São Paulo, domingo, 13 de maio de 2001

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Republicanismo no Brasil holandês

Evaldo Cabral de Mello

Um dos tópicos historiográficos mais tenazes pretende que a precocidade do republicanismo pernambucano se deveu à contaminação ideológica decorrente do domínio holandês. Creio que foi Robert Southey o primeiro a formulá-lo ao expor na "História do Brasil" (ed. Itatiaia) a origem da sedição da nobreza (1710), o que requeria, segundo ele, levar em conta "a longa convivência do povo com os holandeses". Da sua obra, a conexão transitou para os livros de viajantes estrangeiros, a começar pelo da sua compatriota Maria Graham.
Em meados de Oitocentos, o historiador alemão Handelmann reelaboraria a idéia, afirmando que "a ligação havida com a República das Sete Províncias Unidas (dos Países Baixos) não estava esquecida em Pernambuco; e, embora nunca houvesse sido estimado o governo holandês, e a sua volta, jamais desejada, contudo as formas do Estado holandês, que se havia então aprendido a conhecer, achavam muitos adeptos". Em princípio, nada obsta a que um lugar-comum seja também veraz. Mas será o caso desse? A resposta deve começar pelo exame do que era o republicanismo neerlandês ao tempo da ocupação do Nordeste.
Nos Países Baixos, a formulação republicana em nível doutrinário deu-se tardiamente e de maneira "sui generis". Os 80 anos da guerra de independência contra a Espanha (1568-1648) desviaram a atenção dos publicistas batavos para a defesa da legitimidade da revolta contra Felipe 2º, não para a justificação de um regime cuja cúpula permanecerá indefinida por algum tempo. Que as Províncias Unidas se tenham tornado república não resultou de prévia opção ideológica, mas só se impôs diante do esgotamento das alternativas monárquicas aventadas ao tempo de Guilherme, o Taciturno, e depois do seu assassinato.
Ratificada a União de Utrecht (1579), que estabeleceu o mecanismo confederativo, com base nos Estados Gerais e criado com vista à segurança externa contra o inimigo espanhol, a definição constitucional permaneceu durante muito tempo uma questão de somenos importância. Esta ficara reduzida à titularidade da chefia do Estado, do momento em que uma série de improvisações felizes haviam adaptado instituições puramente provinciais às necessidades nacionais, como ocorrera com as funções de "stathouder" e de pensionário da Holanda, criando na prática um sistema próprio de equilíbrio de poderes.
Os pilares dessa concepção da ordem política eram, de um lado, a recém-conquistada liberdade religiosa, a qual, mercê da Reforma, representou por excelência a modalidade conferida nas Províncias Unidas à noção de liberdade individual, em vez do que ocorria com as doutrinas republicanas predominantes, de origem florentina, em que ela correspondia sobretudo ao conceito de autonomia do cidadão relativamente à teia de dependências que podia comprometê-la, afetando, por conseguinte, a qualidade da vida cívica. De outro, a preservação das antigas instituições representativas existentes nas cidades e nas Províncias, as quais, havendo longamente coexistido com a monarquia da casa de Borgonha e depois com o Estado supranacional de Carlos 5º, haviam sido atacadas pelo centralismo castelhano de Felipe 2º.
Só quando, em meados do século 17, se aguçou o antagonismo entre a oligarquia urbana da província da Holanda e as pretensões dinásticas da Casa de Orange, que gozavam de grande apoio popular, é que veio a ser articulada uma doutrina rigorosamente republicana, na obra dos irmãos De la Court e sobretudo de Espinosa. A essa altura, porém, o Brasil holandês já era o "verzuimd Brazilie" do poema de Vondel, isto é, o Brasil perdido pela incúria.

