São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001 |
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+ brasil 502 d.C. Republicanismo no Brasil holandês
Evaldo Cabral de Mello
Ocorreu, portanto, que as preexistentes Câmaras Municipais portuguesas foram tranquilamente transformadas em câmaras de escabinos, segundo o modelo neerlandês, compondo-se geralmente de três luso-brasileiros e de dois holandeses, de cujas decisões se podia recorrer ao Conselho Político, ou de Justiça, do Recife. Em livro intitulado "Fórmulas Políticas no Brasil Holandês", Mário Neme assinalou, com razão, que, sob o domínio batavo, "a instituição do governo local perdeu a sua principal característica, a de órgão de administração da comuna", tornando-se órgão puramente judiciário, que julgava os litígios em pleno, ao passo que, sob o sistema português, as sentenças emanavam de juízes ordinários, deliberando cada um por si. Com efeito, competências administrativas foram negadas até mesmo à Câmara de Olinda, posteriormente transferida para o Recife, a qual, por ser a principal, havia pleiteado a criação de cargos de burgomestres. Se lhe foi permitido criar o cargo de pensionário, este, reduzido ao âmbito especializado dos escabinos, se achou relegado ao papel de mero assessor jurídico, ao passo que nas Províncias Unidas a função possuía competências mais amplas, em que não cabe entrar aqui agora. No empolgamento da sua tese, Mário Neme deu-lhe, porém, um escopo excessivo, pretendendo que "a instituição do governo local no Brasil holandês marcou um nítido retrocesso, do ponto de vista das conquistas democráticas (sic), em confronto com o regime vigorante no Brasil português". Ao reagir contra a idealização do "tempo dos flamengos", ele cometeu o pecado oposto de idealização do sistema municipal português, em que enxergou "um caráter democrático indiscutível, mas ainda um razoável grau de autonomia, desconhecido em países mais evoluídos da época (sic)". Aprovação do vice-rei Na realidade, a idéia que ele fazia do regime lusitano de administração local parece inspirada em três fontes, todas passíveis de lhe falsear a natureza pelo que toca ao Brasil seiscentista: em primeiro lugar, na leitura das "Ordenações", texto normativo, que, por conseguinte, não determinava integralmente a prática; em segundo, noutra idealização, a liberal e oitocentista com que Alexandre Herculano descrevera não o regime municipal lusitano de Quinhentos ou de Seiscentos, mas o da Idade Média; e, em terceiro, na consulta das atas da Câmara de São Paulo. E, contudo, quando o livro de Mário Neme foi publicado em 1971, havia seis anos os estudiosos do tema já dispunham da análise comparativa de C.R. Boxer, intitulada "Sociedade Portuguesa nos Trópicos", que teria desfeito muitas das ilusões do autor. Mário Neme descambou assim para o otimismo de supor que a autonomia dos municípios portugueses fosse maior que a das próprias cidades holandesas ou a de que, ao contrário dos escabinos, os vereadores possuíssem formação jurídica. Ou de afirmar a inexistência de intromissão dos representantes da Coroa na escolha dos vereadores, quando certas Câmaras, como a da Bahia, tinham de submeter seus membros à aprovação do vice-rei, segundo a fórmula aplicada em Goa; e que, no próprio reino, a escolha dos vereadores das cidades mais populosas estava sujeita ao veto do Desembargo do Paço. Ou de pretender que os conselhos lusitanos gozassem de maior representatividade, sendo, portanto, mais favoráveis à mobilidade social numa época em que a ascensão pessoal era medida pela participação nos chamados cargos de honra. Daí que sua descrição do regime português resulte verdadeiramente idílica. A única novidade institucional que parece ter calado no espírito dos colonos luso-brasileiros foi a assembléia realizada no Recife em 1640, como indica o fato de que, traduzidas para a língua portuguesa, suas atas ficaram conservadas por muito tempo nas Câmaras ou em poder de particulares. Tanto bastou para que a historiografia nativista visse apressadamente a existência de instituições representativas do tipo oitocentista de que nos teria dotado o domínio batavo. Na realidade, os 56 participantes luso-brasileiros haviam sido