São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O aprendizado da severidade e da secura das paisagens siciliana e espanhola fez Murilo Mendes superar a incontinência verbal e se tornar poeta maior

Da dispersão à intensidade

Murilo Mendes, uma dançarina sevilhana, Maria da Saudade Cortesão e João Cabral de Melo Neto Luiz Costa Lima especial para a Folha N ascido em 13 de maio de 1901, em Juiz de Fora, ao se fixar definitivamente em Roma, em 1957, como professor de literatura brasileira, Murilo Mendes já era uma das vozes consagradas do modernismo. E, ao morrer, em Lisboa, em agosto de 1975, era reconhecido como um dos quatro grandes poetas surgidos antes dos concretos. Mas esse reconhecimento pouco se tem traduzido em análises sistemáticas sobre sua obra. Talvez por isso não se tenha atentado para a demora de Murilo em encontrar sua dicção singular. Embora fosse ocioso perguntarmo-nos como teria sido sua obra sem sua residência na Europa por 18 anos, e embora sua maturidade já se manifestasse no "Contemplação de Ouro Preto", que começara a escrever antes de sua residência na Itália, não é menos evidente a diferença deste com o primeiro livro que dependeu da ambiência italiana sistemática: o "Siciliana", composto entre 1954-55.
As datas indicam um problema que não sei resolver: como apontam para anos anteriores à sua transferência, não sabemos como se explica o impacto causado pela "Sicília". Ao contrário do que passava com Cabral, em que a longa convivência com a Espanha lhe dera tempo para encontrar o Nordeste na Andaluzia ou mesmo nas chuvas da Galícia, a Sicília parece haver tomado Murilo como um súbito amor, infletindo o rumo de sua produção. O "Siciliana" claramente se prolonga em "Tempo Espanhol", escrito entre 1955-58, nos "Grafitos" e "Murilogramas" do "Convergência" (1963-66), publicado em 1970 -por prudência e economia, não nos referimos aos textos em prosa, posteriores a "O Discípulo de Emaús" (1945) e "A Idade do Serrote" (1966), bem como à obra póstuma, escrita em italiano e francês.
Assim delimitada, nossa tarefa visará a mostrar: (a) como se manifesta e explica a demora de encontro de sua voz própria; (b) como se afirma o poeta maior. Mas, ainda assim, continuando muito amplo o espectro, não nos referiremos a seus primeiros livros -"Poesias" (1925-29), "Bumba-Meu-Poeta" (1930-31) e "História do Brasil" (1932)-, expurgados pelo próprio poeta da primeira reunião de sua obra, "Poesias" (1925-1955), de 1959. Começamos com "O Visionário", com poemas de 1930 a 1933, antes, pois, do "Tempo e Eternidade", que compusera com Jorge de Lima em 1935, e de "A Poesia em Pânico", escrito em 1937.
A julgar por "O Visionário", o sentimento primário que o condiciona é a angústia atroz pela passagem do tempo e seu tratamento permanecerá nos livros anteriores a "Siciliana". Como a mulher é seu outro de eleição, a angústia se precisa no constatar a deformação que o tempo causa nas formas femininas. Assim sucedia não por uma estetização larvar, mas porque o aspecto feminino era a bússola confirmadora de sua ansiedade: o curso do tempo tem seu ícone no corpo feminino.
O tempo então engana o amante que "só vê a mulher/ no momento em que a vê", sem que possa investir em sua forma de amanhã ("O Namorado e o Tempo"). O logro que sofre o amante pertence à ordem irrevogável das coisas (para o contraste com a fase do poeta maior, ver "Grafito para Ipólita", em "Convergência").
Por isso mesmo seria irrazoável que a angústia se limitasse à deformação do corpo da mulher. Ela é apenas mais frequente pela acerba heterossexualidade. Correlata, a ansiosa angústia se exprime na incerteza sobre si mesmo. Como se se perguntasse: se a atraente forma é o que logo se deforma, quem é este que o constata: "Quem sou mesmo eu?/ Sou um retrato de antepassado./ Sou aquela camisola que vesti/ Há muitos anos atrás" ("Olhar sem Tempo"). Indagação a que se incorpora o terceiro móvel de sua ansiedade, que é condicionado por sua crença religiosa: "Teus olhos vão ser julgados/ Com clemência nem menor/ Do que o resto de teu corpo/ Teus olhos pousaram demais/ Nos seios e nos quadris" ("Juízo Final dos Olhos"). Os núcleos alimentadores da angústia -Eros e sua satisfação contingente, não se sabe quem os pensa, mas tão-só que decerto teme pelo castigo- não dispõem contudo de uma forma (nos termos de Valéry, as palavras ainda não conseguem criar o "estado de falta de palavras").

