São Paulo, domingo, 13 de abril de 2008

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Meia vida

AUTOR DE "O EMBRIÃO É UM SER VIVO?", FRANCIS KAPLAN AFIRMA QUE O EMBRIÃO AINDA NÃO POSSUI FUNÇÕES VITAIS E DEPENDE INTEIRAMENTE DA MÃE; PARA ELE, É PRECISO CRIAR UM NOVO CONCEITO DE EXISTÊNCIA


Podemos afirmar que o embrião é vivo assim como meu olho, porque enxerga, é vivo em oposição a um olho cego, que podemos considerar um olho morto

DA REDAÇÃO

Diretor do departamento de filosofia da Universidade de Tours, Francis Kaplan lançou em janeiro, na França, "L'Embryon Est-Il un Être Vivant ?" (O Embrião É um Ser Vivo?, ed. Le Félin, 112 págs., 16,90, R$ 45), em que responde negativamente à questão. Na entrevista abaixo, concedida a Lucette Finas e publicada originalmente na "Quinzaine Littéraire", discute desde a abordagem religiosa à questão até a possibilidade de afirmar que um feto pode ser "mais ou menos vivo".  

PERGUNTA - A primeira coisa que me surpreendeu ao ler seu livro "O Embrião É um Ser Vivo?" é que, contrariamente à opinião generalizada, a afirmação feita pela Igreja Católica de que o embrião é um ser vivo desde a concepção não resulta da fé -o que implicaria que nenhuma discussão do assunto seria possível porque, por definição, a fé não pode ser objeto de discussões.
FRANCIS KAPLAN
- O fato, que costuma ser ignorado, é que, até meados do século 19, a igreja considerou, explícita e oficialmente, que o embrião não se torna um ser vivo até o 40º dia após a concepção -80º, no caso das meninas- e que, portanto, o aborto apenas é homicídio a partir desse momento.
É o que diz Tomás de Aquino [cerca de 1225-74], o teólogo que possui a maior autoridade na Igreja Católica, é o que repetem Sixto 5º e Gregório 14 e é o que ensina o catecismo romano de Pio 4º e Pio 5º.
E, se desde então a Igreja Católica mudou de opinião, não foi por razões teológicas, mas, como diz Bento 16, em razão do que ela acredita que a ciência moderna afirma.
Portanto, uma discussão é possível -evidentemente, somente nos terrenos científico e epistemológico. Vale notar que 80 dias correspondem praticamente ao período durante o qual o aborto é legalmente autorizado na França.

PERGUNTA - Como a ciência -e a epistemologia- podem demonstrar que o embrião não é um ser vivo desde a concepção ?
KAPLAN
- Para isso, é preciso distinguir entre "estar vivo" e "ser um ser vivo".
Podemos afirmar que o embrião é vivo do mesmo modo que podemos dizer que meu olho, porque enxerga, é vivo em oposição a um olho cego, que podemos considerar como um olho morto; que minha mão, porque sabe segurar, é uma mão viva, em oposição a uma mão paralisada, que podemos considerar uma mão morta no mesmo sentido em que falamos em folhas mortas, tecidos mortos, células mortas.
Mas nem meu olho nem minha mão são seres vivos. Um ser vivo é um ser que tem funções ditas precisamente vitais, de tal modo que formam um sistema -ou seja, que mantêm vivo o ser vivo e que, se uma delas deixa de funcionar, nenhuma outra consegue funcionar, o que faz com que o ser se decomponha. Minha mão, meu olho, embora tenham uma função (segurar, enxergar), não têm funções que os mantêm em vida; logo, não são seres vivos.
Eles não são mantidos vivos senão pelo ser vivo ao qual pertencem -no caso, eu, que sou um ser vivo. São, como diz Buffon, "partes orgânicas vivas".
Quanto ao embrião, ele não possui praticamente nenhuma função vital; as funções vitais das quais precisa para estar vivo são as da mãe.
É graças à função digestiva da mãe que ele recebe o alimento digerido do qual tem necessidade e do qual não poderia fazer uso se não tivesse sido previamente digerido pela mãe; é graças à função glicogênica do fígado da mãe que ele recebe a glicose da qual precisa; é graças à função respiratória da mãe que os glóbulos vermelhos de seu sangue recebem o oxigênio de que necessitam; é graças à função excretória da mãe que ele expulsa materiais prejudiciais, dejetos que, de outro modo, o envenenariam.

