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Nascimento tardio
ATENÇÃO DADA À CRIANÇA COMO SER ÍNTEGRO DOS PONTOS DE VISTA SOCIOLÓGICO E PSICOLÓGICO TEVE SEU INÍCIO NO SÉCULO 18, COM ROUSSEAU
RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
Uma das reações ao
assassinato de Isabella Nardoni -a
precipitação da
imprensa, de certos investigadores e até de
membros do Judiciário em
acusar o pai da menina- incita
a refletir. Por que tanta pressa
para encontrar um culpado, infringindo o elementar direito
desse homem à presunção de
inocência e eventualmente a
um julgamento justo?
E isso apesar do precedente
da Escola Base, no qual os adultos suspeitos de abuso sexual
contra um menino se mostraram inocentes.
É natural que tragédias suscitem comoção pública: alguns
leitores talvez se lembrem de
incêndios como os do Andraus
e do Joelma, e, mais recentemente, o tsunami, o furacão
Katrina, o acidente da Gol também despertaram revolta e solidariedade.
Mas nem toda tragédia é um
crime: casos como o de Isabella, como o de mães que tentam
matar seus bebês indesejados,
provocam uma repulsa mais
profunda porque põem em jogo a crença na naturalidade dos
sentimentos familiares.
Se hoje a violência contra
crianças nos parece particularmente hedionda, convém lembrar que essa é uma atitude recente. Durante séculos, ela foi
aceita como legítima, quer no
interesse da própria criança
(castigos físicos como parte da
educação do caráter, por exemplo), quer no dos pais (abandono de filhos ilegítimos na "roda
dos enjeitados") ou da sociedade (infanticídio eugênico em
Esparta, assim como em certas
tribos indígenas e africanas).
Direito de vida e morte
O princípio que justificava
tais práticas era bem expresso
na Lei das Doze Tábuas: "O pai
tem direito de vida e morte sobre seus filhos, assim como de
os vender" (tábua 5, 2).
A mesma regra vale em inúmeras sociedades antigas e
mesmo atuais: como prova da
sua fé, Jeová exige de Abraão
que sacrifique Isaac; como não
há alimento para todos os
membros da família, João e
Maria são enviados para morrer na floresta; Édipo é abandonado no monte Citerão devido
à profecia segundo a qual mataria seu pai; repetindo o faraó,
Herodes manda matar os meninos judeus para evitar que
um deles se torne o salvador do
povo; bebês do sexo feminino
são assassinadas na China porque o único filho permitido pela lei deve ser menino -os
exemplos encheriam toda esta
página.
Foi com a idéia cristã de um
Deus menino que começaram a
surgir práticas mais respeitosas para com as crianças, como
a educação dos abandonados
nos mosteiros medievais. Mas a
categoria psicológica e sociológica da infância é recente: data
do século 18 (Rousseau).
A percepção de que os pequenos seres humanos têm características emocionais e intelectuais distintas daquelas dos
adultos levou à criação da "nursery", com seus brinquedos e
jogos, e de histórias próprias
para eles: primeiro, as de Hans
Christian Andersen, depois as
de fada, até chegarmos aos desenhos animados; o primeiro
longa-metragem do gênero,
"Branca de Neve", retoma a
história de uma garota cuja
morte é desejada.
Crença na pureza
Essa evolução dos costumes
produziu a crença na "inocência" e na "pureza" da criança,
em particular no que se refere à
sexualidade.
As descobertas psicanalíticas
mostram que as coisas são um
pouco diferentes, mas é importante frisar que elas não invalidam a dimensão jurídica da
proteção aos menores: o pequeno é mais fraco do que o
grande, e, portanto, o crime
contra ele é considerado mais
grave que o praticado entre
iguais.
Já a lei romana prescrevia:
"O tutor que agir com dolo será
destituído com infâmia e pagará em dobro o prejuízo causado" (tábua 7, 11). O que é condenado aqui é o abuso de confiança, que, além de ser um delito, é
também uma transgressão aos
princípios da ética.
Um marco histórico na percepção de que a criança é sujeito de direitos foi a Declaração
dos Direitos adotada sobre ela
pela ONU em 1959, base para o
nosso Estatuto da Criança e do
Adolescente, que, apesar de algumas falhas, é uma boa lei.
O fato de ela ter "pegado"
mostra que a sociedade brasileira está disposta a cuidar melhor das novas gerações e a punir os que agirem de modo contrário -e isso é um avanço civilizatório.
Situações intoleráveis
Prova disso é que situações
que há poucas décadas deixavam as pessoas indiferentes ou
apenas suscitavam protestos
da boca para fora, como a exploração do trabalho infantil,
são hoje tidas por intoleráveis.
A esses dados de ordem sociológica e política o psicanalista pode acrescentar que o abuso sexual, a pedofilia, a brutalidade na punição, o infanticídio
não nos chocam apenas porque
ofendem o princípio da
proteção ao mais fraco,
mas também porque mobilizam ansiedades infantis à
ameaça representada pelo
adulto (bruxas, ogros).
Além disso, há a angústia
diante da possibilidade de
que venhamos a ter tais desejos e idéias -ou, pior, a
praticar tais atos, que correspondem a fantasias inconscientes mais difundidas do que gostaríamos de
acreditar.
Exorcismo
Demonizar o pai de Isabella pode ter a função de
exorcizar algo que tememos, porque inconscientemente também desejamos
-a possibilidade de prejudicar, pouco ou muito, os
pequenos que dependem
de nós. Já o sabia o profeta
Jeremias: "Os pais comem
uvas verdes, e os dentes
dos filhos apodrecerão?"
("Jeremias", 31:29).
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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