Dicção onírica e alucinada A dialética de que se nutre a poesia surge em breves lampejos -"Minha boca está no presente,/ O meu olhar, no passado,/ Meu ventre está no futuro" ("Mulher em Três Tempos")- que não duram. Daí a extensão anestésica de "Jandira", "Biografia da Cabeleira", "Canto da Pobreza". Desse modo, se José Guilherme Merquior acertava ao dizer de todo o Murilo que manifestava um "núcleo duro e puro de modernidade", presente por uma dicção onírica e alucinada, deixava contudo de notar que o núcleo antes se manifestava como clima de que se sustentava por uma forma. Do dilúvio amazônico de imagens em versos que se amontoam raramente se pode dizer ser mais do que dilúvio onírico e alucinado. São poucos os torsos efetivamente materializados, como: "Deram-me um corpo, só um!/ Para suportar calado/ Tantas almas desunidas/ Que esbarram umas nas outras,/ De tantas idades diversas" ("Choro do Poeta Atual"). Por isso, só o último poema da primeira parte de "O Visionário", "Pré-História", se realiza por inteiro.
Substituímos o exame pormenorizado pela análise de fragmento do "Novíssimo Job", primeiro poema do livro composto com Jorge de Lima. De seus 43 versos, apenas consideraremos os 27 primeiros. Os cinco iniciais -"Eu fui criado à tua imagem e semelhança./ Mas não me deixaste o poder de multiplicar o pão do pobre,/ Nem a neta de Madalena para me amar,/ O segredo que faz andar o morto e faz o cego ver./ Deixaste-me de ti somente o escárnio que te deram"- saem da dicção esperável pela introdução da variante do "sermo umilis" do terceiro, que prepara o inusitado do quinto. O juízo se repete na sequência do sexto ao nono -"Deixaste-me o demônio que te tentou no deserto,/ Deixaste-me a fraqueza que sentiste no horto,/ E o eco do teu grande grito de abandono:/ Por isso serei angustiado e só até a consumação de meus dias"-, em que os dois primeiros embaçam a força dos restantes.
O mesmo se passa entre o décimo e o 14º com a secundariedade dos dois primeiros -"Por que não me fizeste morrer pelo gládio de Herodes,/ Ou por que não me fizeste morrer no ventre da minha mãe?/ Não me liguei ao mundo, nem venci o mundo./ Já me julguei muito antes de meu julgamento./ E já estou salvo porque me deste a poeira por herança".
A situação se inverte entre o 15º e o 19º -"Até há pouco tempo atrás no meu país/ Ninguém sabia que a vida é a luta entre classes/ E eu já era, desde cedo, inconformado e triste./ Antes da separação entre os homens/ Existe a separação entre o homem e Deus"- com a rotina dos dois últimos. Em troca, deixaria intacto o final: "É doce te encarar como poeta e amigo,/ É duro te encarar como criador e juiz./ Tu me guardas como instrumento de teus desígnios,/ Tu és o Grande Inquisidor perante mim./ Por que me queres vivo? Mata-me desde já./ Cria outras almas, outros universos,/ Sonda-os, explora com tua lente enorme./ Mas faze cessar um instante o meu suplício".
Mas semelhante prática de análise corre o risco de irritar o leitor, que se dirá: eis alguém que se arroga o direito do que Pound fizera com a primeira versão de "The Waste Land", mas ante o pedido do próprio Eliot! O leitor está certo, a tarefa não deve ser continuada. Mas é também verdade que sua função já se cumpriu: mostrar a irregularidade da forma deste Murilo.
Segundo nossa hipótese, para essa forma baça, originada de uma ansiedade primária, contribuía o próprio cristianismo do autor. Mas não por decorrência da adesão a uma fé, mas porque ela era vivida ao contato mais estreito com o mundo. "Pedra úmida/ Altar frio imagens ignóbeis/ Flores de papel ímã de moscas/ O lugar é triste e árido/ O contrário do arco-íris./ Baixará o Cristo aqui?" ("Muros"). Daí a frequência com que do poeta religioso nascem formulações heterodoxas: "Amor, palavra que funda e que consome os seres./ Fogo, fogo do inferno: melhor que o céu" ("Amor Vida"); "Até quando, Ente oblíquo/ Abusarás de minha sede?" ("Vigília"); "Ó céu de pedra!/ Quem até hoje foi ouvido/ Por ti, céu feroz" ("Cantiga Escura").

Dissonância imagética Esses poucos exemplos visam menos a definir o cristianismo "duro" de Murilo do que insinuar que ele não só nutre sua angústia, mas também estimula sua poesia. Como? Seja contribuindo para a dissonância imagética, que Haroldo de Campos já destacara em sua obra, seja, em plano macroscópico, pela frequência da concórdia discordante ("concordia discors"), sobre a qual, desde Bandeira, tantos analistas já chamaram a atenção. "Lá Longe", de "Parábola" (1946-1950), constituiria o instante atópico da "concordia discors" muriliana, a sua Pasárgada.
Mas, trazida de volta à cena do mundo, ela antes e com mais frequência diz o que se formula em "Siciliana": "Nossa medida de humanos/ -Medida desmesurada-/ Em Selinunte se exprime:/ Para a catástrofe, em busca/ Da sobrevivência, nascemos" ("As Ruínas de Selinunte"). O novo Jó termina menos por se curvar à decisão divina do que por encontrar a ordem de configuração da própria poesia. A sua ansiedade originária não se abranda, apenas descobre o meio para sua metamorfose: em vez de comunicada, ela passa a ser dita.
Sua pedra de toque foram a severidade e a secura das paisagens siciliana e espanhola. Elas lhe ensinaram a converter a incontinência em intensidade verbal. Murilo se descobre não na medida em que abafa sua rebeldia, mas quando aprende a condensá-la. Como mostra em "Orfeu", que, "lacerado pelas palavras bacantes/ (...) Impede mesmo assim sua diáspora/ Mantendo-lhes o nervo & a ságoma" ("Exergo", abertura de "Convergência"). Murilo então se torna poeta maior: aquele que faz da sintética intensidade o seu princípio.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (Ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".


Texto Anterior: Murilo Marcondes de Moura: Os anjos tutelares de Murilo
Próximo Texto: O guardião do templo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.