Consumo doméstico Até então, por conseguinte, o republicanismo pragmático das Províncias Unidas era todo para consumo doméstico, não para exportação, motivo pelo qual não se curou de fazer proselitismo republicano na colônia brasileira, da mesma maneira pela qual a política religiosa de Nassau e dos dirigentes da Companhia das Índias Ocidentais, a qual nesse ponto seguia a atitude do patriciado citadino da República no tocante à substancial comunidade católica da metrópole, fez ouvidos de mercador às pressões da hierarquia calvinista para reprimir o catolicismo no Nordeste. Outro fator a inibir a transplantação de valores republicanos para o Brasil holandês consistia em que tais valores eram parte de uma cultura que a população de origem portuguesa repudiava em bloco, não só em nome das suas crenças políticas como também em defesa da sua religião e do seu estilo de vida.
A ausência de monarca na cúpula do sistema intrigava os colonos luso-brasileiros, mas eles viam nessa circunstância uma razão adicional para repudiar os holandeses, que, ademais de heréticos, eram também homens sem rei. Mais do que a condição de súditos de uma república, doía-lhes a de vassalos de uma empresa particular e mercantil, a qual, salvo Nassau, que soube tirar partido do seu rango aristocrático em favor da sua popularidade, se achava representada, nos vários níveis institucionais, por indivíduos de extração popular, como foi particularmente o caso da junta que substituiu o conde e que estava composta daqueles "quatro pícaros flamengos", da indignação de Fernandes Vieira.
A despeito de domínio colonial de uma república, o sistema de governo implantado pelos batavos no Nordeste nada tinha de incomodamente republicano para sensibilidades monárquicas, pois não ocorrera transplantação de instituições políticas neerlandesas. Se a posição de Nassau como "governador, capitão e almirante general", detentor, portanto, do supremo poder político e militar, podia ser aproximada à do "stathouder" da metrópole, ela podia ser assimilada, por parte dos colonos portugueses, à do governador geral da Bahia, personalidade que a Capitania se habituara a ver periodicamente em Olinda nas primeiras décadas de Seiscentos.
O que sim podia causar-lhes espécie era a forma de governo civil colegiado que antecedera e sucedera a presença de João Maurício no Brasil, colegialismo associado a regimes republicanos.
Por conseguinte, a insatisfação luso-brasileira no tocante ao governo holandês do Recife nada teve a ver com um caráter republicano inexistente na esfera administrativa, mas com a sua condição de domínio colonial dotado de aparelho burocrático, de complexidade desconhecida em Capitania até então donatarial, acostumada, por conseguinte, ao exercício remoto e frouxo do poder central do monarca. Daí que, restaurado o domínio português no Nordeste e transformado Pernambuco em Capitania régia, o descontentamento não será menor com os representantes d'El Rei do que havia sido com os agentes da Companhia das Índias Ocidentais, reputados pela cupidez insaciável atribuída à nação holandesa, mas que nada ficará a dever à das autoridades portuguesas.

Depositário da soberania No tocante à administração local, os holandeses não implantaram no Brasil a administração municipal à maneira da metrópole, vale dizer, o "vroedschap", que se encarregava da gestão citadina e que, por meio dos seus escabinos ("schepenen"), exercia também competências judiciárias de primeira instância. E não o fizeram seguramente pela simples razão de que um dos pressupostos do sistema constitucional das Províncias Unidas via nas cidades e nos seus "vroedschapen" o depositário último da soberania popular, soberania que, no caso de uma colônia como o Brasil, fora delegada na Companhia das Índias Ocidentais. O governo holandês do Recife limitou-se a instalar câmaras de escabinos, renovados anualmente. Aqui como nos Países Baixos, a função dos escabinos foi exclusivamente judiciária, correspondendo a um tribunal civil e criminal de primeira instância.


