá que destruir uma
folha de papel é quase tão grave
quanto destruir um desenho.
Uma bolota de carvalho é potencialmente um carvalho, já
que o solo no qual é plantada
exerce papel apenas nutricional e sua passagem do estado de
bolota ao estado de carvalho se
deve unicamente a fatores internos da bolota.
Pensa-se que o mesmo acontece com o embrião. A realidade não é essa: os estudos mais
recentes de embriologia -cujo
alcance ainda não foi plenamente medido- mostram o papel necessário da mãe.
Não é o embrião que se desenvolve -é a mãe que o desenvolve. É significativo o que declara um dos autores desse trabalho: é a mãe que, "por meio
da produção da serotonina periférica no sangue, determina,
durante mais de metade da gestação, o desenvolvimento neurobiológico e a viabilidade futura do organismo que carrega".
Nunca se conseguiu chegar
ao desenvolvimento do embrião apenas colocando-o num
meio meramente nutritivo; o
que se obtém não passa de uma
multiplicação desordenada de
células.
Portanto, o poder é da mãe
-o poder de dar a nascer um
ser vivo-, e não do embrião.
PERGUNTA - Não podemos, mesmo
assim, considerar que, na véspera do
parto, o feto já é um ser vivo? E, sendo assim, se não é um ser vivo imediatamente após a concepção, a
partir de quando o é?
KAPLAN - Estamos diante de
um fenômeno de continuidade,
como a calvície. E assim como,
no caso da calvície, não estamos reduzidos a uma única alternativa -calvo ou não-, já
que é possível ser mais ou menos calvo, no que diz respeito
ao feto não estamos reduzidos à
única alternativa de ser um ser
vivo ou não ser um ser vivo. A
continuidade implica que o feto
possa ser mais ou menos um
ser vivo.
No que diz respeito ao aborto, precisamos inventar um
conceito novo -o de ser suficientemente um ser vivo. E sua
pergunta passa a ser: "A partir
de quando um feto é suficientemente um ser vivo?".
Isso dito, não podemos responder a essa pergunta de maneira rigorosa, assim como não
podemos responder com precisão à pergunta "qual é o número de fios de cabelo necessários
para que se possa dizer que alguém não é calvo?".
São limites necessariamente
imprecisos. Por sinal, esse é o
caso da maioria das constantes
biológicas: o número normal
-ou seja, não patológico- de
leucócitos no sangue é de 4.000
a 10 mil por mm3, mas nenhum
médico dirá que quem possui
3.990 ou 10.050 é doente, nem
o tratará como tal.
Do mesmo modo, voltando à
questão do aborto, convém inverter a pergunta: até quando o
embrião (ou o feto, nome dado
ao embrião a partir do terceiro
mês de gestação) não é suficientemente um ser vivo?
E a resposta é simples: pelo
menos até o final do terceiro
mês, pois até então ele não tem
atividade cerebral, e um homem sem atividade cerebral é
considerado clinicamente
morto.
O que, na prática, corresponde ao prazo legal na França no
qual os abortos são autorizados
e, em outros países que autorizam um prazo mais longo, corresponde ao prazo dentro do
qual a maioria das mulheres
que quer abortar aborta, mesmo que elas possam legalmente fazê-lo mais tarde.
PERGUNTA - Suas considerações o
levam a lançar um olhar novo sobre
o aborto?
KAPLAN - Acredito firmemente
que sim.
Esta entrevista saiu na "Quinzaine Littéraire".
Tradução de Clara Allain .
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