escolhidos pelo governo holandês com base na sua condição de escabinos (12) ou de notáveis dos seus respectivos distintos (44). Ademais, para serem postas a voto as propostas formuladas pelos membros ficavam dependentes da aprovação da presidência neerlandesa. Quanto à exigência de se aprovarem preliminarmente as proposições governamentais para só então passar ao exame das reivindicações da Assembléia, cabe lembrar não ser outra a prática das cortes portuguesas. A despeito dessas e de outras limitações, à Assembléia conferiram-se funções propriamente legislativas, de vez que, aprovadas, as proposições deviam vigir como leis e serem observadas como tais. É preciso, aliás, ter muito cuidado quando se utiliza o conceito de representação no tocante ao Antigo Regime. Nem as cortes portuguesas nem os Estados provinciais neerlandeses da época eram representativos na acepção atual da palavra, embora o fossem em termos de uma sociedade de ordens. As restrições estabelecidas pelas autoridades batavas às deliberações da Assembléia não foram certamente maiores que as impostas às cortes portuguesas e aos parlamentos europeus pelas respectivas monarquias, ao menos naqueles em que, para usar a tipologia de Otto Hintze, prevaleceu o sistema das "três cúrias" (clero, nobreza e povo) sobre o bicameral triunfante na Inglaterra e no qual esse autor enxergou o ascendente do sistema parlamentarista. Em Portugal, malgrado uma consciência viva da diversidade física do reino, não existiam, como assinalou Nuno Gonçalo Monteiro, "poderes formalizados de âmbito regional": nem "direitos regionais nem instituições próprias das Províncias nem tampouco comunidades linguísticas acentuadamente diversificadas". Ora, como assinalou Joaquim Romero de Magalhães, "o poder local é a-regional e anti-regional". Não é para desdenhar, por conseguinte, o fato de que, graças à assembléia de 1640, o âmbito municipal das Câmaras portuguesas se via, pela primeira vez, abrangido por uma estrutura de alcance territorial muito mais amplo, a qual se aproximava das Assembléias coloniais do Império Britânico no Caribe e na América setentrional. Naquela ocasião, os habitantes das Capitanias sob domínio holandês usaram, também pela primeira vez, o direito de petição coletiva, não individualmente ou por meio das Câmaras, precedente que será seguido, quando da guerra de restauração e mesmo depois, pelos memoriais que os moradores das "Capitanias do Norte do Estado do Brasil" endereçarão a El Rei. Nesse sentido, o sistema conselhio português foi um obstáculo à articulação e à defesa de interesses (e eles eram fundamentais) que extrapolavam o círculo acanhado do município, constituindo-se em aliado importante do regime colonial. As consequências danosas de semelhante limitação institucional só serão plenamente percebidas ao tempo da Independência, quando a corte do Rio passou por cima das aspirações provinciais representadas nas juntas provisórias criadas pelas cortes de Lisboa para apelar diretamente às Câmaras Municipais. Mas em Pernambuco, no decorrer do período colonial, tentou-se em diferentes ocasiões recorrer a âmbitos de representação mais amplos, que englobassem a Capitania. Em 1663, foi o próprio governador Brito Freyre, grande admirador de Nassau, que convocou uma reunião de todas as Câmaras pernambucanas para discutir as modalidades da cobrança do imposto recém-lançado pela coroa para o pagamento do dote de d. Catarina de Bragança, precondição da aliança inglesa, e para a indenização dos Países Baixos pela perda do Nordeste. No decurso da segunda metade do século 17, foi a Câmara de Olinda que reivindicou poderes supramunicipais, com base nas competências fiscais que exercia desde a guerra holandesa. Por fim, foi a sedição da nobreza de 1710 que organizou o conclave de pró-homens de Pernambuco e de Itamaracá para discutir a solução institucional a ser dada à vacância de poder criada pela fuga do governador. Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste" (Topbooks). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.". Texto Anterior: O guardião do templo Próximo Texto: + autores - Peter Burke: Um ensaio sobre ensaios Índice |
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