PERGUNTA - Isso significaria que o embrião é uma parte da mãe, assim como o olho é uma parte do ser vivo ao qual pertence. Mas o embrião provém também do pai, e como é possível que seja ao mesmo tempo parte de um ser vivo -a mãe- e parte de outro ser vivo -o pai? Não devemos deduzir disso que ele é um novo ser vivo, independente tanto da mãe como do pai?
KAPLAN
- Mas como pode ser um ser vivo, se não possui as funções vitais que o mantêm em vida? De qualquer maneira, não é uma parte do pai, porque não é o pai que o mantém vivo.
Contrariamente ao que aparenta geralmente ser o caso, é essencial para um ser vivo ter uma mãe, mas não lhe é essencial ter um pai. Certos animais nascem por partenogênese.
Um biólogo sul-coreano obteve -por sinal, inadvertidamente- um início de partenogênese humana. Se ainda não foi clonado um ser humano, o fato de que seja proibido realizar essa clonagem prova que ela é vista como possível.
E, se o óvulo cujo núcleo é retirado, o núcleo introduzido nele e o útero no qual é implantado pertencerem à mesma mulher, isso será, de fato, uma verdadeira partenogênese.
E, se um embrião obtido em tais condições -logo, um embrião sem pai- se desenvolver normalmente, sem distinguir-se essencialmente de um embrião com pai, a razão que a sra. me apresenta para dizer que ele é um ser vivo não existirá mais, e restariam válidas apenas as razões para se afirmar que ele não o é.
Por que, então, diferenciar um embrião com pai desse embrião sem pai, dizendo que o primeiro é um ser vivo?
De fato, aquilo que chamamos de "a parte do pai" no embrião é uma parte de seus cromossomos, e aquilo que chamamos de concepção corresponde, praticamente, a um enxerto desses cromossomos no óvulo da mãe. E um enxerto nunca levou ao surgimento de um novo ser.

PERGUNTA - Não se pode afirmar pelo menos que um embrião é um ser vivo em potencial, e que destruir um ser vivo em potencial é quase tão grave quanto matar um ser vivo "concretizado", já que um ser vivo em potencial, se não o destruirmos, irá necessariamente, excetuando algum acidente de percurso, converter-se num ser vivo "concretizado"?
KAPLAN
- Necessariamente, como a sra. diz, que dizer em particular por ele mesmo, ou seja, que essa passagem do ser vivo potencial ao estado de ser vivo "concretizado" se explica unicamente por fatores internos.
Uma folha de papel não se torna um desenho senão pela intervenção de um fator externo ao papel -o desenhista-, e ninguém dirá que destruir uma folha de papel é quase tão grave quanto destruir um desenho.
Uma bolota de carvalho é potencialmente um carvalho, já que o solo no qual é plantada exerce papel apenas nutricional e sua passagem do estado de bolota ao estado de carvalho se deve unicamente a fatores internos da bolota.
Pensa-se que o mesmo acontece com o embrião. A realidade não é essa: os estudos mais recentes de embriologia -cujo alcance ainda não foi plenamente medido- mostram o papel necessário da mãe.
Não é o embrião que se desenvolve -é a mãe que o desenvolve. É significativo o que declara um dos autores desse trabalho: é a mãe que, "por meio da produção da serotonina periférica no sangue, determina, durante mais de metade da gestação, o desenvolvimento neurobiológico e a viabilidade futura do organismo que carrega".
Nunca se conseguiu chegar ao desenvolvimento do embrião apenas colocando-o num meio meramente nutritivo; o que se obtém não passa de uma multiplicação desordenada de células.
Portanto, o poder é da mãe -o poder de dar a nascer um ser vivo-, e não do embrião.

PERGUNTA - Não podemos, mesmo assim, considerar que, na véspera do parto, o feto já é um ser vivo? E, sendo assim, se não é um ser vivo imediatamente após a concepção, a partir de quando o é?
KAPLAN
- Estamos diante de um fenômeno de continuidade, como a calvície. E assim como, no caso da calvície, não estamos reduzidos a uma única alternativa -calvo ou não-, já que é possível ser mais ou menos calvo, no que diz respeito ao feto não estamos reduzidos à única alternativa de ser um ser vivo ou não ser um ser vivo. A continuidade implica que o feto possa ser mais ou menos um ser vivo.
No que diz respeito ao aborto, precisamos inventar um conceito novo -o de ser suficientemente um ser vivo. E sua pergunta passa a ser: "A partir de quando um feto é suficientemente um ser vivo?".
Isso dito, não podemos responder a essa pergunta de maneira rigorosa, assim como não podemos responder com precisão à pergunta "qual é o número de fios de cabelo necessários para que se possa dizer que alguém não é calvo?".
São limites necessariamente imprecisos. Por sinal, esse é o caso da maioria das constantes biológicas: o número normal -ou seja, não patológico- de leucócitos no sangue é de 4.000 a 10 mil por mm3, mas nenhum médico dirá que quem possui 3.990 ou 10.050 é doente, nem o tratará como tal.
Do mesmo modo, voltando à questão do aborto, convém inverter a pergunta: até quando o embrião (ou o feto, nome dado ao embrião a partir do terceiro mês de gestação) não é suficientemente um ser vivo?
E a resposta é simples: pelo menos até o final do terceiro mês, pois até então ele não tem atividade cerebral, e um homem sem atividade cerebral é considerado clinicamente morto.
O que, na prática, corresponde ao prazo legal na França no qual os abortos são autorizados e, em outros países que autorizam um prazo mais longo, corresponde ao prazo dentro do qual a maioria das mulheres que quer abortar aborta, mesmo que elas possam legalmente fazê-lo mais tarde.

PERGUNTA - Suas considerações o levam a lançar um olhar novo sobre o aborto?
KAPLAN
- Acredito firmemente que sim.


Esta entrevista saiu na "Quinzaine Littéraire". Tradução de Clara Allain .

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