A ausência de monarca intrigava os colonos luso-brasileiros, para quem os holandeses, ademais de heréticos, seriam também homens sem rei


Ocorreu, portanto, que as preexistentes Câmaras Municipais portuguesas foram tranquilamente transformadas em câmaras de escabinos, segundo o modelo neerlandês, compondo-se geralmente de três luso-brasileiros e de dois holandeses, de cujas decisões se podia recorrer ao Conselho Político, ou de Justiça, do Recife. Em livro intitulado "Fórmulas Políticas no Brasil Holandês", Mário Neme assinalou, com razão, que, sob o domínio batavo, "a instituição do governo local perdeu a sua principal característica, a de órgão de administração da comuna", tornando-se órgão puramente judiciário, que julgava os litígios em pleno, ao passo que, sob o sistema português, as sentenças emanavam de juízes ordinários, deliberando cada um por si. Com efeito, competências administrativas foram negadas até mesmo à Câmara de Olinda, posteriormente transferida para o Recife, a qual, por ser a principal, havia pleiteado a criação de cargos de burgomestres. Se lhe foi permitido criar o cargo de pensionário, este, reduzido ao âmbito especializado dos escabinos, se achou relegado ao papel de mero assessor jurídico, ao passo que nas Províncias Unidas a função possuía competências mais amplas, em que não cabe entrar aqui agora.
No empolgamento da sua tese, Mário Neme deu-lhe, porém, um escopo excessivo, pretendendo que "a instituição do governo local no Brasil holandês marcou um nítido retrocesso, do ponto de vista das conquistas democráticas (sic), em confronto com o regime vigorante no Brasil português". Ao reagir contra a idealização do "tempo dos flamengos", ele cometeu o pecado oposto de idealização do sistema municipal português, em que enxergou "um caráter democrático indiscutível, mas ainda um razoável grau de autonomia, desconhecido em países mais evoluídos da época (sic)".

