São Paulo, domingo, 13 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Livros

Complô no escritório

Best-seller da era digital, "A Exceção", do dinamarquês Christian Jungersen, trata com ligeireza as desventuras do mercado de trabalho

RICARDO ANTUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

As desventuras no mundo do trabalho da era informacional-digital encontram exemplos nos mais distintos ramos de atividade existentes no planeta: das trabalhadoras em telemarketing aprisionadas nas "baias" dos "call centers" aos jovens assalariados esfolados nos fast foods; dos imigrantes que perambulam pelo mundo atrás de qualquer labor a trabalhadores escravizados no agronegócio.
Ou ainda do novo proletariado terceirizado das empresas industriais e de serviços aos gestores que se suicidam com o fracasso de seus projetos (como ocorreu recentemente na Renault francesa) ou nos intermináveis exemplos de "karoshi" [morte por excesso de trabalho] no Japão; nos assalariados "part-time" que se expandem pelos serviços ao "ciberproletariado" que atua no espaço digital e vivencia o derretimento e a liqüidez da contratualidade do trabalho, agora considerada coisa do passado pelas corporações, na desenfreada competitividade destrutiva global em que se envolvem.

Outras direções
No plano fílmico, há vários exemplos expressivos. Lembro apenas dois: "O Corte" ("Le Couperet"), de Costa-Gavras, e "O Que Você Faria?" ("El Método"), de Marcelo Piñeyro. O primeiro é ácido em sua propositura: para conseguir emprego nos escalões médios e altos da gestão empresarial, é preciso eliminar (fisicamente) a concorrência.
O segundo mostra uma luta acirrada por uma vaga em uma empresa espanhola, versão fina que encontra um símile nativo no patético e injusto "O Aprendiz", de Roberto Justus, onde tudo vale para eliminar o outro da contenda.
No plano literário, para ficar num exemplo mais recente, vale recordar "A Caverna" [Companhia das Letras], de José Saramago, que também é cáustico. A cada profissão provida de destreza que desaparece corresponde um supérfluo a mais jogado na selva do desemprego.
Numa primeira impressão, "A Exceção", do dinamarquês Christian Jungersen, parece uma proposta ficcional fundada nas desventuras do trabalho realizado no interior de um centro de informações sobre genocídio de Copenhague. Uma trama envolvendo quatro trabalhadoras qualificadas e um coordenador.
Entretanto, mais do que uma trama de infortúnios causados pela corrosão dos postos de trabalho, a ficção caminha por outras direções.
Desde logo, afloram em alta intensidade os descaminhos de quatro subjetividades que se desentendem em decorrência das diferentes pessoalidades.

Thriller
Nesse plano, o livro é um thriller típico da era informacional-digital, que começa quando um conjunto de e-mails anônimos passa a ameaçar e a infernizar a vida das trabalhadoras em razão das atividades de denúncia contra os genocídios.
Trata-se muito mais de uma história de crime da era informacional-digital que atinge e acaba por desagregar as trabalhadoras do que uma reflexão viva e densa sobre os estranhamentos do trabalho, temática essa inexistente na ficção.
O texto só oferece algum atrativo pela tensa trama entre os possíveis responsáveis pela ameaça, que ora são encontrados nos líderes dos grupos de extermínio, ora entre as próprias trabalhadoras, num incansável processo em que a responsabilização de uma pelas demais torna a vida no trabalho um inferno.
Mas atenção: o livro aqui, no máximo, é de suspense, sem nenhuma expressão minimamente indicativa dos complexos dilemas do mundo do trabalho. Assédios, incompatibilidades, desajustes, competições quase sempre são apresentados no plano estritamente psicologizante, desprovidos dos nexos societais mais profundos.
Por outro lado, como a trama ocorre num centro de estudos e informações sobre o genocídio, a ficção oferece um esboço desse fenômeno que tem relevância e vem se amplificando em escala mundial. E, quando o texto discorre acerca da problemática do genocídio, ganha um pequeno salto qualitativo.
Pode-se compreender, então, por que o livro tem a pretensão de ser um best-seller: ele é um passatempo de leitura que não chega a ser literatura.
Trata-se, pois, de um thriller ligeiro no que concerne às desventuras do trabalho e carente de autêntico valor literário. Mas, numa época em que o best-seller global provém da garatuja de Paulo Coelho, não é possível ter grandes ilusões.


RICARDO ANTUNES é professor titular de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas (SP) e organizador de "Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil" (ed. Boitempo).

A EXCEÇÃO
Autor:
Christian Jungersen
Tradução: Ryta Magalhães Vinagre
Editora: Intrínseca (tel. 0/xx/21/ 3874-0914)
Quanto: R$ 39,90 (560 págs.)


Texto Anterior: Isto é Onfray
Próximo Texto: + Poema: "Etheu Fugaces"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.