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Descoberta da obra de Mozart e amizade com Ismael Nery transformaram a produção do poeta
Os anjos tutelares de Murilo
Murilo Marcondes de Moura
especial para a Folha
O poema "Mozart" está contido no livro "Os
Quatro Elementos", todo ele escrito em 1935.
A data é significativa, pois é imediatamente
posterior à conversão de Murilo Mendes ao
catolicismo, precipitada pela morte do amigo Ismael
Nery, em 1934. Nesse ano, como se sabe, Murilo Mendes tinha publicado o primeiro livro já de posse de seu
"novo olhar" -"Tempo e Eternidade" (escrito em parceria com Jorge de Lima).
Como "Os Quatro Elementos" foi editado apenas em 1945 (juntamente com "Mundo Enigma"), os leitores
da época não puderam então perceber o contraste que
depois se fez evidente. Como foi possível, daquela tempestade religiosa, brotar uma poesia tão pouco inclinada aos arroubos metafísicos e abstratizantes, tão despojada e radicalmente lírica, em que o próprio título da coletânea sugeria um universo de referências muito distante da fé recente e enfaticamente adotada?
A surpresa é ainda maior se considerarmos que a linguagem de "Tempo e Eternidade", com seus versos longos e prosaicos, não tão diferentes (como técnica) da
poesia de Augusto Frederico Schmidt, fazia supor quase
um rompimento do poeta com a sua estréia modernista, quando foi saudado como um de nossos poetas mais
experimentais. Já em "Os Quatro Elementos" há exclusividade das formas breves, e a pesquisa imagética, central na estética do autor, é retomada com radicalidade e
frescor.
Essas dissonâncias não são incomuns na trajetória de
Murilo Mendes e ajudam a revelar, de um outro ângulo,
a enorme liberdade que ele sempre preservou diante
das verdades ou princípios peremptórios -religiosos
ou estéticos.
Mozart de fraque azul O ano de 1935 é também
notável na trajetória do poeta por sua descoberta de
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), que teria aparecido em seu quarto vestido de fraque azul. A partir
daí, não são poucos os depoimentos de amigos que relatam os encontros com o poeta em seu quarto, repleto de
quadros de Ismael Nery e da música ininterrupta saindo da vitrola, em especial a de seu mais novo conhecido.
Ismael, morto aos 33 anos, e Mozart, aos 35, tornaram-se assim anjos tutelares do nosso poeta. O cenário é significativo e revela uma construção obstinada e mesmo
afetada da identidade de artista, que não exclui a excentricidade como um de seus componentes essenciais.
Aqueles dois mortos entraram no espaço interior do
poeta para não mais sair, e as referências a eles proliferaram, em poemas e depoimentos. Muito já se especulou e ainda se pode especular sobre essas duas presenças: a pintura e a música, essenciais na poética de Murilo Mendes; a igualmente importante interseção entre
arte, espiritualidade e erotismo etc. Sobre Mozart, o
poema em questão é o primeiro de uma longa série.
Mas ele nos interessa aqui, sobretudo, como peça à parte -e também por ser um exemplo dos mais sugestivos
de um livro ainda pouco investigado na trajetória heterogênea do poeta.
O poema, em sua transparência, parece dispensar
qualquer mediação explicativa. O leitor crítico acha-se
aqui em posição desconfortável, perigosamente inclinado a dois tipos de fracasso: ou o de apenas parafrasear a carga poética do texto ou o de encobrir, com a linguagem especializada, o que já estava revelado. Uma
saída pode ser a de tentar surpreender algum núcleo do
qual as imagens brotem, por assim dizer, espontaneamente. Como se trata do retrato de um compositor e o
poema se impõe pela delicadeza, pode vir em nosso socorro uma palavra retirada da música: "harmonia".
"Combinação de sons que impressiona agradavelmente os ouvidos" é uma definição retirada de um dicionário de música, mas muitos outros sentidos, também dicionarizados, subjazem à palavra "harmonia":
suavidade, doçura, enlevo, angélico, encanto, cristalino,
paz, concórdia, tranquilidade, quietude, mansidão,
aderência, consonância... Todas essas definições aplicam-se claramente ao poema, inclusive pela interpenetração que elas sugerem entre o visual e o auditivo, assim como entre o físico e o espiritual.
Texto hagiográfico Em contraposição aos inúmeros "noturnos" escritos por Murilo Mendes, "Mozart" é
um poema da "manhã". Uma manhã entre outras, momento possível de uma audição enlevada da música de
Mozart. Mas o enlevo faz transbordar o quadro cotidiano e o momento adquire densidade, provocando o poema. "O lirismo é o desenvolvimento de uma exclamação". A frase de Valéry se ajusta aqui como uma luva.
Lido como um retrato de Mozart, o poema de Murilo
Mendes é uma espécie de texto hagiográfico, em que
são ressaltados o caráter excelso do músico ou a sua angelical pureza ("asas", "aero-amigo"). Lido como poema desentranhado de uma audição musical, ele consiste numa sucessão de imagens, em que a claridade da
manhã se mistura aos acordes da música, explicando-se
mutuamente.
Impregnado de luz e de sons, o poema é muito afirmativo, seja como um canto de admiração ao compositor (e por extensão à própria arte), seja como um canto
de louvor à vida, percebida em sua plenitude. Nesse
sentido, ele recorda a atmosfera de quadros de Chagall,
em que prevalecem o onírico e o harmonioso (tantas
vezes também associado à música).
"O mundo lavado" é uma expressão recorrente na
obra de Murilo Mendes e alude tanto à regeneração cíclica da vida cósmica, renovada a cada manhã, quanto a
rituais de purificação (como o batismo), preparatórios
para uma "vida nova". O verso "Se levanta com quatro
anos cantando" complementa a idéia, de modo que a
infância se transforma no lugar próprio da harmonia.
Sob o signo da inocência De algum modo, portanto, a expressão da harmonia depende da inocência
infantil. Tudo no texto está sob o signo do inaugural, de
uma integridade e delicadeza anteriores a qualquer degradação. Por esse fato, o forte impulso afirmativo do
texto se fundamenta em algumas estruturas negativas:
harmonia é ausência de "véspera", ausência de "remorso" e ausência de "crime"; ausência, enfim, de experiência. Inocência efetiva (supõe-se) deve ser não apenas
ausência do crime, mas desconhecimento dele. Certamente o poema está escrito do lado da experiência, e a
harmonia é aqui antes uma construção, embora soe como espontânea.
Situado entre a lírica religiosa e a política (que viria
com os livros escritos durante a Segunda Guerra Mundial), o lirismo delicado de "Os Quatro Elementos" nos
revela uma outra face do poeta, confiante no poder
transfigurador da arte e na imaginação criadora -capazes de propor "paraísos artificiais" como naturais.
Murilo Marcondes de Moura é professor de literatura brasileira na
Universidade Federal de Minas Gerais e autor do livro "Murilo Mendes - A Poesia como Totalidade" (Edusp/Giordano).
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