Aprovação do vice-rei Na realidade, a idéia que ele fazia do regime lusitano de administração local parece inspirada em três fontes, todas passíveis de lhe falsear a natureza pelo que toca ao Brasil seiscentista: em primeiro lugar, na leitura das "Ordenações", texto normativo, que, por conseguinte, não determinava integralmente a prática; em segundo, noutra idealização, a liberal e oitocentista com que Alexandre Herculano descrevera não o regime municipal lusitano de Quinhentos ou de Seiscentos, mas o da Idade Média; e, em terceiro, na consulta das atas da Câmara de São Paulo.
E, contudo, quando o livro de Mário Neme foi publicado em 1971, havia seis anos os estudiosos do tema já dispunham da análise comparativa de C.R. Boxer, intitulada "Sociedade Portuguesa nos Trópicos", que teria desfeito muitas das ilusões do autor.
Mário Neme descambou assim para o otimismo de supor que a autonomia dos municípios portugueses fosse maior que a das próprias cidades holandesas ou a de que, ao contrário dos escabinos, os vereadores possuíssem formação jurídica. Ou de afirmar a inexistência de intromissão dos representantes da Coroa na escolha dos vereadores, quando certas Câmaras, como a da Bahia, tinham de submeter seus membros à aprovação do vice-rei, segundo a fórmula aplicada em Goa; e que, no próprio reino, a escolha dos vereadores das cidades mais populosas estava sujeita ao veto do Desembargo do Paço. Ou de pretender que os conselhos lusitanos gozassem de maior representatividade, sendo, portanto, mais favoráveis à mobilidade social numa época em que a ascensão pessoal era medida pela participação nos chamados cargos de honra. Daí que sua descrição do regime português resulte verdadeiramente idílica.
A única novidade institucional que parece ter calado no espírito dos colonos luso-brasileiros foi a assembléia realizada no Recife em 1640, como indica o fato de que, traduzidas para a língua portuguesa, suas atas ficaram conservadas por muito tempo nas Câmaras ou em poder de particulares. Tanto bastou para que a historiografia nativista visse apressadamente a existência de instituições representativas do tipo oitocentista de que nos teria dotado o domínio batavo. Na realidade, os 56 participantes luso-brasileiros haviam sido escolhidos pelo governo holandês com base na sua condição de escabinos (12) ou de notáveis dos seus respectivos distintos (44).
Ademais, para serem postas a voto as propostas formuladas pelos membros ficavam dependentes da aprovação da presidência neerlandesa.
Quanto à exigência de se aprovarem preliminarmente as proposições governamentais para só então passar ao exame das reivindicações da Assembléia, cabe lembrar não ser outra a prática das cortes portuguesas. A despeito dessas e de outras limitações, à Assembléia conferiram-se funções propriamente legislativas, de vez que, aprovadas, as proposições deviam vigir como leis e serem observadas como tais.
É preciso, aliás, ter muito cuidado quando se utiliza o conceito de representação no tocante ao Antigo Regime. Nem as cortes portuguesas nem os Estados provinciais neerlandeses da época eram representativos na acepção atual da palavra, embora o fossem em termos de uma sociedade de ordens.
As restrições estabelecidas pelas autoridades batavas às deliberações da Assembléia não foram certamente maiores que as impostas às cortes portuguesas e aos parlamentos europeus pelas respectivas monarquias, ao menos naqueles em que, para usar a tipologia de Otto Hintze, prevaleceu o sistema das "três cúrias" (clero, nobreza e povo) sobre o bicameral triunfante na Inglaterra e no qual esse autor enxergou o ascendente do sistema parlamentarista.
Em Portugal, malgrado uma consciência viva da diversidade física do reino, não existiam, como assinalou Nuno Gonçalo Monteiro, "poderes formalizados de âmbito regional": nem "direitos regionais nem instituições próprias das Províncias nem tampouco comunidades linguísticas acentuadamente diversificadas". Ora, como assinalou Joaquim Romero de Magalhães, "o poder local é a-regional e anti-regional". Não é para desdenhar, por conseguinte, o fato de que, graças à assembléia de 1640, o âmbito municipal das Câmaras portuguesas se via, pela primeira vez, abrangido por uma estrutura de alcance territorial muito mais amplo, a qual se aproximava das Assembléias coloniais do Império Britânico no Caribe e na América setentrional. Naquela ocasião, os habitantes das Capitanias sob domínio holandês usaram, também pela primeira vez, o direito de petição coletiva, não individualmente ou por meio das Câmaras, precedente que será seguido, quando da guerra de restauração e mesmo depois, pelos memoriais que os moradores das "Capitanias do Norte do Estado do Brasil" endereçarão a El Rei.
Nesse sentido, o sistema conselhio português foi um obstáculo à articulação e à defesa de interesses (e eles eram fundamentais) que extrapolavam o círculo acanhado do município, constituindo-se em aliado importante do regime colonial. As consequências danosas de semelhante limitação institucional só serão plenamente percebidas ao tempo da Independência, quando a corte do Rio passou por cima das aspirações provinciais representadas nas juntas provisórias criadas pelas cortes de Lisboa para apelar diretamente às Câmaras Municipais.
Mas em Pernambuco, no decorrer do período colonial, tentou-se em diferentes ocasiões recorrer a âmbitos de representação mais amplos, que englobassem a Capitania.
Em 1663, foi o próprio governador Brito Freyre, grande admirador de Nassau, que convocou uma reunião de todas as Câmaras pernambucanas para discutir as modalidades da cobrança do imposto recém-lançado pela coroa para o pagamento do dote de d. Catarina de Bragança, precondição da aliança inglesa, e para a indenização dos Países Baixos pela perda do Nordeste. No decurso da segunda metade do século 17, foi a Câmara de Olinda que reivindicou poderes supramunicipais, com base nas competências fiscais que exercia desde a guerra holandesa. Por fim, foi a sedição da nobreza de 1710 que organizou o conclave de pró-homens de Pernambuco e de Itamaracá para discutir a solução institucional a ser dada à vacância de poder criada pela fuga do governador.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste" (Topbooks). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".




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