São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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Descoberta da obra de Mozart e amizade com Ismael Nery transformaram a produção do poeta

Os anjos tutelares de Murilo

Murilo Marcondes de Moura
especial para a Folha

O poema "Mozart" está contido no livro "Os Quatro Elementos", todo ele escrito em 1935. A data é significativa, pois é imediatamente posterior à conversão de Murilo Mendes ao catolicismo, precipitada pela morte do amigo Ismael Nery, em 1934. Nesse ano, como se sabe, Murilo Mendes tinha publicado o primeiro livro já de posse de seu "novo olhar" -"Tempo e Eternidade" (escrito em parceria com Jorge de Lima).
Como "Os Quatro Elementos" foi editado apenas em 1945 (juntamente com "Mundo Enigma"), os leitores da época não puderam então perceber o contraste que depois se fez evidente. Como foi possível, daquela tempestade religiosa, brotar uma poesia tão pouco inclinada aos arroubos metafísicos e abstratizantes, tão despojada e radicalmente lírica, em que o próprio título da coletânea sugeria um universo de referências muito distante da fé recente e enfaticamente adotada?
A surpresa é ainda maior se considerarmos que a linguagem de "Tempo e Eternidade", com seus versos longos e prosaicos, não tão diferentes (como técnica) da poesia de Augusto Frederico Schmidt, fazia supor quase um rompimento do poeta com a sua estréia modernista, quando foi saudado como um de nossos poetas mais experimentais. Já em "Os Quatro Elementos" há exclusividade das formas breves, e a pesquisa imagética, central na estética do autor, é retomada com radicalidade e frescor.
Essas dissonâncias não são incomuns na trajetória de Murilo Mendes e ajudam a revelar, de um outro ângulo, a enorme liberdade que ele sempre preservou diante das verdades ou princípios peremptórios -religiosos ou estéticos.

Mozart de fraque azul O ano de 1935 é também notável na trajetória do poeta por sua descoberta de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), que teria aparecido em seu quarto vestido de fraque azul. A partir daí, não são poucos os depoimentos de amigos que relatam os encontros com o poeta em seu quarto, repleto de quadros de Ismael Nery e da música ininterrupta saindo da vitrola, em especial a de seu mais novo conhecido. Ismael, morto aos 33 anos, e Mozart, aos 35, tornaram-se assim anjos tutelares do nosso poeta. O cenário é significativo e revela uma construção obstinada e mesmo afetada da identidade de artista, que não exclui a excentricidade como um de seus componentes essenciais.
Aqueles dois mortos entraram no espaço interior do poeta para não mais sair, e as referências a eles proliferaram, em poemas e depoimentos. Muito já se especulou e ainda se pode especular sobre essas duas presenças: a pintura e a música, essenciais na poética de Murilo Mendes; a igualmente importante interseção entre arte, espiritualidade e erotismo etc. Sobre Mozart, o poema em questão é o primeiro de uma longa série. Mas ele nos interessa aqui, sobretudo, como peça à parte -e também por ser um exemplo dos mais sugestivos de um livro ainda pouco investigado na trajetória heterogênea do poeta.
O poema, em sua transparência, parece dispensar qualquer mediação explicativa. O leitor crítico acha-se aqui em posição desconfortável, perigosamente inclinado a dois tipos de fracasso: ou o de apenas parafrasear a carga poética do texto ou o de encobrir, com a linguagem especializada, o que já estava revelado. Uma saída pode ser a de tentar surpreender algum núcleo do qual as imagens brotem, por assim dizer, espontaneamente. Como se trata do retrato de um compositor e o poema se impõe pela delicadeza, pode vir em nosso socorro uma palavra retirada da música: "harmonia".
"Combinação de sons que impressiona agradavelmente os ouvidos" é uma definição retirada de um dicionário de música, mas muitos outros sentidos, também dicionarizados, subjazem à palavra "harmonia": suavidade, doçura, enlevo, angélico, encanto, cristalino, paz, concórdia, tranquilidade, quietude, mansidão, aderência, consonância... Todas essas definições aplicam-se claramente ao poema, inclusive pela interpenetração que elas sugerem entre o visual e o auditivo, assim como entre o físico e o espiritual.

Texto hagiográfico Em contraposição aos inúmeros "noturnos" escritos por Murilo Mendes, "Mozart" é um poema da "manhã". Uma manhã entre outras, momento possível de uma audição enlevada da música de Mozart. Mas o enlevo faz transbordar o quadro cotidiano e o momento adquire densidade, provocando o poema. "O lirismo é o desenvolvimento de uma exclamação". A frase de Valéry se ajusta aqui como uma luva. Lido como um retrato de Mozart, o poema de Murilo Mendes é uma espécie de texto hagiográfico, em que são ressaltados o caráter excelso do músico ou a sua angelical pureza ("asas", "aero-amigo"). Lido como poema desentranhado de uma audição musical, ele consiste numa sucessão de imagens, em que a claridade da manhã se mistura aos acordes da música, explicando-se mutuamente.
Impregnado de luz e de sons, o poema é muito afirmativo, seja como um canto de admiração ao compositor (e por extensão à própria arte), seja como um canto de louvor à vida, percebida em sua plenitude. Nesse sentido, ele recorda a atmosfera de quadros de Chagall, em que prevalecem o onírico e o harmonioso (tantas vezes também associado à música).
"O mundo lavado" é uma expressão recorrente na obra de Murilo Mendes e alude tanto à regeneração cíclica da vida cósmica, renovada a cada manhã, quanto a rituais de purificação (como o batismo), preparatórios para uma "vida nova". O verso "Se levanta com quatro anos cantando" complementa a idéia, de modo que a infância se transforma no lugar próprio da harmonia.

Sob o signo da inocência De algum modo, portanto, a expressão da harmonia depende da inocência infantil. Tudo no texto está sob o signo do inaugural, de uma integridade e delicadeza anteriores a qualquer degradação. Por esse fato, o forte impulso afirmativo do texto se fundamenta em algumas estruturas negativas: harmonia é ausência de "véspera", ausência de "remorso" e ausência de "crime"; ausência, enfim, de experiência. Inocência efetiva (supõe-se) deve ser não apenas ausência do crime, mas desconhecimento dele. Certamente o poema está escrito do lado da experiência, e a harmonia é aqui antes uma construção, embora soe como espontânea.
Situado entre a lírica religiosa e a política (que viria com os livros escritos durante a Segunda Guerra Mundial), o lirismo delicado de "Os Quatro Elementos" nos revela uma outra face do poeta, confiante no poder transfigurador da arte e na imaginação criadora -capazes de propor "paraísos artificiais" como naturais.


Murilo Marcondes de Moura é professor de literatura brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais e autor do livro "Murilo Mendes - A Poesia como Totalidade" (Edusp/Giordano).


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